Num destes dias de dolce far niente o Pequeno Príncipe passou no meu apartamento e me levou para conhecer coisas novas no universo. Apareceu meio do nada enquanto eu trabalhava no escritório, quando olhei pela janela lá estava ele acenando com seu ganso gigante. Depois de tanto tempo de publicado (ele já tem mais de 21 anos), não tive dúvidas, joguei-me no ganso em busca de aventuras. Depois de muito cavalgarmos na sua ave gigante, o Príncipe que se tornara um belo jovem, loiro de olhos azuis - ou do jeito que seus desejos quiserem imaginar -, arremessou-nos em direção ao espaço sideral. E viajamos na velocidade da imaginação, tantas vezes mais rápida do que a luz. Num instante chegamos a um pequeno planeta. Não era o dele, e nem o planeta do bêbado que conhecemos de outra estória. E cuja companhia aprendeu a valorizar ao longo dos anos. Este era um planeta novo para nós.
Em
nossa aterrissagem parecia que havíamos chegado em má hora. Tudo ali era
branco, até mesmo as pessoas vestiam-se de branco, tudo parecendo muito puro.
Entretanto, diante de nós estendia-se uma linha preta no chão, tão longa que
parecia dar volta ao planetinha. Homens ficavam
de um lado e mulheres do outro. Estavam apenas a poucos passos uns dos outros.
Tensos e ameaçadores, ficavam rangendo os dentes, se entreolhando de forma
raivosa. Pareciam aguardar algo para começarem a se bater.
-
Que coisa estranha! - disse o Príncipe. Amigo, o que está acontecendo? -
Perguntou a um homem solitário que próximo de nós e parecia apenas assistir
aquilo.
-
Ahhh, estrangeiros! Que momento desagradável para chegarem! - Resmungou, e
respondeu em seguida: Irá se iniciar a procriação.
-
Procriação?! - comentei. Impossível, parecem que irão se matar a qualquer
momento.
-
Os amigos, nos desconhecem, por favor, não interfiram! - pediu de forma educada
e diplomática. Eu os convidaria a assistir, entretanto, é muito vulgar
estranhos espiarem relações deste tipo.
Fez
sinal para que nos virássemos e educadamente obedecemos. Preservando nossos
olhos do que iria ocorrer. Deve ter sido uma carnificina. Ouvíamos gritos
selvagens tanto de homens como de mulheres. Não saberia dizer se simulados,
pareciam bem verdadeiros. Enquanto isso o Príncipe espiava pela câmera do
celular o que ocorria. Os grupos se batiam, se emaranhavam e se disputavam aos
tapas e socos. E os casais que se formavam prontamente se entregavam ali mesmo.
Uma coisa dantesca, violenta e selvagem.
O
homem passou por nós e nos chamou para que o seguíssemos, ainda sem olharmos
para trás:
-
Chamo-me Ostrogodo! Podem tratar-me apenas por Godo!
Prontamente
estendemos as mãos para cumprimenta-lo e nos apresentarmos, mas ficaram no ar.
Ele não entendeu os gestos cordiais. Feitas as apresentações, o Príncipe Loiro
e lindo - em realidade -, muito interessado em participar daquele ritual,
perguntou (pois como todos sabem o que ele mais faz é perguntar):
- Olhando de um lado e de outro do planeta notei que para leste só existem
cidades e para oeste igualmente, entretanto, parece que de um lado só tem
mulheres e de outro só tem homens. É isso mesmo?!
-
Sim, é isso mesmo. O Senhor Príncipe é muito observador. Homens e mulheres
vivem separados. Nós nos juntamos apenas no momento da procriação.
-
E ela ocorre sempre de forma, assim, violenta?! - perguntei. E ele me olhou com
certo desdém, afinal não sou príncipe, nem loiro, nem lindo. E explicou, como
quem não gostasse de falar sempre a mesma história:
-
Sim, a procriação é violenta, sempre violenta. Mas é a única violência que
ocorre em todo o planeta.
