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Um fato novo no Natal

Trabalho limpo e higiênico no frigorífico

            Aquele parecia mais um dia normal como muitos foram durante tanto tempo. Levy ainda não sabia que um dado novo iria transformar um pouco mais o mundo. Logo de manhã se levantou lentamente, arrastou-se até o banheiro, tomou um banho. E pensava que isso era meio inútil. Vestiu-se rapidamente, deu uma última olhada para Suzete, ainda na cama. E deixou escapar um leve suspiro. Depois de pouco mais de vinte anos de casado ainda amava profundamente a esposa. Mulher admirável. Sentia-se orgulhoso de si quando a via. Nada de bom fizera, mas tinha Suzete.

            Caminhou célere até o ponto de ônibus, e precisou correr para subir em tempo no veículo em movimento. Ficou em pé, mas ainda estava confortável.  Dois pontos adiante lotaria muito, e chegaria, assim, quase sem ar no trabalho. Poucos quarteirões antes do seu ponto já podia ver os caminhões fechados chegando com a carga para o frigorífico. Passaria dez horas do seu dia ali. Havia até se acostumado. Desceu do ônibus, e sempre correndo, entrou pela porta lateral para os funcionários. Desapareceu corredor adentro para o vestiário. Agora, ao menos o ar estava mais frio, por causa do grande ar-condicionado central. Começou a vestir-se afobadamente junto de outros retardatários.

            - Calma Levy! Não precisa de tanta pressa!

            - E aí?! Bom dia, Joca! – cumprimentou o colega.

            - Já ficou sabendo da última?

            - Mano, acabei de chegar... – retrucou por força da evidência.

            - Nesse Natal eles abateram filhotes! Falou com certa excitação na voz.

            - Filhotes?! Repetiu Levy incrédulo e espantado. Mas, e o acordo que não permitia abate antes dos vinte anos?

            - O acordo está em vigor – explicou – mas, parece que é por pouco tempo. O governo permitiu que fizessem a experiência neste final de ano. Se der certo, poderão abater filhotes também. E adivinha?!

            - Adivinha o que?!

            - Nós teremos direito a levar um pra casa! – disse isso como quem já estivesse salivando.

            - Não sei Joca! Isso parece estranho. Abater os mais velhos, tudo bem! Mas filhote não parece muito certo.

            - Pode dizer o que quiser! Aposto que no fim do dia vai estar na fila pra pegar o seu! Disse o outro encerrando a conversa com uma gostosa risada.

            Foram para a linha de montagem, na verdade a esteira onde picavam e colocavam as carnes para processamento. Levy olhou tudo como se estivesse ali pela primeira vez, talvez fosse o fato novo que o despertara. Fazia sete anos que trabalhava no mesmo lugar e já havia francamente se acostumado. A rotina sempre igual, carne chegando, carne saindo. Ficara feliz por não trabalhar no abate. Não gostava de ver uma coisa que estava viva, estar morta no momento seguinte. Era mais fácil encarar as carnes quando não viviam mais, e quando as cabeças já haviam sido cortadas. Diziam que o processo era indolor. Um tiro rápido na nuca e o bicho já caía na prancha da guilhotina. A lâmina descia e o corpo escorregava para frente pela prancha, caindo na esteira. O sangue jorrava por todo lado. O corpo em seguida era pendurado num gancho. E assim se fazia, um depois do outro.

            O pessoal que trabalhava ali parecia astronauta. Só dava para ver uma parte do rosto por trás da máscara de plástico transparente, o resto era um macacão branco, luvas e botas brancas. Brancos por alguns minutos, logo ficavam inteiramente recobertos de vermelho. O sangue escorria até longas cavidades feitas no chão para que dali fosse para outro setor. Enquanto isso homens puxavam-no com grandes rodos. Uma verdadeira enxurrada. Ia escorrendo para a fabricação de morcelas e chouriços. Cairia em grandes tonéis onde seria processado.

            Como Levy bem dissera para Suzete anos antes, era difícil explicar o funcionamento de um frigorífico para quem nunca entrou em um. Lembrava-se ainda do choque quando viu tudo pela primeira vez. Ainda que os abates fossem feitos com o mínimo de dor possível, e as carcaças só depois disso enganchadas e levantadas pelos equipamentos, era impressionante ver aqueles corpos flutuando, indo de uma esteira para outra. Onde alguns operários cortavam e destrinchavam, separando as partes nobres e as outras não tão nobres. Enquanto o sangue escorria e funcionários vinham limpando.

