Na pele carregamos o que importa |
Com habilidade o tatuador trabalhava
nas suas costas brancas. Sempre ficara espantado com a brancura daquela pele,
parecia translúcida. Tudo o que era desenhado nela se destacava. Kleberson estava
terminando um grande mosaico começado havia vinte anos antes. Quarenta
quadrados com um xis no meio. Cada um representava seis meses desde a sua
chegada. Fizera um por vez, a cada semestre. A arte começou nas costas na
altura dos ombros. Na primeira fileira os quadradinhos possuíam um tamanho
razoável, quase como um porta-copos. A intenção era marcar o tempo, as alegrias
e sofrimentos vividos na cidade grande.
O
tempo passou e, naquele momento, Bill estava terminando o quadragésimo. Oito
fileiras de cinco quadradinhos cada. Entretanto, tiveram de ir diminuindo de
tamanho conforme o tempo passara, pois o dono do corpo não tinha pensado em
ficar tanto tempo na cidade, e o espaço nas costas rareava. Ainda assim, não
era um trabalho feio ou desprovido de arte. Passara da empolgação feliz do
primeiro rabisco da primeira tatuagem ao desânimo resignado do último traço da
última realização. No entorno da maca revestida de corvim preto onde se
deitava, além dos instrumentos do tatuador, as imagens de vários desenhos e
artes jaziam dependuradas pelas paredes. Fotografias e imaginários pertencentes
ao supostamente marginal universo da tatuagem abundavam no local. Quase não
havia mais espaço no preto das paredes e aos poucos, deixavam de serem tão
escuras para se tornarem uma espécie de maravilhoso show do grotesco, cheia de
figuras amareladas pelo tempo.
Algumas imagens estavam lá desde a
primeira vez. Junto do olhar empolgado do primeiro traço do primeiro quadrado,
Kleberson se deixou levar pela beleza e magia de todas elas. E além do seu
plano inicial decidiu dar a si mesmo, a título de incentivo, um presente:
tatuou no ombro esquerdo um unicórnio belíssimo. Não era um ser mitológico
cheio de magia e segredos, não. Era mais filiado à animação da TV Meu querido Pônei, e pouco acima dele
pediu para que fizesse um pequeno arco-íris. O tatuador estranhou o gosto do
rapaz, mas fez o desenho e a arte ficou ótima. Saiu de lá muito feliz. Assim
que pôde colocou o braço pra fora buscando a admiração dos passantes na Avenida
Paulista. Rapidamente aprendeu que nem todos têm bom humor ou ingenuidade,
sempre alguém dava um risinho cretino e continuava passando. Kleberson ficou chateado
no começo, depois torcia apenas para ser ignorado. Não ficou arrependido das
suas tatuagens. Recusava-se a baixar a cabeça para “esse povinho da cidade
grande”.
Logo vieram outras tatoos, agora já estava ficando íntimo
delas. Tão íntimo que resolveu fazer uma para cada momento importante que
tivesse: um novo emprego, a saída do emprego ruim, o começo de um namoro, o fim
de outro namoro, o dia de uma conquista especial. Pensou em tatuar o retrato da
mãe, mas não tinha dinheiro para tanto. Então mandou escrever “Mãe só tem uma:
Dona Rosângela”. A mesma Dona Rosângela com a qual só conversava às vezes por
telefone. Já que escrever e rabiscar era mais barato, decidiu tatuar o nome das
namoradas. Mal começava um namoro e mandava escrever o nome. O primeiro foi da
Thayane, ficava do lado esquerdo, no alto das costelas, começou com letras
grandes. E depois Inezinha, Michelle, Lara, Jussara, Dafne, Carla Júlia, Marilu,
Vera Lúcia... A sucessão de namoradas levou a uma escada descendente de nomes
cada vez menores. A cada namoro terminado ele mandava passar um risco sobre a tatoo da malvada que o desprezara.
