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Noite de paz, noite de luz

            

Pastor adorando o menino Jesus

Ajoelhado ali junto à manjedoura, enquanto Maria orava contrita pelo menino, José insistia em procurar nele algum traço físico, alguma semelhança com sua família. Observado pela vaca e o burro, ele ainda estava mergulhado em dúvidas.  Seus olhos iam do menino para Maria, de Maria para o menino. Nem tanto para saber se havia semelhança entre eles, mas para ver se ela estava de alguma forma constrangida. Entretanto, desde o nascimento ela baixara o olhar, como se estivesse numa eterna prece envergonhada.

            Ele gostaria que ela o encarasse e que estivesse com olhos brilhando e os lábios cheios de sorriso. Mas não, ela fixara seu olhar no menino. De agora em diante estaria convivendo todos os dias com o que fizera.

            De canto de olho Jose examinava os pastores que vieram visitar. Vieram do nada, sem que ele tivesse avisado ou mandado chamar. Fora Maria? Eram quatro rapazes jovens e dentre eles dois bem bonitos.  Enquanto seus lábios oravam para Deus abençoar a criança, examinava os traços físicos dos mais belos. E tentava adivinhar um rosto mais confiante, um brilho de satisfação nas faces... Ficou um tempo assim. Depois pensou que não precisava ser o mais bonito, às vezes o mais simpático, o mais agradável.

            Olhou o entorno todo, pois sentia-se também vigiado. Até as ovelhas pareciam olhá-lo com ares de galhofa. Ali, ajoelhado diante da criança, de frente para Maria, ainda se perguntava se fizera bem em assumir a criança. Não estaria agora sendo observado pelo verdadeiro pai? Seria por isso que ela não levantava os olhos?

            Ainda que sonhara que tudo estava bem e em conformidade, José  dizia-se: sonho é sonho, isto aqui é  a realidade.

            Observando os outros filhos e filhas, que pareciam alheios ao acontecimento, sentia que, por mais fizesse, o que estava ali seria sempre o enteado. Já decidira que da sua herança ele não faria parte. Mandaria o Rabino educá-lo para ser religioso, pois da carpintaria não levaria nada. Não seria justo com os demais.

            Olhava para o menino lindo e cismava, lindo demais. Ainda assim não lhe despertara o carinho. Como se alertada pelas desconfianças, a criança começou a chorar, um chorinho leve, prontamente transformado num berreiro sem par. Não bastava a dor nos joelhos de tanto tempo estar ali ajoelhado, agora os gritos terríveis cortavam a noite silenciosa. Não conseguiu disfarçar no rosto a contrariedade.

            Maria, ainda sem levantar o olhar, tomou nos braços o pequeno, e sem muito sucesso o tentou ninar. Era fome. Então tirou o seio para fora para o alimentar. José escandalizado correu os olhos no burro, na vaca, nas ovelhas e por fim nos homens que até pareciam salivar, e de forma firme, mandou: Entra mulher!

            Levantou-se, um pouco indignado com o gesto que lhe parecia indecoroso, não o de alimentar o bebê, mas mostrar o seio para o outro ver. Sem poder dizer o que desejava e nem saber qual era a verdade, dirigiu-se aos belos, jovens, simpáticos e adoráveis pastores, e entre zangado e formal agradeceu e aconselhou: “foi uma honra que viessem nos visitar, mas fiquem longe daqui. Levem as ovelhas distante para pastorear". Diante dos rostos surpresos, explicou, "é para os balidos das ovelhas a criança não acordar".

            Um galo cantou como se procurasse dispersar a incomoda reunião.  Os pastores foram se retirando sob o olhar atento de José, que desejava ter certeza de que nenhum se voltaria ou ficaria para trás. Depois trancou o burro e a vaca no curral, pôs a manjedoura no lugar. Mandou os filhos pararem com as brincadeiras e irem se lavar.

            Entrou na casa simples, e com força bateu a porta. Enquanto do lado de fora se ouvia: "Maria, acabou a presepada!!"

            E eis que com a decisão de José, o belo menino não seria nem pastor, nem carpinteiro, mas da humanidade o redentor.

            Feliz Natal!

            (Deus em sua misericórdia escreve belas estórias onde elas não pareciam possíveis)

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