            Era doloroso ver o destino daquelas criaturas recentemente mortas. O sangue ainda estava quente, as carnes ainda estavam quentes. Quando chegavam em suas mãos ele tinha de desmembrar. Ficava com uma parte não muito complicada, os membros baixos. Outros ficavam com partes mais difíceis, como remover os membros superiores, picá-los; outros abriam as carnes e delas retiravam as vísceras que eram muito apreciadas. Estas eram colocadas em grandes caixotes de metal que seriam levados para outra esteira na qual trabalhavam com este material. Levy não suportava a aparência das vísceras e nem o seu mau cheiro. Algumas tripas se furavam e fezes se misturavam com os bofes no caixote. Não tinha problema, pois tudo seria lavado e esterilizado várias vezes até o final do processamento.

            Como confessara à esposa só dois horrores eram piores do que o abate o tonel no qual as cabeças eram jogadas, antes de seguirem para o descarne, feito por mulheres. Centenas de cabeças, lisas, sem pelos com olhos arregalados, outros fechados e as bocas sempre abertas, alguma com a língua de fora, e tudo temperado por resquícios de sangue. Ficavam te olhando como se você fosse culpado pela vida e pela morte. Ele já assumira há muito tempo que era apenas um reles funcionário.

            O outro local espantoso era onde os muito gordos eram jogados sem cabeça. O tacho de banha. Enchiam-no e depois jogavam um pouco de banha dentro e ele começava a cozinhar e a derreter, a altíssimas temperaturas, o conjunto de corpos ali colocados. Enquanto uma pá eletrônica gigante ia revirando-os todos. Ao final a pá se elevava para fora e o gradil de metal que ficava no fundo era puxado pelas cordas de aço lentamente, aí se viam apenas os ossos que haviam sobrado. Os ossos quase secos eram postos numa caçamba e levados para outra fábrica, na qual se fazia botões e outros utensílios. Tudo era aproveitado, e talvez por isso parecesse desculpável todas aquelas mortes diárias.

            João Carlos, o Joca, aporrinhou-o o dia todo. Falava da filha que ia mal na escola, da sogra que não ia embora da sua casa. E por fim, depois de um curto tempo de almoço e muito trabalho a tarde, quando seus pés não se aguentavam mais dentro das brancas botas de borracha, tocaram a sirene. Soava como um hino à liberdade, pois o dia seguinte seria véspera de Natal e a jornada fora um pouco menor. Como bem previra o seu colega, ele foi para a fila com todos os outros para pegar o novo produto. Era uma sorte que os administradores do Frigorífico tivessem sido tão generosos. Tudo estava muito caro e ter garantida a Ceia ou o almoço de Natal era motivo de alegria.

            A fila andava um pouco lenta. Levy observava os amigos passando com um pacote embrulhado com um grosso papel oleado e, de forma muito retrô, amarrado em barbante, com direito a lacinho. Foi chegando a sua vez, e logo ouviu o “Feliz Natal” desejado pelas moças que entregavam a carne. Pegou seu pacote que parecia ter pouco mais de um quilo e meio, e voltou-se para a moça um pouco vesga que o atendia:

            - Não tem um bem maior? A família é grande – explicou.

            Ela pegou de volta e gastou um tempo procurando, e entregou outro, dizendo:

            - Aqui está! – e recomendou: Não se acostume, não?! Pare de fazer bebê que a família encolhe!

            Trocou um sorriso simpático com ela. E não queria admitir, mas estava feliz com o pacotão. Mais de três quilos. Alguns colegas tiravam sarro comentando que havia “proteção” para alguns, “por que só ele levava o maior?!” Não passava de galhofa de bons companheiros. Eram bem melhores do que a música que tiveram de ouvir o dia inteiro por causa da época. Alguém devia estar mesmo no espírito retrô, pois ouviram Luís Bordon e sua Harpa Paraguaia. Um clássico. Provavelmente na tarde de Natal iriam reprisar o filme “Esqueceram de Mim” pela milésima vez. Tinha impressão que seu avô havia assistido quando criança.