Junto
às mulheres da sua vida veio a imagem de Nossa Senhora Aparecida, gravada no
ombro direito. O tatuador sugeriu algum outro lugar qualquer, mas ele estava
decidido. Não importando a fé, de longe a imagem parecia um triangulo azul com
um traço marrom no meio. Nas panturrilhas foi logo botando umas tribais e as
repetiu também em torno dos pulsos. Lembrava um gladiador romano, ou um
escravizado antigo com braceletes aos quais se conectavam correntes. Chegou a
fazer uma serpente se enrolando na sua cintura e a cabeça da mesma descendo em
direção ao pinto. Em meio aos pentelhos parecia que a cobra ia se esconder no
mato. Depois veio a águia, no dia em que conseguiu uma suada promoção. Havia se
tornado chefe de seção do callcenter,
no qual até então era vendedor de serviços de internet. Enfim, o curso de
administração que fizera tinha valido a pena. A mudança do salário era pequena,
mas pagou a tatuagem em seis vezes.
Ainda
vieram muitas outras, a que mais se destacou foi o Cristo Crucificado cobrindo
quase todo o peito. Era uma imagem muito bela, cheia de sangue e dor e pagou-a
com muito sacrifício. O tatuador mandara-o voltar a cada seis meses durante
dois anos para completar a obra de arte, não por que o trabalho fosse tão
difícil, mas para ter certeza de que Kleberson pagaria tudo certinho até o fim.
Depois veio a fase dos dragões. Ao todo eram seis, em forma de serpente,
aqueles chineses clássicos, realizados em preto azul e vermelho. Ele era todo
satisfação.
Sempre
voltara com muito gosto ao tatuador. Depois de dezenove anos já parecia mais
abatido. Entretanto, ainda sentia muito prazer em realizar algo novo. Às vezes
dizia que aquilo era a coisa mais importante da sua vida. Essa afirmação vinha
seguida sempre de um emprego perdido, ou da expulsão de alguma quitinete,
república ou pensão por falta de pagamento. Ele não era um mau rapaz, mas vivia
sozinho em São Paulo, sem parentes, poucos amigos. Amigos?! Os de São Paulo,
falam oi no trabalho, até saem contigo, mas nunca te convidam para ir na casa
deles e nem para se tornarem íntimos.
Kleberson
nem se lembrava de quantas namoradas ele não sabia onde moravam, ainda assim
tinha o nome delas gravado na carne. Passara anos buscando vencer na vida,
conquistar amores e fazer amigos. E notara que estava irremediavelmente sozinho
no dia dos namorados, no Natal e às vezes até mesmo no Ano Novo. A cidade não
perdoava o fracasso, e por mais lutasse ele não era diferente da multidão que
entrava no metrô ou pegava o trem para a periferia e subúrbios. Todos tinham a
mesma cara que a dele. Entretanto, só ele tinha aquelas tatuagens. Qualquer um
pode ser tatuado inteiro, mas só ele possuía aquela coleção de escritos e
imagens. Tornara-se único de alguma forma. A intenção nem tinha sido essa, mas
agora, no resumo de uma vida, era o que ele tinha de seu.
E
neste dia onde encontramos Bill e Kleberson, ele além do quadragésimo
quadradinho queria fazer uma bela tatuagem no lado esquerdo do peito. Localizá-la-ia
um pouco para cima do braço da cruz de Cristo. Já amadurecera a idéia em casa,
seria o Papai Noel da Coca-Cola, o bom velhinho, branco, de barba branca, roupa
vermelha com aquele eterno “Ho, ho, ho!” colado no rosto. Novamente o tatuador
questionou-o para verificar se tinha certeza. Era inútil, ele sempre tinha
certeza.
-
Mas para que você quer fazer o Papai Noel da Coca-Cola?! Não vai combinar nem
com o Cristo e nem com o Unicórnio!
-
Não me importo, só quero que quando me olhem se lembrem do Natal! E que neste instante
estejam comigo e seja Natal.
-Ahhh
– fez o Bill, descrente -, que coisa bonita... E com quem você irá passar o Natal?!
Já tá logo ali. – lembrou a proximidade da data.
-
Ainda com ninguém. Não tenho dinheiro para ir pra casa da minha mãe, não tenho
namorada e os amigos irão passar com a família ou viajando.
-
Tem sido sempre assim?- questionou o tatuador.
