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O Amante Rejeitado


Aquela, de fato, fora sua última tentativa. Esqueceria os seus sentimentos. Afinal, não seria a primeira vez. Atirou algumas roupas sujas de uma poltrona para outra. Jogou os pés sobre a mesinha de centro e fitou as pontas dos seus sapatos.

Repouso. Em algum lugar duas pastilhas de Son-Risal caem borbulhantes num copo d’água. Alguém abre uma cerveja e arrota a lata numa mão calejada.

Ela continuava com o outro, esta era a realidade. Nunca fora sua. Disputara as sobras todos aqueles anos. Cansara das falsas esperanças que as varizes novas dela prometiam. O tempo passara e desgastara as circunstâncias.

Um cachorro vira-latas derruba um latão de lixo e rosna para o outro que se aproxima da guloseima. Pisca um neon da Coca-Cola, faiscando vermelho e branco pelos prédios e árvores no centro da cidade.

Fizera um longo tricô de sonhos e para cada situação possuía um papel de ator secundário. Fizera papel de criança rebelde, melhor amigo, conselheiro, confessor, padre e santo. Fatigara-se destes papéis. Possivelmente passaria a fazer o de besta-fera, porém desistira do objeto de disputa antes de chegar ao ridículo.

Alguns leões rugem no Bosque da cidade. As hienas riem carniçando o início da noite, mas quem sabe se hiena ri ou chora?

O telefone toca. Promete não atender. O crepúsculo afirma seriamente o seu desejo de se tornar noite. O aparelho insiste. Se fora ele do outro lado da linha já teria desistido. A campainha agride.

O policial notifica o acidente na esquina, o sinal estava fechado, assim mesmo o motorista avançara. Resultado: acidente. Duas crianças mortas, uma mulher gravemente ferida e um motorista roído de remorsos, o desgraçado nada sofreu.



_ Alô?!!!

_ É você?

_ Bem, eu moro sozinho, se não for eu é o meu duplo etéreo!

Era ela.

_ Ele ficou com ciúmes de você. Assim que você saiu a casa caiu. Falou-me cada barbaridade que não sei se posso repetir...

_ Nãao, por favor não repita.

_ Eu não sei mais o que fazer. Estou cansada dessa vida. Como te falei, ele está me traindo...Me deixa em casa esquecida...

_ É,...!

_ Ah, você me entende, ontem ele chegou e...



Sentia que iria começar tudo de novo.

O crepúsculo cumulara-se de estrelas e transformara-se em noite. A soberba era cometida pelas ruas da cidade. Alguns moralistas clamam pela Inquisição. E esquecem-se que esta realiza-se todos os dias em milhões de analfabetos, guiados por pastores crentes e inescrupulosos e cretinamente verdadeiros. A fé é a boa ação dos tolos.

Recusara-se a ter fé.

_ Desligou?! Ele desligou! Nunca fez isso, deve ter caído a linha.

Ouvia o sinal do telefone, pronto para discar. O que fizera? Não acreditava. Ora, era isso mesmo que desejava ter feito e fez. Johan Sebastian Bach estrondava num estéreo via Compact Disc. A Toccata e Fuga em Ré Menor anunciava a sua liberdade. Em breve o vizinho do apê abaixo do seu também anunciaria a dele, e o do lado e o de cima. Apartamentos, bolas! Devem ter sido inventados por alguém que não tinha problemas prevendo que os futuros habitantes seriam monges trapistas!



* * *





Amanhecera com gosto de ressaca.

O sol escondeu-se atrás das nuvens e recusara-se a sair de lá, afinal este é o seu único recurso para esconder as olheiras. O dia seria morno e abafado.

Saíra com um travesti na noite anterior. Sempre quisera sair com um travesti. Pagara caro, mas que noite! Era bem exótico. Queria uma mulher, não obstante conseguira um arremedo. Possivelmente a satisfação que obtivera fora também arremedo de prazer. Sentia que vivera este tempo todo à sombra de um arremedo de mulher. Mas quem sabe o que é uma mulher de verdade? Por que o travesti não é? Em alguns instantes respondeu suas próprias perguntas com um bocejo.

A salsicha morna boiava numa água encardida, engordurada e vaporenta. Soltava bafos na cara do cachorreiro quando abria a portinhola para preparar mais um Hot-Dog. É, isto não tem sentido. Pão dormido. Salsicha morna e decomposta pela fervura. Salada de tomate, cebola e sabe Deus mais o que. Maionese, cat-chup e (irc) mostarda. Cachorro Quente.

Caminhar pelo parque de manhã não o desgostava. Pisava entre os pombos, sempre desejara parar ali, no centro da praça e atirar-lhes milho. Naquele dia gostaria de experimentar algo novo. Um desejo novo. Gostaria de esmagá-los todos. Desejava moer um a cada passo que desse. Foi o que fez, iria matá-los todos!

