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A assexualidade como atoleiro sem saída na novela Travessia


Rudá (Guilherme Cabral) e Caíque (Thiago Fragoso)


Começo me apropriando de uma nota do Jornal Estado de Minas, assim me economizo de dizer o óbvio e não uso o ChatGpt:

“Caíque, personagem de Thiago Fragoso na novela Travessia, tem chamado atenção dos telespectadores. Ele namora a personagem Leonor (Vanessa Giácomo), e apesar de gostar muito dela, ele vive fugindo das investidas sexuais da namorada. No Twitter, muitos internautas tentam descobrir o segredo do rapaz, levantando hipóteses se ele seria gay, impotente ou carrega algum trauma. 

Na realidade, Caíque é assexual, tema que a autora Gloria Perez quer abordar em sua na obra. Outro personagem que ajudará a levantar o debate é Rudá (Guilherme Cabral), que é atormentado pelo padrasto Moretti (Rodrigo Lombardi) com piadinhas sobre encontrar uma namorada.

Os dois personagens apresentam aspectos distintos da assexualidade e ajudam a mostrar a diversidade mesmo dentro de uma mesma orientação sexual. João Pedro Vaz da Trindade Andrade, estudante de psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, coordenador do projeto Somos e pesquisador sobre gênero e sexualidade, afirma que é muito importante essa representatividade, tanto na novela como em outras obras, para nomear um sentimento que muitas pessoas até então tinham como ilegítimo.”

Eu não gostaria de estar na pele da autora Glória Peres nesta altura da novela Travessia. Farei como todo mundo e elogiarei a intenção. A assexualidade existe e é bom que seja abordada quer na literatura, quer na ficção televisiva. Entretanto, para isso é preciso conhecer, encontrar, entrevistar vários assexuais entre homens e mulheres. Assexuados são mais raros do que ETs. O assunto é mais complexo do que todos os outros relativos à sexualidade. Mais complexo porque todas as outras acepções de sexualidade lutam para explicitar o direito ao “desejo” e à “realização do desejo”. Para isso a regra é “assumir”, “explicitar”, “se impor ou enfrentar”, “Arrumar companhia” e “Final feliz”.

Neste esquema televisivo - não o da vida -, é fácil notar que essas etapas pouco imaginativas não cabem na questão da assexualidade. Ora, primeiramente, é bom lembrar que não desejar sexo com alguém é muito fácil atualmente. Mas tirando a questão do bom senso “não desejar sexo” tem uma série de causas e todas, exatamente todas, esbarram num problema fundamental relacionado à libido. Sim, a libido.

A libido é definida por Sigmund Freud e é componente de todo e qualquer ser humano. A libido seria praticamente o mesmo que a pulsão de vida. Ela é os anseios e os desejos, está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento e manutenção de uma vida sexual. A libido não está relacionada apenas ao sexo, mas a todo “desejo” de prazer existencial. Por isso ligada diretamente à pulsão de vida. Também - complicando - pode estar ligada à Pulsão de Morte, que são desejos que terminam por vir em nosso prejuízo. A libido está diretamente ligada à área de criatividade de nossa mente. 

Um indivíduo sem libido ou com ela muito baixa, pode ser facilmente reconhecido como uma pessoa completamente apática e sem vontades. Sem a libido as pessoas não teriam prazer nem comendo. A libido também pode transferir para outras atividades diferentes do sexo o prazer criador, como por exemplo, pintores, músicos, artistas extremamente engajados em sua arte, cientistas como Einstein, etc. Isto se chama sublimação, simplificando. Entretanto, uma pessoa que não esteja sublimando o sexo - por natureza - tem um problema com a libido.

Essa é a questão que interessa no assexuado, a outra que sobra, se ele encontrará alguém ou não, é muito estúpida. Digo estúpida, pois alguém que seja assexuado já está desde sempre nessa condição - da forma como a novela trata -, e já abriu mão da realização afetiva como a TV nos prega. Além do mais, essa realização afetiva (da TV) só pode ser realizada de uma única forma, com um casamento. E este seria assim: o Assexuado encontra um companheiro ou companheira que o ame, mas que transe com outra pessoa. Pronto. Aí está a saída da Glória Peres. 

Na realidade, o melhor dos mundos para o personagem Caíque seria uma mulher que simplesmente passe a viver sem sexo e só pense numa relação transcendente com o mesmo, sublimando a necessidade de sexo. De um ponto de vista do movimento feminino, seria muito machista, pois para uma mulher ficar com ele, deveria se castrar, tornando-se mais submissa do que qualquer mulher sexualmente submissa, pois esta seria tão submissa que abriria mão do prazer sexual. Não chego a achar a pior coisa do mundo, uma vez que podemos obter prazer higiênico vendo um quadro ou ouvindo um bom concerto.

Também existe a personagem Rudá, um rapazinho adolescente. Esta situação fictícia é tão “fora da curva” que nem sei o que fazer com ele. E a Glória também não. Afinal, é na puberdade e na adolescência que estas coisas “pegam mais” e Rudá não estaria nesse período da vida assumindo uma assexualidade, mas cuidando de participar de um grupo de amigos adolescentes com os quais ele se identificaria ou com os quais ele foi criado. E, neste contexto teria um sem número de crises antes de se quer imaginar o termo “assexual”. Em outras palavras, teríamos um personagem extremamente atormentado e sofrendo muito psiquicamente. Talvez ele fosse candidato a padre.