            Voltou rapidamente para casa, pois o Tadeu Miranda, subgerente na sua seção, lhe deu uma carona. Não quis comentar para não ofender, mas ele dirigia muito mal. Por vezes achou que nem chegaria em casa. E já mandara umas mensagens divertidas para a esposa se despedindo da vida. O único assunto do Tadeu:

            - Como você vai preparar? – falou apontando para o pacote.

            - Cara, não faço a menor idéia! Vou entregar nas mãos da Suzete. Só vou olhar na hora da ceia.

            - Você não gosta de cozinhar, não?! Pensei que ia fazer um churrasco ou até mesmo grelhado. E iria me chamar para tomar umas Brejas! – foi se convidando.

            - Até convidaria. E a Creuza com as crianças?!

            - Foram para a casa dos pais dela ontem! Vou ficar sozinho, é muito longe para ir e voltar em um dia ou dois.

            Respondeu tentando não parecer chateado. Levy prontamente o acolheu:

            - Vou ver com a Suzi se ela fará Ceia ou almoço. Aí te aviso e você vem ficar com a gente, combinado?!

            Tadeu sorriu, com os olhos ligeiramente úmidos, e agradeceu pondo a mão no seu joelho:

            - Pô, você foi um amigão agora!

            Mais alguns quase acidentes e Levy saltou e ouviu a buzina amistosa do amigo se despedindo.

            Já havia escurecido. Atravessou o pequeno portão antigo da casa ainda mais antiga. A pintura amarela de cal estava descorada há muito tempo. Das venezianas de madeira, um pouco apodrecidas, escapava a luz que vinha de dentro. Era o seu lar. Pobre, simples, herdado dos pais, que herdaram dos avós, mas seu lar. E lá ele tinha uma família feliz. Sentia-se um homem de muita sorte. Aquelas paredes abrigavam a pequena Madá, com três aninhos, o Gaspar com oito e que já ia pra escola, e tinha saído mais a ele, pois era um pouco alourado. E Susana, a filha mais velha, contando dezoito anos, “linda não assumida” como a chamava, pois se achava feia. Paulo, namoradinho dela, um pouco moralista para um jovem, provavelmente viria para o Natal. Mas Levy preferia que não. Ficar só em família era o melhor. E no fundo, esperava que o Tadeu tivesse o bom senso de não vir.

            E por que Deus os abençoara fartamente sua avó, a Dona Chica, magrelinha de cabelos pixainhos e branquinhos, sempre presos num coque, vivia com eles. Noventa e seis anos e as mãos trêmulas ainda faziam tricô para a família. Falava pouco, parecia que com a perda da mobilidade das pernas a língua também se fora. Entretanto, ela e Suzete eram os pilares do seu lar. Às vezes sentava-se no chão para que a avó fizesse cafuné em seus cabelos.

            Entrou e Suzete já lhe vinha ao encontro. Vestido xadrez recoberto por um avental molhado. Estava na pia às voltas com o jantar. As crianças, como sempre, brigando para ver quem ia tomar banho. Dona Chica mal sorriu de onde estava sentada, via a novela reprisada e estava azulada com a luz que vinha da TV, parecendo um ser mágico.

            - O que é isso? Perguntou Suzete já pegando o pacote - Está pesado! Foi logo abrindo um sorriso pensando no Natal.

            - Um filhote! Na verdade um filhotão! – esclareceu cheio de satisfação.

            - Um filhote?! Repetiu boquiaberta Suzi.

            - Sim! O que é que tem?

            - Pensei que não abatessem filhotes...

            - Agora abatem! Respondeu com um sorriso um pouco malicioso e um leve movimento das sobrancelhas. Era o que fazia quando desejava encerrar a conversa. Ela retribuiu o sorriso e foi logo emendando:

            - Deixa comigo! Já tenho uma idéia de como preparar!

            - Sabia que você iria saber o que fazer. E Levy, curioso acrescentou: O que fará?! Apenas para ouvir desapontado: “Surpresa”.

            Sentou-se próximo de Dona Chica e enquanto arrancava os sapatos, Gaspar que vencera a disputa para não tomar banho, veio lhe dar um beijo tímido. Pegou-o no colo e lhe fez cócegas, enquanto dizia: “Olha como é fácil ser feliz!” Até o menino pedir para parar, pois perdia o fôlego. E veio a pergunta de supetão: “Pai, que filhote é esse?” Um pouco constrangido, Levy tentou responder sem responder, mas sabia que deveria fazê-lo da melhor forma: Ora! Um filhote! Um filhote que nem você!

