Neste domingo último, bebíamos um café na tradicional Padaria Romana, no Cambuí. Em Campinas é o equivalente a tomar um café em Moema ou no Jardins em São Paulo. Não sou um habituè, por que é um pouco distante de casa. Incrivelmente não é um lugar caro. Entretanto, possui um “aura” que atrai algumas pessoas e afasta outras. Este aura que te expulsa dos lugares quando ele aparenta ser caro demais para o seu bolso. O que aprendi na vida é a entrar em lugares assim, sempre são surpreendentes e às vezes baratos. Até mesmo em Supermercados carérrimos como o Pão de Açúcar e o Saint Marchè possuem gêneros de primeira necessidade com ótimos preços. Então, nada me impede de curtir um ambiente agradável e fazer algumas comprinhas.
Quem
não se sente à vontade para entrar nem nesses lugares e nem em muitos outros,
exatamente por causa desse aura de “isso não te pertence” passa a acreditar que
todo mundo que entra ali (ou está bebericando um café nas mesas) seja um
abastado baronete local. Até eu acreditei nisso no passado. A verdade é que
adoramos comer sardinha e arrotar caviar (agora nem mais caviar já que as ovas
de esturjão não estão mais acessíveis, assim como o marfim dos elefantes).
Enquanto
eu e meu amigo, sentamos do lado de fora, onde se enfileiravam várias mesas,
bebericávamos nosso café e “tomávamos água”, para desespero do garçom. Numa
mesa próxima, refestelava-se uma legítima família aristocrática das Campinas.
Reconhece-se por falar “ó” e não “oi”, e por um nariz em pé que provoca um
estranho silêncio ao redor. Estavam ali “despojados”, despojamento de
“boutique” (este conheço bem rs). E havia no senhor, ali sentado, e nas duas
senhoras, todos entre 50 e 60 anos, certo relaxamento dos corpos. Típico, como
só quem se sente completamente à vontade consegue obter na sala de casa. Eu não
os havia notado, pois nada havia digno de nota.
Perdíamo-nos
em nossa conversa pós-pandêmica sobre dores agruras e sofrimentos. E olhávamos
um “gatinho” (rapazes) ou outro que passava por ali. Mais e mais estamos nos
parecendo com Lady Granthan (a condessa viúva) e Isobel Crawley, da série
Downton Abbey. Antes eu imitava sua decoração e os móveis, agora com a idade,
apenas o cinismo e a língua afiada daquelas deliciosas velhas senhoras.
Subitamente,
tivemos a atenção chamada para nossos vizinhos. Sem que notássemos a
aproximação, um homem de bom porte, magro e aparentando uns 40 anos, estava
postado diante de uma acuada, estatelada, e também entre pálida e amarelada, e literalmente
congelada, família. Segurava pela muito grossa corrente um assustador e imenso
pitbull, preto com peito branco.
Os
corpos enregelados, as faces sem cor, ligaram nosso sinal de perigo. E enquanto
o assustador Pitbull esticava a corrente em direção a eles, o homem, num tom
cordial de voz, explicava que estava pedindo dinheiro. Não era para ele, mas
para comprar ração para o cachorro, pois o mesmo foi assim habituado. E no seu
rosto repousava uma dupla identidade, a dor de quem pede e uma secreta
satisfação. Os três mal conseguiam sair do torpor no qual entraram. O senhor
que estava sentado falou algo inaudível – devia ser o clássico, “não tenho
dinheiro, só uso cartão”-, e como uma desgraça lhe parecia iminente, enfiou a
mão no bolso traseiro e sacou da carteira “dois reais”.
Imediatamente,
a senhora Crawley me olhou, e disse com certa apreensão na voz: “Vadico, justo
hoje estou sem dinheiro!”
Imaginando
que se ele não tinha, eu muito menos. Ahhh, sim, eu sou um daqueles que nunca
têm dinheiro na carteira, e logo também não dá esmolas. E este meu amigo sabe
muito bem disso. Sei que dirão que sou metido e blá blá blá. Entretanto,
respeito demais a dignidade da pessoa e às vezes me nego a participar disso e
carrego minha culpa. Sempre me dói quando vejo alguém se humilhando a pedir. Já
a Sra. Crawley, é um bom coração.
Após
receber aquela dádiva generosa, o homem com seu belo PitBull, naturalmente deu
um passo adiante e se voltou para nós. E percebendo que tínhamos participado de
tudo, diminuiu a arenga: “os amigos têm como me ajudar? Ele só come ração! Não
precisa ter medo dele não, é manso. Só tem problema com cachorro!” – ao mesmo
tempo em que a família, magicamente se levantava, esgueirando-se dali.
Elogiamos o cão, por que era bonito mesmo. Um bicho sarado, bem cuidado e
amado. E lentamente saquei a carteira, e descobri que tinha ali cinco reais
guardados. Estendi-lhe sem demora. O homem agradeceu humilde, porém sem exagero
e se foi.
A
Sra. Crawley olhou-me, estupefata como sempre faz na série: “Violet, você tinha
dinheiro?!”
- Tinha. E sabe por que dei?
- Não. Você nunca dá nada. – Disse, senhora da
nossa longa convivência.
- Dei porque ele não estava pedindo, estava
extorquindo.
- É, as pessoas ficaram assustadas –
concordou. Nós também!
- E ele fez questão de dizer: “só tem problema
com cachorro...” E sabe onde estamos, né?! Num bairro com muitos cachorros e
pessoas que os levam para onde não deviam. Ele não iria atacar ninguém, mas
sabe do efeito que o bicho causa. Mas
este efeito não foi em qualquer lugar, só seria perfeito aqui. Nessa paisagem,
com essas pessoas. Sim, ele estava extorquindo, e dei o dinheiro por que ele
não estava pedindo. E também me proporcionou essa cena incrível. Não dei mais
por que não tinha.
Quem
sabe aos poucos a população desse país aprenda a usar as armas que tem para
conseguir o que precisa? Já deram o sangue, agora só falta mostrar o cachorro
para que certos cidadãos entendam sua necessidade. Se eu precisar pedir, não
levarei crianças. Daqui por diante, só PitBull... E ele será bonzinho, como o
do rapaz era. Claro, que quem tem culpa não acredita que o diabo pode ser bom.
Bem, terei de me contentar com meus pinschers, precisam de menos ração.
Essa
é minha crônica de hoje. “Crônica, um pedacinho do tempo” foi como interpretei
o que disse minha amiga Bernadette Lyra. Eis nosso tempo. Para logo aguardo
outras senhoras para o chá.
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