-
Ás vezes sim, às vezes não. Mas acho que sempre estou só no Natal. Dos vinte
anos que te conheço, pelo menos dezessete passei sozinho. Sem ceia, sem almoço
com um monte de gente.
O
artista tentou consolá-lo:
-
Também não tem sido muito diferente para mim...
-
Vamos passar juntos esse ano?! – propôs, se alegrando com a ideia.
-
Não – respondeu Bill -, já tenho compromisso. Vamos deixar para outro ano, não
é mesmo?!
A
resposta, ainda que esperada, pois se tornara experiente em ser posto de lado,
foi como uma facada. E decidiu de imediato:
-
Faça seis Papais Noéis!
-
Mas, onde?! Não tem muito espaço! – questionou o tatuador, desconfiando da
atitude estranha. E ouviu a ordem, vinda numa voz de pouco caso, quase blasè:
-
Tem um monte de espaço, faça menorzinho onde não couber do tamanho original.
Nada
mais restava do que concordar,
-
Está bem! Não sei se é a melhor escolha! Mas pagando bem, que mal tem...
Pela
primeira vez Kleberson ficou em silêncio, amuado, enquanto o trabalho era
terminado. Precisariam de algumas sessões a mais para completar o pedido. Não
se fez de difícil, foi e voltou quantas vezes foi necessário. Já ao sair dali
no primeiro momento se arrependera do seu rompante, entretanto, voltar atrás
seria dar mostras de fraqueza. Era um homem maduro, interessante, e tomava
apenas as melhores decisões. Isso dizia de si para consigo mesmo.
Bill
não desejou demonstrar, mas teve pena do cliente. Ficou ensimesmado ao
finalizar o primeiro Papai Noel e levá-lo até a porta de saída. Depois de
tantos anos de clientela, já se sentia praticamente amigo. Sentou-se em meio ao
espaço recoberto de beleza e grotesco. Uma fraca lâmpada incandescente fazia
atmosfera para ele tomar seu uisquinho. Sentia-se um homem de sorte, pois logo
ao chegar à cidade conseguira um espaço para atuar. E sabia que não havia feito
grande coisa na vida. Entretanto fizera bem feito a mesma coisa todos os dias.
Muita gente faz isso, e nem sempre dá certo. Tivera sorte também. E era isso
que o incomodava. Kleberson era um homem realmente esforçado e íntegro. Talvez
não devesse ter insistido tanto em ficar em São Paulo. Talvez devesse ter ido
embora logo nas primeiras dificuldades. Sabia também que o mundo é cruel, pois
se desiste rápido dizem que não é perseverante. Se esmorece dizem que não gosta
de trabalhar. E quando volta pra família, sempre será o fracassado recolhido
que voltou ao lar. Não importa quanto sucesso tenha depois, sempre restará o
fracasso de São Paulo, aquilo que poderia ter sido e não foi.
Nisso,
morar ali no estúdio da Consolação foi útil. Via todos os dias e todas as
noites pessoas deslumbradas. Uns chegando agora, outros há mais tempo e outros
ainda drogados, alcoolizados e já jogados no chão. E havia aqueles que
conhecera com o tempo, não por que quisesse, mas por força das circunstâncias,
os marginais. Os bandidos realmente dignos deste nome. Tinha clientes que
viviam nos Jardins, que nem era tão distante, mas os graúdos viviam em Moema e
trabalhavam na Faria Lima. Se é que dá para chamar o que fazem de trabalho. E
assim pensando, sem notar, uma idéia veio se insinuando em sua cabeça. Talvez
ela tenha sempre estado ali e não tenha percebido. Ele tinha uma encomenda
feita a muito tempo, de difícil concretização. Somente agora percebia que
Kleberson poderia se dar bem. Suas tatuagens foram as escolhas mais burras que
poderia fazer, no entanto, poderiam salvá-lo daquela vida. Num estalo se
lembrou de um nome, e foi procurá-lo no fichário antigo e amarelado.
Telefonou,
temendo que o número tivesse mudado. Mas não. Mal cumprimentou quem estava do
outro lado da linha, interessava ir logo aos negócios:
-
...então... A encomenda que você fez pr’aquele bacana demorou mais apareceu...