-
Mas isso é uma covardia com a mulheres! - defendeu-as o Príncipe. Godo endereçou-lhe
um pouco do seu desdém:
-
Ora, o Senhor Príncipe não conhece as mulheres daqui. São tão ou mais fortes que
os homens. E, além do mais, ambas as forças treinam durante muitos anos para
este embate. Ele acontece apenas duas vezes na vida de cada cidadão.
-
Já vi muita coisa. Mas este comportamento é a primeira vez. Muito me espanta.
-
Somos muito civilizados. O que lhe parece algo bizarro, só assim parece por não
serem os dois daqui. Há muitos séculos todos vivíamos misturados. Era uma forma
muito promíscua de vida. Sempre ocorriam problemas entre os casais, fossem
casados ou não. Muitas brigas, muito sofrimento, muito pouca empatia uns pelos
outros. E o normal é que todo casamento terminava em separação. E então homens
e mulheres atiravam-se loucamente em busca de outros parceiros. E depois de um
tempo tudo se repetia novamente.
Ele
suspirou desanimado, como se tivesse testemunhado aquilo que na Terra é o nosso
cotidiano.
-
Era um imenso desgaste social, moral, emocional, e principalmente econômico.
Não sei como passamos tantos milhares de anos fazendo uma coisa tão estúpida
quanto tentar equacionar valores e organismos que de outra forma não são
compatíveis. Os hormônios são diferentes, sabe?! As necessidades afetivas,
diferentes. As companhias diferentes... Nada entre homens e mulheres se assemelhava
de verdade, exceto a necessidade de procriação.
-
Quando tudo isso mudou? Interrompeu-o o Príncipe, bastante curioso.
-
Ahhh - fez Ostrogodo -, isso foi há muito, muito tempo. Os desentendimentos
entre os sexos chegaram num tal nível que atrapalhavam a realização dos
trabalhos. A força produtiva estava ficando exaurida. Foram realizados vários
congressos tentando resolver as questões, e destes congressos terminou por
surgir a idéia e depois a lei - muito prática - de dividir o planeta em dois.
-
Que absurdo! - fez o Príncipe, sem querer.
-
Nada de absurdo, meu caro! Somos um planeta pacífico e feliz desde então.
-
Mas se são pacíficos, por que tanta violência para procriarem?!
-
Ahhh, violência... Violência! Tem gente até que gosta! - afirmou dando um
risinho safado. Mas informou a ideologia oficial do Planetinha: O ritual é
organizado dessa forma odiosa para que não haja amor.
-
Que absurdo!! - dissemos os dois ao mesmo tempo.
-
O amor atrapalha tudo! - afirmou. As pessoas em ambos os lados se relacionam
sexualmente entre si, entretanto não podem formar casais. E vocês hão de convir
que a variação de parceiros é muito mais interessante.
-
O que fazem com as crianças?
-
As mulheres entregam os meninos recém-nascidos para os homens cuidarem, criarem
e educarem. E elas ficam a cargo das meninas.
-
Os meninos não sabem quem é a mãe?! - perguntei chocado, pois sou edipiano.
-
Ninguém sabe quem são as mães ou os pais. As crianças são criadas
coletivamente. Ficam em berçários e creches, e depois irão para escolas, e
posteriormente entram no mundo adulto após se formarem em universidades. Vivem
coletivamente desde sempre. Assim temos um grande senso de comunidade.
-
Então, vocês não têm personalidade e nem individualidade? - questionou o Príncipe.
-
Claro que temos. O que não temos são parasitas sugando nossas emoções e
economias. Nossa sociedade passou a funcionar muito melhor assim. Pense em
quanto tempo você gastaria para cuidar de uma criança? Levar pra creche,
buscar, levar ao médico, etc. Não fazemos nada disso. Trabalhamos muito,
estudamos, nos relacionamos fisicamente. E até temos amigos. Não lhe parece uma
sociedade boa?!
