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APORIA (Ele, Ela e o Gato!)

O fato é que não sabia exatamente o que ocorria. Assim mesmo saiu despreocupadamente. Assoviava uma música de Gershuin, o rítmo enjoado o embalava pelas ruas, como se estar vivo fosse tudo o quanto bastasse.

Comprou pão e mortadela, iria ser o jantar. Um vento frio cantava por sob a aba do chapéu côco e as orelhas escondiam-se por detrás de um cachecol mostarda, possivelmente aguardando a partida do inverno.

Interrogara-se à respeito da noite anterior:

_ Fôra fim ou começo?

Sabia que muito tempo se passara, logo não era começo e sim meio. Meio. Meio-termo. Da mesma forma que a metade de um todo e várias partes deste mesmo. Meio de caminho... possibilidade de inteiração. Enfim, não era começo. Seria o final?

Acalentava a dúvida.
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25 de agosto. Meu Diário, ontem nós jantamos pão com mortadela. E pensando bem, ante-ontem também e até onde a lembrança alcança não tivemos outro prato para o jantar desde que nos conhecemos.

Dessa vez porém, foi o fim. Recusei-me a comer e antes que ele avançasse sobre o meu prato dei a mortadela para o gato. Mas comeu o pão... Disse-lhe que fizesse bom proveito. Sai indignada e bati com a porta.

Não veio atrás de mim. Eu queria o fim e acho que ele ocorreu... Não haverá mais jantares, nem pãp, nem mortadela.
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As àrvores ressecadas e desfolhadas da rua pareciam enfeitadas pelo vento gelado e como liras eram tocadas pelas suas mãos hábeis. A música fazia um pano de fundo para Gershuin. Essa noite jantaria sozinho. Sozinho? Não. Apenas o gato o acompanharia. Já se decidira a não dividir a refeição, ficaria ouvindo o miado, impassível. Dessa forma teria alguém sofrendo consigo. Afinal, ontem ele comera mais moretadela do que de costume.

Calou Gershuin. Era para disfarçar.

Ela foi embora...Não queria que tivesse ido, mas foi. Bem verdade que seu protesto era digno de nota. Descuidara realmente da qualidade da mortadela. No início dera-lhe até uma importada, defumada e temperada no norte da Itália, produto raríssimo. Depois passou a comer aquela comprada na confeitaria e de procedência duvidosa. Acreditou que se ela arrotasse , devbido ao excesso de tempero, poderia sentir-se livre para fazê-lo também. Arrotando levaram vários pães e jantares ao estômago. Pensando bem, só o gato não arrotara. Por que ela queria culpá-lo?

Lembrava-se da vez em que ela trouxera mortadela de frango para que comesse...

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25 de agosto...

Eu tenho certeza de que a culpada disso tudo não fui eu. Fiz tudo para melhorar esse relacionamento. Cheguei mesmo à comprar mortadela de carne de frango.

“ Era terrivelmente insossa..” pensava.

Imagine, meu Diário, ele nem arrotou. Fiz tanto esforço por nada. Até tentou me convencer que havia gostado. Dois dias depois comprou mortadela de cavalo para me agradar. Mas, eu não gosto de mortadela... e ele não entendeu isso! O que eu quero é pão com ovo!

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Mortadela de cavalo era infinitamente melhor do que a de frango, não entendeu como ela pudera desprezar um quitute tão delicado quanto o que trouxera da Alemanha...

Ela tentou se alegrar, mas deu apenas arrotos discretos. “ Se não insisitisse em mudar a carne da mortadela, poderiamos ter comido pão com ovo e variaríamos o cardápio.”

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Você concordará comigo: o ovo é uma fonte muito mais rica de proteínas e vitaminas que a mortadela. O sabor é mais delicado e é mais úmido ao paladar. Sem falar que poderíamos frigí-lo um pouco ou bastante, alterando seu sabor.
Não gostava muito de ovo mole com pão, porém se ela fritasse ao ponto, comeria com prazer. E o gato?

_ Gatos comem qualquer coisa!

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Talvez o gato dele não gostasse muito, mas se se comportasse bem, daria-lhe um peixe. É... isso mesmo, meu Diário, irei lá hoje levando ovos e quero ver se ele não irá me recebger!

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O vento frio gemia terrivelmente quando a noite caira. A casa de cor escura estava de janelas iluminadas.

Ela caminhava rapidamente encurvando-se por causa do frio. Numa das mãos um saco plástico com ovos. Parou junto à porta, nervosa. Estava indecisa, como a receberia? Essa pergunta a maltratava. Porém, comeram e arrotaram tantas mortadelas juntos que sabiua não have motivos para grandes temores. Deu três toques na madeira velha. A porta abriu rangendo nos gonzos.

Com as orelhas escondidas sob o cachecol mostarda ele olhou-a e viu os ovos. Sorriu e a abraçou. Entendera tudo.

Dispensaria a mortadela comprada e ela lhe faria ovos no ponto.

E o gato?

_ Gatos comem qualquer coisa!

Depois do jantar o clima ficava cada vez melhor. Deram os restos de pães e ovos para o gato e foram para o quarto. “ Afinal - diziam-se - arroto de ovo é mais suave do que de mortadela.”

Logo os dias passavam e felizes comiam pão com ovo. Perceberam que o gato não comia. Mas, não se preocuparam. Passou o inverno, chegou a primavera e o verão. Tudo ia bem.

Um dia voltaram à comer pão com mortadela, descobriram que ovo tinha muito colesterol e, pior que arroto, dava gases. Isso incomodava o gato. Este, por sua vez, deixara de comer pão com ovo e não queria mais pão com mortadela. Foi-se embora. Deixou-os ali, comendo o que desejavam. Se gato pensasse, com certeza este estaria se perguntando:


_ “ Será que eles não perceberam que gosto de rato e passarinho? Não bastava aquela mortadela horrível ainda queriam obrigar-me a comer ovo?!”

GATO COME QUALQUER COISA!

Mas esse foi embora.

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