Estou com nome, endereço e telefone dele... Anota aí, Kleberson... Não, não
precisa me pagar nada, não! Se é um desafeto? Não, muito pelo contrário!...
Trinta por cento?! Fala sério, é muito dinheiro! Não precisa, não... Então, vou
aceitar... Ok! Ok! Ó, mas liga pro cara, hein?! Falou!
Desligou
o telefone esfregando as mãos de contentamento, sem acreditar que havia ganhado
uma bolada daquelas sem fazer absolutamente nada. As mãos suadas, o coração
disparado. Estava rindo sozinho. Até pensou em dar um grito de alegria. Em meio
à boa nova, de repente se preocupou, teria feito a coisa certa? Tentou
desanuviar tomando mais um uisquinho. Se ele iria ganhar aquela grana toda, a
sorte desta vez tinha sorrido para Kleberson. Escolheu acreditar nisso. Ainda
não havia pensado bem no assunto. Afinal, sempre tinha achado que era lenda
urbana. E agora, de si para consigo, dizia com certa admiração: “São Paulo tem
de tudo...” Iria terminar o trabalho todo antes de lhe contar. Ou melhor, nem
contaria, seria melhor deixar que se virasse com o cara que iria fazer o
contato. Seria a sua fada boa e ele nem imaginaria. Nada como fazer uma boa
ação na época do Natal.
Três
semanas depois, Kleberson, ainda um tanto quanto eufórico apareceu no estúdio sem
avisar. Por sorte, Bill estava sem clientes naquele fim de tarde e quando se
deu conta estava sendo abraçado. Foi amistoso, mas prontamente se desvencilhou
do abraço um tanto quanto desconfortável:
-
Mano! Muito obrigado! – agradeceu Kleberson: Nem sei como te explicar. Mas o
seu trabalho está valendo milhões! E querem a minha pele!
O
tatuador se fez de desentendido, “Como assim, querem a sua pele?!”, o outro explicou
afobado:
-
Ainda ontem um japonês bateu na porta do meu kitnet. Estranhei, pois o porteiro
não interfonou. Como ele conseguiu subir não sei. – e quase sem conseguir
explicar irrompeu - Cara!! Você não vai acreditar! Um treco, mó estranho! A
empresa em que ele trabalha lá no Japão, a Yacusa, faz uns investimentos no
mundo inteiro. E eles pagam por peles tatuadas...
-
Não acredito... – fez o Bill, sabendo a verdade.
-
Acredite!! – respondeu muito empolgado: Mano, vão me dar um milhão!
-
Não pode ser! Em troca da sua pele? Mas como você vai viver sem ela?! – se fez
de ignorante. – Esse é um treco perigoso.
-
Não, larga de ser besta! Só vão arrancar minha pele quando eu morrer!
-
Ué?! E vai ganhar um milhão pra esperar?!
-Não
– esclareceu Kleberson -, ganhei um milhão por ter assinado o contrato doando
minha pele para eles. Agora é só viver e conservar minhas tatuagenzinhas
queridas! Logo, logo virei fazer uns retoques!
E
Bill, escondendo sua secreta satisfação, comentou como qualquer outro amigo faria:
-
Sei não... Já assinou?! Tem de tomar cuidado com essas coisas...
-
Deixa disso! Os japoneses são sérios! Eles prometeram esperar, e vão esperar.
E,
por fim, o inédito aconteceu, parecia que a amizade realmente despontara. Dias
depois passaram juntos, ali mesmo no estúdio, a Ceia de Natal. E Bill, que
mentira ter um compromisso para a data, dissera simplesmente que fora
“desconvidado”. Nenhum dos dois ainda recebera o dinheiro, mas já estavam
gastando por conta. Encomendaram umas comidinhas, peru assado, pernil de porco,
arroz com passas, maionese, uma farofinha, uns espumantes... E muita conversa
fiada sobre as mulheres malvadas que os abandonaram. Na opinião deles todas
eram interesseiras, e por isso no novo ano se dariam bem. Agora estavam cheios
de dinheiro. Até combinaram frequentar o Spot, um restaurante conhecido pela
frequência chique, próximo à Av. Paulista.