            - Igualzinho eu?! Repetiu com certo estranhamento.

            - Não meu filho. Na verdade bem mais novo. Deve ser um recém-nascido!

            - Um bebê?! A gente vai comer um bebê? Perguntou incrédulo, também se sentindo um pouco em perigo.

            Levy deu uma gostosa gargalhada. Isso tinha o efeito de tranquilizar todo mundo, inclusive o Gasparzinho: Não meu filho, somente nós temos bebês! Você foi bebê. O que vamos comer é um filhote!

            - Ah, que bom! Pensei que eu iria ser comida como os outros.

            - Não meu filho, você não será comida! Explicou Levy de forma firme e convicta. Como criança nunca deixa a pergunta morrer, ele continuou:

            - Mas pai, os humanoides são tão parecidos com a gente. Já vi na TV e na internet. E se nos confundirem e se nos levarem para o frigorífico e se comerem a gente por engano?!

            Com um rosto cheio de compreensão, ele explicou: “Eu também tinha esses medos quando pequeno. Mas vou lhe explicar o que meu pai me explicou: eles são comida e nós não”.

            - E por que não? Insistia o menino.

            - Ah meu filho, eles foram criados desde cedo para ser comida. Foram alimentados, limpos, raspados, tiveram uma vida boa até ultrapassarem os vinte anos. Depois eles são abatidos sem dor. E nós os comemos.

            - Ah! Disse Gaspar sentindo-se inteligente: Quem é comida nasceu para ser comida.

            - Sim, meu filho, isso faz toda diferença.

          - E por que nós comemos eles? – o pequeno não queria desistir. Levy estava quase perdendo a paciência:

            - Bem, nós comíamos animais, mas descobrimos que eram inteligentes e sensíveis. Não seria justo comê-los, seria?! – Gaspar respondeu um não com a cabeça de forma afirmativa.

            - Então, meu filho, há muitos e muitos anos ficou assim combinado: uns comem e outros são comidos.

            - Ainda bem que nasci aqui, né?! Afirmou o garoto, compreendendo o incompreensível. E, a última pergunta: Por que não paramos de comê-los?!

            - Ué, Gaspar, são gostosos! E me parece correto, se as pessoas desejam carne, que seja a delas, não é mesmo?!

            Enfim, para a sorte de Levy o banheiro ficou desocupado. Dona Chica olhou para o neto com certo ar de reprovação. Do alto da sua idade ela conhecera um mundo diferente. E parecia não achar as coisas tão simples. Ás vezes se recusava a comer carne, mas não sempre. Pegou a mão da velha senhora e estreitou-a longamente entre as suas. Enquanto isso, dava para ouvir da cozinha Suzete pendurada ao telefone, trocando receitas com a Verônica:

            - ... ah, eu já sei o que vou fazer. Já estou até preparando, precisa ficar pelo menos um dia marinando para pegar bem o sabor do tempero... ah.... quer a receita?! Anota aí: uma cabeça de alho, sem amassar os dentes, meia garrafa de vinho tinto, para dar um pouco de cor, duas colheres de sopa de sal, uma de pimenta do reino, só uma colher de aceto balsâmico, umas quatro folhas de louro, cebola ralada... pensando melhor, cebola não, cebola amolece a carne, e deve ser muito molinha já.... Coentro? Não, não gosto não, mas deve ficar bom. Menina, tive uma idéia maravilhosa, vou usar fios de ovos, mas vou escurecer eles com Shoyu. Hummm vai ficar muito bom. Ah, primeiro você dá uma boa assada em fogo brando, enrole no papel alumínio, mas por pouco tempo, no máximo uns quarenta minutos. E, no fogo baixo pra não queimar e depois...

            Ele se divertia ouvindo-a, mesmo que ela tenha ido para o quintal, quando percebeu que era escutada. Suzete era uma grande cozinheira, sempre pensando em pequenas surpresas e prazeres para a família. E gostava de vê-los todos com aquele ar de: Que maravilha! Que delícia! O Natal era o melhor dia do ano.