O pouso delicado do 747 suaviza a adustez da pista. As viagens não têm sentido, sempre nos trazem de volta. O prazer de alguns passageiros era exatamente este: voltar. Encontrar os céus poluídos da cidade. Respirar nuvens de dióxido de carbono. Descobririam cedo ou tarde que a felicidade lhes deixaria de narinas pretas.

Parou de saltitar como um louco quando a aglomeração de pessoas aumentou muito à sua volta. Não iria dar para disfarçar. Sob os pés acumulavam-se seis ou sete aves mortas. O sangue espalhava-se por todos os lados. Suas meias estavam respingadas e seus sapatos enlameados de pequenas penas, carne e líquido vermelho.

_ Gente, que absurdo! Alguém faça alguma coisa! Este cara está louco!

Fitava a todos com espanto.

- Sei não... esses olhos esbugalhados... não é bom sinal.

Não soube bem por que, mas sacou de uma faca do bolso da jaqueta de couro gasto. Segurou-a de forma ameaçadora, gritou e riu desvairadamente, manifestando a sua loucura.

_ Corre! Corre!

_ Foge gente! O Homem é doido!

Ria do pânico. Homens, mulheres e crianças, correndo para todos os lados. Guardou a faca. Saiu de cima da massa de carne pegajosa e andou calmamente pelo parque. Matara pombos e se tornara louco. Tomou um ônibus e se tornou ninguém.

Antes daquela tarde a rede de televisão seguia com a sua programação normal. Mas, logo à noite ela noticiaria à respeito do louco da praça que assassinara dez pombos. Não eram seis ou sete? Bem, estamos falando de repórteres e televisão.

Um incêndio assava um edifício na avenida central. Edifício comercial. Possuía tantos papéis que até o fogo se cansava de seu trabalho. Ardia, reduzindo tudo a cinzas. Registros, documentos, vídeos-cassetes, contas bancárias, números em um computador, arquivos, disquetes, kbyts, micros, filmadoras, filmes pornôs e um saco de balas de hortelã. Um certo cheiro de pena queimada anunciava a morte do oitavo (ou décimo primeiro) pombo naquele dia. Tudo reduzido a cinzas. A mágica do fogo. Iguala todas as idiossincrasias materiais e humanas num homogêneo “vibut”. Cinzas, fora o que restara. Cinzas e algumas estruturas metálicas que teimavam em ficar em pé não obstante a destruição.

Por mais cáusticos, há sempre restos e sobras num incêndio.

_ Alô?! É você?

_ Não, aqui é o duplo etéreo da minha secretária eletrônica!

Era ela.

_ Ontem a linha caiu enquanto conversávamos...

_ Hummm..

_ Passei toda a manhã chorando. Conversei com a minha mãe. E nós decidimos que eu vou me separar... mas, sinto-me fraca. Não sei como fazê-lo...

_ Já devia ter aprendido, afinal, é a sexta vez que irá tentar se separar dele.

_ Dessa vez é sério. Ele não me ama. Não me dá atenção. Você sabe lá o que é ficar esperando carinho e atenção de um homem e ele nem comparecer? Eu só queria que ele me amasse. Sabe, não desejo nada disso...

_ É,...!

_ Ah, você sabe, eu...

Os bombeiros faziam o rescaldo.

_ A linha caiu?! Mas de novo?!

Toca o aparelho.

_ Ufa! Ainda bem que você está aí. Precisa mandar ver o que está acontecendo. Não é normal cair a linha dessa forma...

_ A linha não caiu...

_ Ah, claro que caiu. Você sabe, a Telesp já não é a mesma. Ou melhor, é a mesma...

_ Fui eu quem desligou.

_ Pare de brincar, eu te conheço, não faria isso





* Click



_ Fêz?! Ele desligou! Ele desligou mesmo!



Uma revoada de andorinhas anunciava o fim do dia. Havia sido morno e abafado como previra o escritor. O escritor sempre sabe. Chovera depois do almoço, isso ele não previra.



* * *



A noite anunciava insônia. E insônia cheirava à vazio. O calor não dera tréguas. Os lençóis úmidos envolviam o corpo suado dificultando os movimentos. Cansou-se e atirou-os para o lado. Aguardou alguns instantes, dando uma chance para o sono. Agora, até mesmo o calção de dormir incomodava.

O rádio-relógio, branco com números vermelhos, piscava 2:46.

_ Pôrra! Que saco!

Levantou-se e caminhou em direção à janela.

Acotovelado no parapeito decidira-se à injuriar a noite.

Falsa. Aquela era uma noite falsa. Estava escuro. No entanto, nem lua, nem estrelas. Só acreditava nela porque vira o guarda noturno.