Na
noite do réveillon, Kleberson não apareceu. O combinado era passarem a virada do
ano nos Jardins, bebendo espumantes baratos na calçada enquanto viam os fogos
queimarem. Inutilmente, Bill, telefonou. Só dava caixa de mensagens. Estranhou,
mas não iria até onde ele morava, então ficou tentando e tentando o celular,
enquanto xingava o amigo “Filho da puta, me deixou sozinho!”. E, por fim se
cansou. Viu espocar os fogos de artifício, cumprimentou os passantes que não
estavam nem aí para aquele bêbado. Enquanto ele contabilizava mais um vazio
para a coleção.
Na
semana seguinte o ano começara efetivamente. Voltara ao trabalho das tatuagens
com afinco. Todo dia tinha alguém ansioso por carregar marcas, desenhos, linhas
perdidas pelo corpo. Todos os dias vinha alguém com um sonho, e Bill se
esforçava por transformá-lo em realidade. Entravam e saiam do seu estúdio. E
isso o deixou bem feliz, pois as semanas adentraram o ano, e logo os meses, e a
promessa que recebera de 30% do valor do contrato não se concretizara. Teria
Kleberson desistido e ido embora? Nunca mais atendeu ao telefone, e também não
veio retocar nenhuma tatuagem. Até ligou para o número do cliente que desejava
a pele do amigo, mas ninguém atendeu. Era bem provável que tivesse feito o que
todos fazem quando ganham muito dinheiro, mudou de endereço e de amigos. E o
que é pior, ainda deu um jeito de ficar com a sua parte do dinheiro.
Aos
poucos voltou ao que sabia fazer de melhor, o mesmo, sempre o mesmo. E tudo o
que saía da rotina na rotina desaparecia. Após seis meses dos acontecimentos,
instintivamente aguardou o antigo cliente. Viria fazer mais um quadradinho
naquela pele branca? Novamente os dias passaram enquanto ele pensava na
vacuidade da vida. Tantas pessoas passeavam pelas ruas marcadas por ele,
enquanto lhe restava a solidão do estúdio todas as noites. Tantos admiravam o
seu trabalho, entretanto, só aquelas velhas paredes sujas o olhavam com alguma
condescendência.
Em
meio à noite de um dezembro, enquanto bebia seu uisquinho e tragava lentamente
o cigarro solitário, o telefone tocou. Atendeu sem pressa:
-
Quem? ... Ah, você... Caralho, quanto tempo?!... Mano, festa de fim de ano da
sua empresa?! Aí na Faria Lima?! Pô, demorô, tô dentro!... muita champanhe...
Whisky escocês! Mulherada... Ah, a mulherada não é pra mim?! ... Ok, ok, vou
assim mesmo!
Bill
procurou a sua melhor roupa no armário, afinal, não era um evento qualquer. Era
uma festa na cobertura de uma empresa importante na Avenida Faria Lima. Com
certeza iria ter até champanhe com ostras. Odiava ostras, mas faria uma
concessão para o espumante importado. Foi pro Metrô, linha verde, linha amarela
e num instante já estava por lá. Caminhou um pouco até chegar ao prédio. Parou
em frente daquela maravilha arquitetônica. Olhou-a debaixo para cima. Ainda se
espantava como um interiorano que acabara de chegar na grande cidade, e se
perguntava quem projetava aquelas maravilhas. Pareciam feitas para demonstrar
poder. Ao mesmo tempo, pessoas pequenas e simples como ele se sentiam maiores
só de estarem perto daqueles edifícios e parecia que suas esperanças de uma
vida melhor não eram tão descabidas. Este era o charme da Avenida Paulista, um
monte de gente ia para lá apenas para passear a sombra da riqueza. E aos poucos
a riqueza maior se transferira para outro lugar, o verdadeiro poder vinha deste
novo endereço. E Bill estava bem em frente a ele.