            O dia seguinte passou rápido. A curta jornada de trabalho levou todo mundo para casa mais cedo. Sabendo disso, Suzete resolveu deixar os comes e bebes para o almoço no Natal e, ao invés de fazer a Ceia, todos se enfiaram no carro do Tadeu, que havia se convidado. E foram bem apertados e desconfortáveis, assistir A Missa do Galo. Suzete, enfiada num justo vestido carmim, ia meio sentada no colo de Levy, meio pra fora do banco, prensada junto à porta do carro; enquanto Tadeu tinha de trocar as marchas roçando a mão pela perna de Levy. Dona Chica, abraçada com o bisneto no banco de trás, estava feliz. Suzana fora em outro carro com Paulo. E a pequena Madalena ficou na casa da vizinha até que voltassem. Não gostavam de levar crianças muito novas para lugares públicos. Como diziam, lugar de criança não é o lugar de adultos. Gaspar já era crescido o suficiente para ficar quieto, nem que fosse com um beliscão.

         Chegados ao local. Levy e Suzete saíram do carro rapidamente, enquanto ele abria o porta-malas para pegar a cadeira de rodas, ela retirou o Gaspar do banco para facilitar colocar a velha senhora na cadeira. Tadeu desceu, estranhamente lerdo, meio protegido do outro lado do veículo, como se escondesse alguma coisa. Deu uma ajeitada nas calças, pigarreou, e foi se achegando para ajudar. De forma um pouco atrapalhada Dona Chica se viu posta na cadeira. E, por sorte, eram dois homens, pois precisaram levantá-la para subirem as escadas.

            - Vamos, gente! Apressou-os Suzete. Estamos atrasados!

            - Mãe! Eu quero fazer xixi! – pediu o menino.

            - Agora?! – reclamou. Vá atrás daquela árvore ali e faz! Na Igreja não tem banheiro! Mandou, agilizando as coisas.

           - Não vou, não, mãe! Eu tenho vergonha! – disse timidamente Gaspar.

            - Que vergonha, o que?! Menino homem não tem vergonha dessas coisas! Ralhou Suzete. E completou: Vai logo, e encontra a gente lá dentro!

           A igreja estava completamente lotada. As pessoas adensavam-se para fora das portas. Um cheiro bom de incenso pairava pelo ar morno do ambiente abafado. Ouviam com boa vontade as palavras do padre e todo o ritual, em pé. Apenas Dona Chica estava sentada. Levy, ladeado por Tadeu e Suzete, segurava diante de si o pequeno, para que não fugisse correndo pela igreja. Paulo e Suzana demoraram a chegar, e não passou despercebido que ela havia mudado um pouco o penteado neste meio tempo. A voz italianada do padre ecoava pelo recinto, tinha um timbre grave, mas estridente no final das frases. Oraram um Pai Nosso coletivo de mãos dadas. E no momento em que se deseja “a paz de Cristo”, fraternalmente abraçaram-se todos. Sentiam-se verdadeiramente acolhedores e cristãos. Dona Chica discretamente enfiou o dedo no céu da boca para descolar a hóstia que o padre pusera-lhe na língua. Detestava aquele gosto de farinha.

            De repente a Igreja ficou toda escura. E num murmúrio crescendo, o côro começou a cantar Noite Feliz. Centenas de vozes o acompanharam. Celulares prontamente iluminados foram balançados ao ritmo da canção. Paulo, magro e de meia altura, parecia um branco cadáver sem expressão, ficou um pouco distante dos outros. Não queria que achassem que era da família. Suzete, Suzana e Dona Chica não conseguiram segurar a emoção. Podiam sentir a presença de Deus. E Gaspar perguntando e perguntando: Por que missa do Galo? O que tem o Galo? Comeram ele? Dessa vez a mãe disse desconversando: Logo, logo, você fará o Catecismo e saberá de tudo!

            - Mãe, o que é catecismo?

            Voltaram, contritos e aliviados dos seus pequenos pecados, para casa. Comentando como era bom para a alma estarem todos ali, juntos. Buscando fazer o que haviam aprendido, amar o próximo como a si mesmo e ter compaixão. E a prova disso é que Tadeu estava ali. João Carlos já havia telefonado, viria com a esposa para o almoço no dia seguinte. Resolveram deixar o quitute deles para o Ano Novo, para o qual convidaram a família toda. Aos poucos a família ia crescendo. Paulo iria trazer Lucas, seu irmão mais novo, que o seguia por todo lado e tinha mania de achar que era escritor. E, por fim, o velho cunhado de Levy, o solteirão Marcos também avisara que viria, e diria sua costumeira frase de entrada apontando para si mesmo: “Eis o homem!”. Se a comida é boa, o público é grande, já afirmava Dona Chica.