Alguns tiros espocando no ar contavam sobre um corpo morto numa pôça de sangue. Cena ridícula e hipócrita sobre quem tem o direito de assassinar quem. A lei é o enfado do direito e a punição a sua única e real justificativa. Desta vez a sorte fora do bandido, morrera um policial. Mas será sorte estar vivo? Bem, os mortos devem sabê-lo.

Não entendia porque, mas surpreendera-se nú, sentado sobre o rádio-relógio que dispusera sobre o colchão. Repetia a pose do Pensador de Rodin. O fato é que peidando conseguira ligar o rádio. Riu-se da proeza.

Do que fugia?

Um bêbado vomitava cerveja e restos de torresmo à pururuca sobre a mesa do bar.

_ Garçon?! Leva isso daqui, não quero mais!

Às vezes fica difícil perceber quando o alimento vira vômito, ou quantas vezes o estamos botando prá fora e comendo de novo, como fazem os cães. Estes são mais sinceros, não renegam o que comeram.

Será que ela iria ligar?

Não. Meu caro leitor mulheres casadas não telefonam para homens solteiros às quatro da manhã.





Triimmmm! Trimmmm!





_ Alô??

_ Ah, é você!

Era ela.

_ E quem esperava que fosse?!

_ Só liguei pra te dizer que eu e ele estamos bem e...

_ Ah... estão bem...! Então vocês acabaram de dar aquela transada, urrou como uma louca, que é seu estado normal, ele caiu esgotado para o lado e você... você me ligou!

_ É isso mesmo, não queria deixá-lo preocupado. Sei que você se preocupa e...

_ Não, não me preocupo.

_ Se preocupa sim... você sempre, se preocupou!

_ Olha, preste bem atenção: Não me preocupo. Não quero saber de você ou do seu marido. Se eu fosse gay até olharia prá ele, não é o caso. Sou a última pessoa que deseja saber se a trepada foi boa ou não! Não me ligue às quatro da manhã, pôrra! Tchau!

_ Não, espere... por que está fazendo isso?

_ Eu te amo!

_ ? ...?!

_ Não diz nada? Estou falando que te amo! Que passei esses anos todo mendigando amor... e, o que é pior você não viu, não percebeu.

_ Eu não sei o que dizer...

_ Diga que me ama...

_ Não posso... não sei...

_ Sabe sim! Você sabe!

_ Não, eu não sei.

_ Ora, não faça cena. Não me ama, nunca amou, não vai amar.

_ É que...

_ Desligue!

Ela desligou.

Sentou-se novamente sobre o rádio-relógio. A noite teimava em amanhecer.

Um escarro cai sobre uma formiga, que heroicamente nadava na meleca tentando sobreviver. O culpado fora o bêbado, que vomitou no bar e voltava prá casa. O escândalo dessa morte jaz impune.





* * *



Outro dia quente. As olheiras clamavam por justiça, mas lhes dera um par de óculos escuros. Caminhava novamente pelo parque, desta vez pouparia os pombos, dera o tiro de misericórdia em quem realmente interessava.

A cidade inteira respirava uma muda expectação. Os postes apagados pareciam um monumento soturno à noite que passara. Um pensamento suspenso no ar morno da cidade.

No aeroporto os aviões subiam e desciam, dera teto. As ruas estavam levemente congestionadas, como se suas gargantas estivessem com espinhas atravessadas. Os prédios cinzas, ladeando-as, debruçavam-se sobre os pedestres. Os homens passavam indiferentes

Aproximou-se de um bando de meninos de rua e cheirou cola com eles. Sacou a carteira e deu-lhes todo o dinheiro que trazia. Sentou-se ao lado de um bêbado caído na calçada, tomou seu chapéu. Mirou-o, sorriu. Estendeu-o e pôs-se a mendigar, cumprimentando os passantes. Assumira a sua indigência.

_ Oi, Bí! Você por aqui?!

Era Rita. Rita Haiworth.

_ Olá!

_ Que faz sentado aí no chão?

_ Estou pedindo... mendigando...

_ Bí, não precisa disso não! ‘Cê tá numa pior?

_ ...

_ Vamos, eu te levo pra minha casa!

O travesti alto, moreno, mulato e beiçudo deu a mão para que se levantasse. Sorriu para ele por detrás dos óculos escuros. Levantou-se e caminharam juntos pela rua. Destino? Ignorado.

Em algum lugar paralisavam-se testes nucleares diante de um protesto do Green Peace. Não haveria mais fissão nuclear. A energia de que o mundo necessitará no futuro se encontra no Hidrogênio bem mais barato, não poluente e menos perigoso. Hoje os foguetes da NASA vão para o espaço usando este combustível. Talvez todos nós o utilizemos algum dia.


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