A
beleza de São Paulo é que às vezes, somente às vezes, o pobre sente que foi
agraciado, reconfortado pelo convite de um evento. E desta forma acredita
participar da riqueza. Só aos poucos percebe que apenas jovens bonitos e
bonitas são convidados, descolados e antenados que darão notícia nas redes e
nas TVs; e estes levam consigo alguns agregados, personagens marginais da
sociedade que comem e bebem as migalhas. O tatuador não era ingênuo, não depois
de mais de vinte anos em São Paulo. Não sabia ao certo porque fora convidado,
porém, não perderia uma festa por nada. E dizia-se: “Fodam-se, ‘farialimers’!”
Deu
alguns passos até a portaria, se registrou, tiraram sua foto, informou do que
se tratava, buscaram seu nome numa lista, e enfim, foi admitido no local.
Acumulou-se no elevador junto a outras pessoas, rapazes e mulheres muito bem
vestidos e já um pouco “alegres”. Quisera tanto estar ali que nem tomou um
“esquenta”, talvez fosse receio de não aproveitar tudo o que a festa iria
oferecer. O convite foi muito em cima da hora e a festa já ia adiantada, pois
costumam começar logo após o expediente e já eram quase onze da noite. Saíram
do elevador.
Bill
já foi olhando no entorno, entretanto, não conhecia ninguém. O último andar não
era uma cobertura com piscina como pensou, mas um grande conjunto aberto de
escritórios e algumas salas de chefia envidraçadas. Tudo decorado com móveis,
quadros, tapetes, etc, ao estilo dos anos setenta. Tudo era novo, mas lhe
parecia velho, extremamente velho. Se
sentia um pouco fora do padrão do lugar. Estava bem vestido, mas era bem
vestido padrão Renner, Riachuelo, C&A. O pouco que podia ver e reconhecer
nos funcionários menos graduados, estavam de Thommy Hilfiger, Brooksfield, Hugo
Boss, marcas muito caras para ele. Porém, não tinha condições de reconhecer os
Lagerfeld, nem os Ralph Loren, Gucci, Oscar de La Renta, Dolce e Gabbana e
outros que ainda eram talentos promissores extremamente caros. Usassem o que
usassem, as grifes já estavam embebidas em champanhe, uísque, gin... E sim,
havia ostras e mais ostras.
Quando
bebem, ricos, pseudo ricos, agregados e pobres se igualam. Se parecem e até
mesmo se esquecem de quem são, do que podem, do que não podem. Falam alto, riem
e gargalham estrondosamente, e acreditam que qualquer coisa é digna de graça.
Todos sentem que são o máximo enquanto o álcool sobe. Até a música que ouvem é
a mesma, quando perdem os limites é funk carioca que ouvem, e dançam e se
esfregam, e rolam pelo chão e sofás. Era uma santa ceia estranha, pois os
pobres faziam parte do cardápio.
Bill
entrou exatamente quando um grupo brincava de ver um rapaz fazendo strip-tease,
e nem era profissional. Era o primeiro daquela noite, mas não seria o último.
Foi andando, logo estava no centro da grande sala. Todos se mostravam felizes.
Ao fundo, atrás dele, dois pequenos abajures com imagens bastante coloridas
fazendo parte da decoração de Natal, um de cada lado do sofá; não chamavam de
todo a atenção, pois havia coisas mais interessantes acontecendo. Logo ali ao
lado uma grande árvore de Natal. E as diversas caixas vazias, de todos os
tamanhos, papéis, fitas, sacolas plásticas, demonstravam que antes de tudo
ocorrera um amigo-secreto típico desta época do ano. Onde a brincadeira é
revelar quem é quem. Só diversão, pois ninguém quer saber quem é quem.
Olhava
em volta e o amigo que o convidara não parecia estar em lugar nenhum. Mal
chegara e o garçom já lhe pusera uma taça na mão. E esta mui rapidamente foi
trocada por outra, e outra e outra e mais outra. E depois vieram os whiskies.
Logo, Bill estava rindo, sorrindo e gargalhando. Com o passar das horas se
sentia formigar de tanto álcool. Não importava o que fizesse ninguém queria
saber muito dele. Nem as mulheres e nem os homens. Ali num sofá tinha uma
buceta sendo gulosamente chupada num revezamento do qual ele fora excluído;
mais ali num canto um rapazinho estava servindo três ao mesmo tempo, e também
já não cabia ele. Não importava por onde rodasse, sobrara-lhe apenas a comida e
o álcool. Quem diria, até pessoas bêbadas andam com gosto social ultimamente.
