O sagrado pode se manifestar no cotidiano |
De todas as coisas sensórias que me
envolveram desde sempre o som é uma das mais fascinantes. Trago grudado ao
espírito o canto da pomba “fogo apagou” envolto pelo silêncio da fazenda,
ambientando a solitude do jovenzinho que sentava-se na improvisada jardineira
da avó e olhava longamente para o campo. De um lado o pasto a perder de vista e
de outro o cafezal assentado no morro. De um pouco mais distante vinha o som do
vento assoprando forte nos eucaliptos, só quem ouviu esta melodia que rasteja
pelos ouvidos e dá profunda paz sabe como é a música e o perfume que juntos vem
e quando junto deles estamos ainda toma nossa pele a sombra fresca do
“calipial”.
Trago no espírito meu pai
assoviando. Era um tempo onde os homens assoviavam, e fazer disso uma arte também
era parte do seu quinhão. Só com o tempo eu saberia que o som nos afeta
fisicamente antes de nos afetar o espírito. O som toca o nosso ouvido, toca
fisicamente através da vibração do ar. O martelinho da cóclea nos nossos
ouvidos é “lambido” pelo som, então o som é quase como o tato na pele. É sentir
o mundo entrando em si, é sentir o corpo da música roçando o seu, e dela
podemos ser fisicamente amantes. Com o som, com a música o transcendente se
encontra fisicamente conosco e nos eleva a outra categoria existencial. Quem se
abandona à dança vive outra realidade. E nessa realidade, os gestos são outros,
as necessidades, os devaneios, os prazeres, a respiração são outros. A dança
nos possibilita o abandono do mundo sem o abandono do mundo, entrar em outro
plano por inteiro sem sair de onde está.
Dançando
ficamos tão imensos que tocamos as estrelas sem tirar os pés do chão. E nosso
corpo gira num eixo que é o da terra, que é o do sol, o da galáxia e o do
universo. E nossas mãos e pés giram lenta ou rapidamente. Cada parte do corpo
gira e se entrega se expande e se contrai, respira e expira. E aí estranhamente
parece que você se expande e se torna muito maior do que você mesmo. É como se
suas mãos pudessem tocar à distância, como se seu corpo pudesse encostar-se nos
olhos dos outros, se entregando sem se entregar. E então você é invadido por tal
energia que parece se tornar um com o todo, e este momento é magico, pois você
dança sem dançar, move-se sem se mover. Você não se coordena, mas tudo em você
está coordenado, flui pelo principio vital que rege o universo, e aí você sabe,
aí você sente, é Shiva.
Assim,
veio a mim - ou fui até ele - o deus hindu que antes só conhecia o nome e a
quem não dava nenhum significado. Até que dançando nos encontramos, num estado
único, onde, sedução, jogo, carne, transcendente, ritmo, luz, sombra, movimento,
energia, força, violência, agressividade, tornam-se numa coisa só, organizada
numa movimentação que - pode parecer desenfreada para quem assiste - mas que
significa controle, é poder. Nesse instante você puxa os cordões das marionetes
enquanto você mesmo é uma. Seu corpo formiga, suas mãos suam, você vê e não vê
o entorno e todo você está centrado ou no peito ou no meio do cérebro. E deste
centro saem seus movimentos e para ele voltam, e este ponto dentro de você é o
teu elo com tudo. E este ponto não é diferente por estar num lugar ou outro, é
apenas o centro.
Este
percurso místico é solitário, pois não há muito como te conduzir por este
caminho, você o faz, você o alcança, mas não há uma fórmula. O que posso dizer
é que a música me move e deixo com que ela faça isso, e que me movendo
esforço-me por não mais participar do mundo à minha volta, e concentrar-me na
movimentação completamente articulada com o som. No início respondendo ao som
com movimentos e depois antecipando o som com eles. Até que em meio à
excitação, movimento, e um pouco de desgaste, você alcança o estado estático, e
vive o sublime.
A
primeira vez que isto me aconteceu foi uma surpresa, pois estava simplesmente
dançando loucamente numa boate - ou balada como dizem hoje - quando dei por
mim, parecia que eu estava alguns centímetros
mais elevado que o meu corpo, os sons pareceram ser abafados e luzes azuis, vermelhas
e amarelas, flutuaram no meu entorno, entretanto, não eram as luzes do lugar.
Foi apenas um instante no qual meu corpo dançava sem mim e comigo. E me
assustei com o que ocorria e parei de dançar no meio da pista. Na segunda vez
que ocorreu, também estava sozinho numa boate dançando loucamente, e entrado
naquilo que eu chamaria mais tarde de “estado de Shiva” - ainda sem o saber -,
notei que ocorreu pois alguém tocou meu ombro por trás, e enquanto eu fazia o
giro, sem que eu ao menos percebesse, com as duas mãos empurrei para longe um
amigo, bem grande. Ele quase caiu, e assustado disse: “Calma! Eu só vim te
chamar para ir pra casa, mas se quiser ficar mais pode ficar que eu te espero!”