            - Môr! Disse Suzete: Por favor, antes de dormir arrume três pedaços de arame bem grosso, de uns cinquenta centímetros cada, ok?!

            Ele assentiu, e não perguntou para o que era, pois já sabia a resposta: surpresa. Entretanto, arame é para armar, montar alguma coisa. Isso ele já sabia. Depois de uma noite de aconchego e paz, encerrando-se com os festivos fogos dos vizinhos e as suas improprias bebedeiras. A noite desceu sobre cada um num sono profundo. O dia seguinte esperava aflito para chegar. Entretanto, nem tão aflito. Esqueceram-se da pequena Madá. Levy foi busca-la às pressas, e tomou-a nos braços enquanto esta dormia: “Papai Noel?” Perguntou grogue acordando. “Não, respondeu Levy, apenas papai!”

            Nestes dias de festas alguns acordam cedo enquanto outros ficam dormindo. A casa estava mergulhada em perfumes e aromas de comida. Marta e Joca haviam chegado de manhãzinha e ajudavam nos preparativos. Sidras eram colocadas às pressas no freezer para estarem geladas para o almoço. Não tinha taça para todo mundo, então os copos de massa de tomate começaram a surgir daqui e de acolá. Dona Chica acompanhava mais uma missa matinal na TV. Suzana acordou ao telefone, mandando Paulo e Lucas se apressarem. Era um burburinho só. Levy se levantou e descobriu que não havia mais café, logo de manhã. E fingiu que não se importava, praguejando entre dentes. Um monte de gente invadindo seu sossego. De repente um forte cheiro de oléo invadiu a casa toda, e se escutava gritinhos ansiosos de Suzete enquanto batia palmas de satisfação. A tal surpresa estava a caminho.

            - Oi, gente!! Eu trouxe a sobremesa: torta de limão! Se anunciou Marcos, espalhafatoso em sua chegada.

            - Torta da padaria, né, tio?! – comentou Suzana.

            - Mas é de limão, ué?! Respondeu sem perder a classe, e de bom espírito foi mandando: Bota na geladeira, sobrinha desalmada, ao invés de aporrinhar o titio!

            Todo mundo foi se encolhendo na sala conforme chegavam ou acordavam e se aprontavam. A cozinha estava proibida. Marta distribuía as cervejinhas, e às vezes ia até a porta fumar um cigarro. Os adolescentes ficaram disputando que música iriam colocar pra tocar, e as crianças fazendo o seu peculiar inferno. Marcos e Tadeu grudaram na conversa, enquanto Levy cutucava Joca apontando-os e perguntando o que tanto conversavam. Suzana sentara-se calada ao lado de Paulo e Lucas, que cruzavam as pernas como dois eunucos. Os olhos de Lucas corriam por todo canto, como se fosse um inesgotável poço de curiosidade; seu irmão encarnava um Moisés de mármore, cheio de verdades que não desejava dividir com ninguém. A pequena Madá ganhara um pedacinho de qualquer coisa para ficar mastigando pra não chorar.

            Enfim, Suzete, surgiu na sala, retirando o avental. E deixando a mostra seu surrado vestido xadrez, anunciou triunfante: Pronto! Vamos almoçar!

            Ao ouvir isso, todos se estreitaram pela porta um querendo chegar antes do outro. Levy ficou para trás junto de Suzi e riram dos gulosos que mal haviam se cumprimentado, entreolharam-se e deram um terno beijo e se desejaram: Feliz Natal! Caminharam enlaçados para a cozinha, e todos estavam estatelados em torno da mesa: risotos, salpicão, macarronada, Sidras geladas...

            Levy parou, não sabia o que dizer, Suzete olhou-o pressurosa buscando aprovação. Era maravilhoso. Ela se superara mil vezes. No centro da mesa havia uma criança, a pele toda tostada, feita a pururuca, cabelinhos marrons, olhinhos de uva verde, bracinhos e pernas abertos. Deitada numa manjedoura sobre salsinhas e muitos aspargos, nua, parecendo torradinha e crocante. E por trás da cabecinha uma auréola de papel alumínio...