-
Devemos ser muito estranhos mesmo a este mundo. Respondi. Pois, que por mais
escuto, mais esquisito me parece.
-
Veja, meu amigo. A sociedade assim dividida mais que dobrou o número de
empregos. Homens e mulheres ficaram completamente livres para se tornarem
ótimos profissionais, cientistas, artistas, etc. As atividades tipicamente
masculinas floresceram ainda mais no lado dos homens, não que não existam do
lado feminino, existem. Mas aqui temos gladiadores, futebol, jogos de todos os
tipos, e nada de violência. Do outro lado, muitos salões de beleza, clínicas rejuvenescedoras,
lojas magníficas, etc. E não ocorrem desentendimentos por gastarem o tempo que
quiserem nessas atividades.
-
Mas e o carinho, o afeto, dormir juntinho?! - perguntou o lindo Príncipe loiro
de olhos azuis.
-
Isso tudo é cultural. Se não for estimulado, ninguém faz. O que vocês não
gostam de admitir é que a vida a dois é insuportável. Muitos ficam juntos
apenas por causa do medo de ficarem sós na velhice. Mas aqui, ninguém fica só
na velhice. Todos vão igualmente para o asilo quando fazem oitenta anos, ou se
desejarem, ainda antes. Não ter apegos, não ter família, não ter filhos. Torna
a vida toda muito mais fácil e simples. As duas únicas coisas que nos obrigavam
a uma vida tão animal eram a cultura e a procriação. Resolvemos as duas.
-
E as outras manifestações de gênero e sexualidade? - perguntei.
-
Não deram trabalho nenhum, meu amigo. Respondeu, Godo. Estão distribuídos entre
nós. Muitos já viviam este estilo de vida anteriormente. A sociedade não os
deixava se realizar plenamente, cobrando-lhes coisas injustificáveis. Veja bem,
toda a sociedade estava baseada na procriação e nas suas consequências. Para
que tudo se mantivesse havia uma célula social que pressionava grandemente as
pessoas para ficarem juntas, a família. Quando resolvemos os problemas
relativos à procriação, a família desapareceu, ficando apenas a amizade
fraterna. E todos livres para se realizarem no trabalho.
-
Venha! - chamou-me o Pequeno Príncipe. Pegue o meu Ganso e vamos embora deste
lugar! Não é a toa que tudo está pintado de branco. A vida é colorida e este
lugar está morto.
-
Mas, Príncipe! Vamos ficar e aprender mais um pouco! - pedi.
-
Não, meu amigo! Este lugar periga corromper-nos!
-
Esclareça-me antes, Ostrogodo. - pedi: Por que era você quem estava organizando
a procriação? Você não deveria também estar ali?
-
Nas situações violentas, nós robôs somos os únicos capazes de manter a calma.
E, se necessário a ordem. E não nos entregamos à essa prática selvagem, porém
necessária. Afinal, precisamos de trabalhadores e todo o resto é desnecessário.
Agradeci.
Agora entendendo um pouco mais do que ali ocorria. E sem mais, deixamos num voo
da imaginação aquele lugar estranho. Estranho até demais. Na janela do meu
escritório o lindo Príncipe pediu para eu largar o seu Ganso. E ficou por ali
um bom tempo, desejoso de entender como as pessoas tentando ser civilizadas,
haviam se brutalizado tanto. Depois de muitos cafés, conclui com ele:
-
Eles escolheram. Fizeram escolhas. Fazemos escolhas todos os dias. E elas
trazem consequências. Hoje parece uma pequena decisão, com o passar do tempo
pode transtornar o mundo que amamos, e não mais o reconhecermos. E tudo o que
desejavam era colocar ordem no trabalho e usufruir seus frutos. Não são apenas
os outros que nos tornam escravos, nós também podemos livremente agrilhoarmo-nos
achando que há uma vida melhor do que a vida mesma.
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