A
energia havia me tomado e foi apenas como se meu corpo tivesse repelido um
objeto para a distância. Nesse dia
confirmei que era um estado diferente. Também notei que eu não deveria ficar
muito próximo às outras pessoas e deveria vigiar com cuidado para onde essa
força ia. Senti algum receio de liberar esse impulso, que não me pareceu
agressivo, mas resultou em agressividade. O que meu corpo fez foi simplesmente
devolver para meu amigo o seu gesto, entretanto
com uma energia muito maior, foi um reflexo. O que eu não poderia deixar de
reconhecer é que este estado era prazeroso e bom, pois eu estava ausente de
tudo e de todas as coisas e ao mesmo tempo estava com todas elas. Estava
esquecido de mim. Era o momento máximo do eu onde ele não era mais. Como dizem
os filósofos o Ser e o Não-Ser. Sim, existem algumas circunstâncias nas quais
eles se encontram e não se anulam.
Ainda
que eu tenha iniciado na dança como todo mundo fazia antigamente, com uma
parceira, os novos tempos levaram os corpos a dançarem em separado ou sozinhos
mesmo, geralmente em grupos nas festas de rock, nas boates, nas baladas de música
eletrônica. Ainda que me excitasse emocionalmente a dança a dois e que fizesse
o bom efeito de me divertir, deixar alegre, espairecer, é sozinho que se chega
ao estado estático. Alguns poderão dizer, a um estado de transe, alcançado
através da meditação, que é propiciada por uma entrega física. Tempos depois,
com o mundo da internet descobri - pasmem - que na Índia existe um tipo de
meditação onde se dança freneticamente até chegar a um estado de abandono do
eu. Também não é diferente do que faziam as bacantes nas Grécia antiga, que se
abandonavam ao deus. E não posso deixar de me lembrar dos Dervixes no Islamismo.
Mas não ouso dizer que é a mesma coisa que os orixás, pois que já pude dançar
com eles e sei que é diferente.
Não
se chega a esse estado ouvindo música sertaneja, nem se for a música de raiz -
que é ótima. Existem sons característicos que tocam o corpo e que o fazem ir
para dentro de si e para fora. Já que citei os Orixás, os tambores e o ritmo
adequado ajudam muito, as palmas sincronizadas e as batidas dos pés. Em outras
palavras, estou falando do pulso, a batida do coração. É disso que se trata. É
muito comum que as músicas eletrônicas usem como uma das linhas rítimicas a
batida do coração. O pulso nos dá uma espécie de reconhecimento e identificação
orgânicos. O pulso sincroniza com o nosso coração e vice-versa, então é como se
você fosse tomado pelo peito e o resto do corpo obedecesse ao que ele manda. É só
entregar-se. Não pode haver censura, nem autocensura, é só entregar-se. É
preciso romper a barreira do olhar do outro sobre si e a internalização do
constrangimento social. Entregar-se, é só. Apenas o princípio.
Nesse
estado especial já vi muita coisa, melhor dizendo “presentifiquei” muita coisa,
mas nenhuma foi mais espetacular do que surpreender um pé descalço de cerca de
dez metros de comprimento, carregado de jóias típicas, firmado no chão ao meu
lado enquanto eu dançava. E completamente
pasmo e surpreso - mas não mais assustado, pois não parei de dançar e não saí
do estado no qual me encontrava - deixei meus olhos espirituais seguirem do pé
que apoiava o corpo gigantesco, pela perna, para cima, até distinguir, sem ver
de todo, pois era grande demais para ser visto, Shiva Nataraj. Ainda hoje meu
corpo arrepia enquanto escrevo. Eu estive com ele, dançando com ele. Dançando
em meio ao e com o poder do universo, vendo as estrelas e o todo girar comigo e
através de mim e por mim, do eu que não era eu, do eu que era ele, e ele que
era em mim. O sublime num estado estático.
No
primeiro texto (Deus - I) eu disse que Deus me invadiu através da beleza de uma
teia de aranha. O belo passou a ser o elo que nos unia e o fermento que o fazia
crescer em mim. O caminho inverso deste encontro é mais difícil. Depois de
muito esforço e experiências, e sem pensar que o fazia, penetrei Deus através
do corpo, pela dança. E fomos um, e todas as coisas era o Um, e o Um era todas
as coisas. E não, você não irá chegar nisso se estiver censurando-me na
leitura. O que descobri - sem saber que já existiam experiências similares -
foi que a dança pode ser meditativa e que com ela atingimos estados alterados
de consciência - sem álcool, sem drogas. E o estado alterado te dá acesso a
outras realidades que passam a te constituir como experiência.
E
ao escrever estas coisas imagino que jamais arranjarei outro emprego. Mas se eu
partir não posso ir sem deixar uma herança. Deus não está no texto, mas na
manifestação. Não está na racionalidade, mas na des-razão. Ele não é a razão
suprema, é o irracional - e não a irracionalidade. Você não o alcança apenas
por muito pensar e estudar, seu corpo precisa ser um espaço da sua
manifestação. Você busca, mas Deus te toma. A dança manifesta o sagrado. E
voltamos ao primeiro texto, Deus te devora.
Dervixes dança estática do Islamismo. Não esperavam que eu pusesse uma balada gay, né?! |
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