            - Meu Deus! – exclamou Levy, e não se sabe exatamente o porquê do espanto. Dona Chica olhava com uma cara de desaprovação. Gaspar foi logo concluindo: “Um Menino Jesus de comer!” E Suzete, não aguentando mais, revelou: “E está todinho recheado de farofa, daquela bem molhadinha, feita com os miúdos do bebê!” Entre aplausos, vivas e “nossas” extasiados a aprovação foi geral. Rapidamente, cercaram a mesa. Madalena ficou no chão com uma mãozinha para roer. Mas antes que ela fosse atendida, pediram para Dona Chica escolher e pegar um pedaço. Empurraram sua cadeira o mais próximo possível da mesa. Ela olhou, olhou, e de repente, decidiu. Estendeu a mão e arrancou o pintinho torrado do menino, dando uma risadinha tímida e safada. Levou-o a boca, todos escutaram o cronch cronch e ela lambendo os dedos deixou escapar: “Hummmm...” E os aplausos e vivas ao Natal não se fizeram esperar mais. As sidras espocaram cheias de pressão.

            Levy fizera um prato para si, e escolhera um pedacinho da coxa. Com água na boca foi comendo. E se perguntava, lembrando-se do que lhe disseram, se isso seria o gostinho de um leitão com gordurinhas. Só faltava um limãozinho. Foi pensar e o limão apareceu. Suzete o conhecia muito bem.

            - No réveillon a festa é lá em casa! Reafirmou Marta para o casal, enquanto equilibrava um prato cheio. – Só não sei como irei te superar!

            - Bobagem! – respondeu Suzete sorrindo cheia de falsa modéstia, e não resistiu: Faz assado com batatas, cortado em pedaços! Muito mais prático para servir!

            Levy se afastou das duas enquanto trocavam receitas e impressões, e da sala olhava com carinho para sua grande família, e mesmo de boca cheia, repleto de gratidão, murmurou: “Feliz Natal! Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens por ele amados”.

Novas fãs do nosso trabalho!

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O sagrado pode se manifestar no cotidiano              De todas as coisas sensórias que me envolveram desde sempre o som é uma das mais fascinantes. Trago grudado ao espírito o canto da pomba “fogo apagou” envolto pelo silêncio da fazenda, ambientando a solitude do jovenzinho que sentava-se na improvisada jardineira da avó e olhava longamente para o campo. De um lado o pasto a perder de vista e de outro o cafezal assentado no morro. De um pouco mais distante vinha o som do vento assoprando forte nos eucaliptos, só quem ouviu esta melodia que rasteja pelos ouvidos e dá profunda paz sabe como é a música e o perfume que juntos vem e quando junto deles estamos ainda toma nossa pele a sombra fresca do “calipial”.             Trago no espírito meu pai assoviando. Era um tempo onde os homens assoviavam, e fazer disso uma arte também era parte do seu quinhão. Só com o tempo eu saberia que o som nos afeta fisicamente antes de nos afetar o espírito. O som toca o nosso ouvido, toca fisicament

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  (Continuo aqui o texto anterior. Passaremos incialmente pelos anos setenta, a televisão e suas influências e chegaremos aos poucos até os anos 90 e as profundas transformações sociais e sexuais que ocorreram na sociedade). Começavam os anos 70 e éramos apenas amigos! Uma das coisas que me passavam pela cabeça quando era menino (05/07 anos) é que eu deveria ter nascido mulher. Mas isso ocorria não porque eu desejasse os homens, mas porque eu era, desde aquela época, bastante caseiro e não queria sair de casa e nem ver pessoas. Depois aprendi a ler e tudo o que eu queria era mais silêncio e menos pessoas. Depois veio a música e aí eu queria ainda mais silêncio e nenhuma pessoa. Mas para um homem essas coisas não eram possíveis. Homens deveriam ficar o dia todo fora de casa trabalhando e fazendo coisas que não gostavam, pois era necessário para sustentar a casa. Então, o Luizinho queria ter nascido mulher para ser “sustentado” e ficar em casa. E eu não achava a vida doméstica tão terrív