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Deus II - A dança: Som e fúria

O sagrado pode se manifestar no cotidiano

            De todas as coisas sensórias que me envolveram desde sempre o som é uma das mais fascinantes. Trago grudado ao espírito o canto da pomba “fogo apagou” envolto pelo silêncio da fazenda, ambientando a solitude do jovenzinho que sentava-se na improvisada jardineira da avó e olhava longamente para o campo. De um lado o pasto a perder de vista e de outro o cafezal assentado no morro. De um pouco mais distante vinha o som do vento assoprando forte nos eucaliptos, só quem ouviu esta melodia que rasteja pelos ouvidos e dá profunda paz sabe como é a música e o perfume que juntos vem e quando junto deles estamos ainda toma nossa pele a sombra fresca do “calipial”.

            Trago no espírito meu pai assoviando. Era um tempo onde os homens assoviavam, e fazer disso uma arte também era parte do seu quinhão. Só com o tempo eu saberia que o som nos afeta fisicamente antes de nos afetar o espírito. O som toca o nosso ouvido, toca fisicamente através da vibração do ar. O martelinho da cóclea nos nossos ouvidos é “lambido” pelo som, então o som é quase como o tato na pele. É sentir o mundo entrando em si, é sentir o corpo da música roçando o seu, e dela podemos ser fisicamente amantes. Com o som, com a música o transcendente se encontra fisicamente conosco e nos eleva a outra categoria existencial. Quem se abandona à dança vive outra realidade. E nessa realidade, os gestos são outros, as necessidades, os devaneios, os prazeres, a respiração são outros. A dança nos possibilita o abandono do mundo sem o abandono do mundo, entrar em outro plano por inteiro sem sair de onde está.

Dançando ficamos tão imensos que tocamos as estrelas sem tirar os pés do chão. E nosso corpo gira num eixo que é o da terra, que é o do sol, o da galáxia e o do universo. E nossas mãos e pés giram lenta ou rapidamente. Cada parte do corpo gira e se entrega se expande e se contrai, respira e expira. E aí estranhamente parece que você se expande e se torna muito maior do que você mesmo. É como se suas mãos pudessem tocar à distância, como se seu corpo pudesse encostar-se nos olhos dos outros, se entregando sem se entregar. E então você é invadido por tal energia que parece se tornar um com o todo, e este momento é magico, pois você dança sem dançar, move-se sem se mover. Você não se coordena, mas tudo em você está coordenado, flui pelo principio vital que rege o universo, e aí você sabe, aí você sente, é Shiva.

Assim, veio a mim - ou fui até ele - o deus hindu que antes só conhecia o nome e a quem não dava nenhum significado. Até que dançando nos encontramos, num estado único, onde, sedução, jogo, carne, transcendente, ritmo, luz, sombra, movimento, energia, força, violência, agressividade, tornam-se numa coisa só, organizada numa movimentação que - pode parecer desenfreada para quem assiste - mas que significa controle, é poder. Nesse instante você puxa os cordões das marionetes enquanto você mesmo é uma. Seu corpo formiga, suas mãos suam, você vê e não vê o entorno e todo você está centrado ou no peito ou no meio do cérebro. E deste centro saem seus movimentos e para ele voltam, e este ponto dentro de você é o teu elo com tudo. E este ponto não é diferente por estar num lugar ou outro, é apenas o centro.

Este percurso místico é solitário, pois não há muito como te conduzir por este caminho, você o faz, você o alcança, mas não há uma fórmula. O que posso dizer é que a música me move e deixo com que ela faça isso, e que me movendo esforço-me por não mais participar do mundo à minha volta, e concentrar-me na movimentação completamente articulada com o som. No início respondendo ao som com movimentos e depois antecipando o som com eles. Até que em meio à excitação, movimento, e um pouco de desgaste, você alcança o estado estático, e vive o sublime.

A primeira vez que isto me aconteceu foi uma surpresa, pois estava simplesmente dançando loucamente numa boate - ou balada como dizem hoje - quando dei por mim, parecia que eu estava  alguns centímetros mais elevado que o meu corpo, os sons pareceram ser abafados e luzes azuis, vermelhas e amarelas, flutuaram no meu entorno, entretanto, não eram as luzes do lugar. Foi apenas um instante no qual meu corpo dançava sem mim e comigo. E me assustei com o que ocorria e parei de dançar no meio da pista. Na segunda vez que ocorreu, também estava sozinho numa boate dançando loucamente, e entrado naquilo que eu chamaria mais tarde de “estado de Shiva” - ainda sem o saber -, notei que ocorreu pois alguém tocou meu ombro por trás, e enquanto eu fazia o giro, sem que eu ao menos percebesse, com as duas mãos empurrei para longe um amigo, bem grande. Ele quase caiu, e assustado disse: “Calma! Eu só vim te chamar para ir pra casa, mas se quiser ficar mais pode ficar que eu te espero!”