Se e somente “se” o assexuado existir no mundo real (como condição), o problema que falta enfrentar nessa ficção, e que a autora não entra em nenhum dos personagens, é a libido. A falta de libido transforma as pessoas em pastéis de vento, pastéis de queijo sem queijo, nem sequinhos, nem engordurados. Ninguém quer uma pessoa assexuada. Inclusive nem o assexuado quer. Efetivamente este ser tem um problema social bem complicado.

Recomendo à autora que faça os dois assexuados da novela criar um app para assexuados e assexuadas, assim isso faria a coisa funcionar quase magicamente. Quase?! Quase, por que afinal, depois de você encontrar quem não quer sexo (0,0000001%  da humanidade), você terá de descobrir se a pessoa é do seu gosto e se ela é boa companhia. Tendo em vista as dificuldades que essa pessoa sofreu a vida inteira para tentar realizar o desejo dos outros e tentar se adequar e se forçar a ter uma vida normal, boa companhia ela será apenas para o psicólogo.

Apesar do humor intrínseco do meu texto, não estou pensando efetivamente em pessoas assexuais, mas na forma como Glória Peres aborda essa questão. Da maneira como vem fazendo os dois atores perderam a chance de terem bons - ou até ótimos - papéis. Declamam textos perdidos, aqui e acolá. E já ficaram a muito tempo postos de lado ao longo da trama “chinfrim” desta novela que deve perder em audiência até para novelas religiosas da Record. Uma trama muito fraca, e tirando os assexuais, repleta de canastrões e canastronas e personagens completamente anódinas como o “professor” e a “Tia Cotinha” da namorada do Caíque. Inclusive esses dois personagens semi-idosos são os verdadeiros assexuados da novela.

Vou falar em outros termos. Você imagina o que é levar uma vida sem prazeres? Todo e qualquer prazer comprometido? Ou uma sensação eterna de que nada te agrada e que nada apetece? Você consegue imaginar o que é uma pressão constante para que você encontre um “par” para se casar? Mas aos poucos descobre que não quer nem encostar-se a outro ser humano quanto mais transar com ele?! E se transar, consegue imaginar a sensação de que terá participado de um “estupro consentido” (se violentado)?!

Outra coisa que falta nessa novela o tema decorrente do aprofundamento da assexualidade: a misantropia, ou seja, o ódio ao gênero humano. Ah... Estamos chegando ao cerne do que seria um bom drama! Se bem abordado uma personagem assexual seria uma grande protagonista e não um apêndice de uma novela ruim. Um psicopata pode ser um assexuado? Olha, seria uma boa explicação por que ele mata pessoas: frustração e raiva.

Além do erro de abordagem de Glória Peres, ela cometeu outro tentando acertar. Ela escolheu como personagens assexuados dois homens. É quase inimaginável a chance de homens  - que tenham a testosterona em dia - não quererem sexo e violência (atividades agressivas). Se eles não tiverem a testosterona em ordem a outra questão que surgiria seria a obesidade necessária das personagens, pois este é seu efeito mais visível sobre o organismo masculino. Quando eu disse que era sua tentativa de fazer a “coisa certa” ao escolher dois homens, é por que ela é da geração - um pouco anterior à minha - que teve de lidar o tempo todo, na mídia e na vida privada, com a palavra hoje esquecida e que nenhuma mulher quer ouvir falar: “frigidez”!

A razão por que Glória não escolheu mulheres para este papel de “assexuais” - provavelmente - é não desejar juntar assuntos. A frigidez - incapacidade de sentir prazer na relação sexual -, pode se parecer muito com a assexualidade, pois a falta de prazer pode levar a uma repulsa ao sexo. A frigidez tem uma série de causas, mas não é uma condição sexual. Bem, aí não teria graça. Não é mesmo?! Não, não teria graça, mas seria uma discussão bem interessante em horário nobre.

Entretanto, imaginar homens heterossexuais assexuados foi um bom exercício de ficção. Dizer que assexuados sejam heteros, homos ou anêmicos sexuais, é estranho, mas deve ser uma escolha de gênero e não de orientação sexual. Podemos especular, se o homem é assexuado, o que impediria que se apaixonasse pelo filho ou pela filha? Não haveria sexo de qualquer maneira, não é mesmo?! Quanto mais as linhas aqui se desdobram, mais vocês podem perceber como essa questão está sendo muito mal abordada na novela.

Para variar teremos o risco muito grande de que vários jovens que estejam com dificuldades de se relacionar comecem a assumir sua “assexualidade” em vez de lidarem com problemas reais. Eu, particularmente, não acho que seja um problema não se querer se relacionar sexualmente com ninguém. Entretanto, o que eu acho tanto faz quando é relativo ao sofrimento humano. Se essa condição existir - e não for apenas um momento de disfunção da libido (por ene razões), ela causa sofrimentos muito maiores do que aqueles que vêm sendo mostrados de forma fútil e banal na novela. Foi como eu disse lá no começo deste texto. Este tema foge do desenvolvimento clássico de questões sexuais da novela global. Logo, alguém não pensou nisso antes de começar essa bomba.

 

P.S.: Este é um texto de crítica relativo à elaboração de personagens e não um texto de esclarecimento sobre a condição sexual das pessoas. Para isso procure um profissional.

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