Dançou e dançou, ninguém lhe disse que estava grotesco rebolando, mas se sentiu
assim. E logo iria entrar na fase da bebedeira onde a tristeza bate.
Buscou
um lugar para se sentar. Encontrou o sofá entre os dois abajures natalinos,
cuja luz era reconfortante. As roupas do stripper
improvisado ainda estavam ali. Jogou-as no chão. Serviu-se de um farto copo de
whisky oferecido pelo garçom. Tomava-o a goles pequenos. Observava a orgia
dantesca à sua volta. Os funcionários de respeito há muito haviam ido pra casa.
Ficaram os poderosos e as poderosas, e os que não conseguiam mais sair dali sem
ajuda. E outros, que como Bill procuravam alguma inspiração para continuar
fazendo o mesmo no dia seguinte. A música aquietara-se, e puseram jazz que às
vezes era agitado e às vezes era nostálgico e soturno.
-
Que abajur ridículo! – comentou uma moça vestida de vermelho, abraçada em outra
de verde. Trôpegas se apoiavam. Em pé, olhando o que de alguma forma lhes
causava espanto.
-
O outro não é nada melhor! – emendou a de verde apontando.
E
o olhar de Bill, instintivamente, acompanhou os comentários, sem de todo
prestar atenção nos objetos:
-
Cara! Que esdrúxulo! Tem vários Papais Noéis da Coca-Cola, pedaços de uma
cobra, mistura de tribal com um monte de nomes riscados...
E
a de verde, largando a amiga, foi até o outro lado do sofá, e curiosa olhou o abajur
em todo seu entorno: Cruzes! Que cafona!! – completou: Será que nos anos
Setenta usavam mesmo umas coisas assim?!
-
Não sei! – respondeu a moça de vermelho – Eu não tinha nascido!
Bill
tentou calcular as suas idades enquanto se afastavam dali, mas foi inútil.
Talvez tivessem nascido depois dos anos 2000, um pouco antes, talvez. Olhava-as
com os olhos embaçados e cansados. Ele havia nascido nos anos oitenta, por isso
sabia que o mau gosto dos anos setenta não eram tão grande assim. De que
adianta o dinheiro se as pessoas são desprovidas de senso estético e de
qualidades artísticas?! Perguntava-se, sem atinar com uma resposta. “Os ricos
do Brasil não têm classe, não têm cultura...” vinha à sua mente a frase de um
cliente que era aluno da USP. Olhou para o abajur com atenção. E o senso
estético dos ricos não parecia tão ruim, pois era recoberto por desenhos de
estilo tatoo, entretanto, seus olhos
estavam parecendo recobertos por areia. A vista embaçada, o álcool enfim o
abatendo.
E
entre as muitas coisas que presenciara naquela noite e as muitas lembranças que
lhe vinham à mente naquele momento embebido em whisky escocês, uma delas lhe
chegou aos lábios: “Kleberson, meu amigo, que fim você levou?! Você iria gostar
de estar aqui agora!” Ainda, como que por instinto, pegou o celular e ligou
para ele. “Este número não existe” informou a voz da operadora do celular.
Olhou o aparelho. Desligou. Ficou ensimesmado. E ainda que faltassem dois dias,
disse, pois não importava o dia exato: “Feliz Natal!” Como não tinha com quem
brindar, voltou-se para um dos abajures e levantou o copo. Por um instante
sentiu, intuiu a penumbrosa verdade, e disse uma segunda vez, agora de forma
mais intima: “Feliz Natal, meu amigo...abajour...”
Caiu
num choro doloroso e convulsivo. Era o último estágio da bebedeira. Entorpecido,
anestesiado de todo para a vida. Talvez em algum lugar de si ele soubesse o que
não gostaria de saber. Visse o que não gostaria de ver. Talvez todos vissem. Talvez
todos vejam. Talvez todos saibam. Mas fingem não se importar, para que as suas
chances continuem a existir. E surdos não se ouvem e nem se lembram: “É misericórdia
que quero...”
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