A energia havia me tomado e foi apenas como se meu corpo tivesse repelido um objeto para a distância.  Nesse dia confirmei que era um estado diferente. Também notei que eu não deveria ficar muito próximo às outras pessoas e deveria vigiar com cuidado para onde essa força ia. Senti algum receio de liberar esse impulso, que não me pareceu agressivo, mas resultou em agressividade. O que meu corpo fez foi simplesmente devolver para  meu amigo o seu gesto, entretanto com uma energia muito maior, foi um reflexo. O que eu não poderia deixar de reconhecer é que este estado era prazeroso e bom, pois eu estava ausente de tudo e de todas as coisas e ao mesmo tempo estava com todas elas. Estava esquecido de mim. Era o momento máximo do eu onde ele não era mais. Como dizem os filósofos o Ser e o Não-Ser. Sim, existem algumas circunstâncias nas quais eles se encontram e não se anulam.

Ainda que eu tenha iniciado na dança como todo mundo fazia antigamente, com uma parceira, os novos tempos levaram os corpos a dançarem em separado ou sozinhos mesmo, geralmente em grupos nas festas de rock, nas boates, nas baladas de música eletrônica. Ainda que me excitasse emocionalmente a dança a dois e que fizesse o bom efeito de me divertir, deixar alegre, espairecer, é sozinho que se chega ao estado estático. Alguns poderão dizer, a um estado de transe, alcançado através da meditação, que é propiciada por uma entrega física. Tempos depois, com o mundo da internet descobri - pasmem - que na Índia existe um tipo de meditação onde se dança freneticamente até chegar a um estado de abandono do eu. Também não é diferente do que faziam as bacantes nas Grécia antiga, que se abandonavam ao deus. E não posso deixar de me lembrar dos Dervixes no Islamismo. Mas não ouso dizer que é a mesma coisa que os orixás, pois que já pude dançar com eles e sei que é diferente.

Não se chega a esse estado ouvindo música sertaneja, nem se for a música de raiz - que é ótima. Existem sons característicos que tocam o corpo e que o fazem ir para dentro de si e para fora. Já que citei os Orixás, os tambores e o ritmo adequado ajudam muito, as palmas sincronizadas e as batidas dos pés. Em outras palavras, estou falando do pulso, a batida do coração. É disso que se trata. É muito comum que as músicas eletrônicas usem como uma das linhas rítimicas a batida do coração. O pulso nos dá uma espécie de reconhecimento e identificação orgânicos. O pulso sincroniza com o nosso coração e vice-versa, então é como se você fosse tomado pelo peito e o resto do corpo obedecesse ao que ele manda. É só entregar-se. Não pode haver censura, nem autocensura, é só entregar-se. É preciso romper a barreira do olhar do outro sobre si e a internalização do constrangimento social. Entregar-se, é só. Apenas o princípio.

Nesse estado especial já vi muita coisa, melhor dizendo “presentifiquei” muita coisa, mas nenhuma foi mais espetacular do que surpreender um pé descalço de cerca de dez metros de comprimento, carregado de jóias típicas, firmado no chão ao meu lado enquanto eu dançava.  E completamente pasmo e surpreso - mas não mais assustado, pois não parei de dançar e não saí do estado no qual me encontrava - deixei meus olhos espirituais seguirem do pé que apoiava o corpo gigantesco, pela perna, para cima, até distinguir, sem ver de todo, pois era grande demais para ser visto, Shiva Nataraj. Ainda hoje meu corpo arrepia enquanto escrevo. Eu estive com ele, dançando com ele. Dançando em meio ao e com o poder do universo, vendo as estrelas e o todo girar comigo e através de mim e por mim, do eu que não era eu, do eu que era ele, e ele que era em mim. O sublime num estado estático.

No primeiro texto (Deus - I) eu disse que Deus me invadiu através da beleza de uma teia de aranha. O belo passou a ser o elo que nos unia e o fermento que o fazia crescer em mim. O caminho inverso deste encontro é mais difícil. Depois de muito esforço e experiências, e sem pensar que o fazia, penetrei Deus através do corpo, pela dança. E fomos um, e todas as coisas era o Um, e o Um era todas as coisas. E não, você não irá chegar nisso se estiver censurando-me na leitura. O que descobri - sem saber que já existiam experiências similares - foi que a dança pode ser meditativa e que com ela atingimos estados alterados de consciência - sem álcool, sem drogas. E o estado alterado te dá acesso a outras realidades que passam a te constituir como experiência.

E ao escrever estas coisas imagino que jamais arranjarei outro emprego. Mas se eu partir não posso ir sem deixar uma herança. Deus não está no texto, mas na manifestação. Não está na racionalidade, mas na des-razão. Ele não é a razão suprema, é o irracional - e não a irracionalidade. Você não o alcança apenas por muito pensar e estudar, seu corpo precisa ser um espaço da sua manifestação. Você busca, mas Deus te toma. A dança manifesta o sagrado. E voltamos ao primeiro texto, Deus te devora.

 

Dervixes dança estática do Islamismo. Não esperavam que eu pusesse uma balada gay, né?!

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