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A solidão é desumana

 

O Pensador, Auguste Rodin

            Solidão todo mundo sabe o que é. Alguns que a veem como algo positivo a chamam de solitude. Em termos simples a solidão é a ato de estar só. Fisicamente só é a primeira circunstância deste fato. Pode-se estar nesta situação porque é alguém que cuida de um farol numa ilha deserta ou se é um caseiro viúvo - sem filhos - que cuida de uma chácara.  Essas circunstâncias são menos comuns. A solidão é tanto mais suportável quando se sabe que ela terá um fim. Fica o preso na cela “solitária” sofre, mas sabe que sairá de lá. Então, ser solitário e ter esperança faz uma grande diferença no que o indivíduo sente. Até na prisão a solidão é castigo.

            Entretanto, precisamos distinguir entre solidão e isolamento. As pessoas isolam-se - ou são isoladas - por diversos motivos, e algumas o fazem para estarem sozinhas. Apesar de dizerem que somos animais sociais, gregários, é bastante comum que busquemos momentos para ficarmos sós. Estes momentos podem variar entre alguns minutos ao longo do dia ou muitos dias ao longo do mês. Cada um tem seu tempo e sua necessidade de estar só. A solitude é uma necessidade. É bom “dar um tempo” como dizem, para refletir ou simplesmente para descansar e fazer silêncio interno e externo. Ou, ainda, o inverso, ouvir a barulheira que tem por dentro.

            Muitas coisas ocorrem para que fiquemos sozinhos e até mesmo isolados. A solitude faz bem para a alma e deve até mesmo ser cultivada. Mas há uma solidão muito complexa, a daquelas pessoas que têm dificuldade de se comunicar com os demais, e tendo em vista seus fracassos diuturnos buscam se isolar e evitar contato, pois estes passaram a causar sofrimento. A pessoa isola-se para se proteger, não importa se seus inimigos são verdadeiros ou imaginários, o resultado é o mesmo, é doloroso. Somos gregários porque somos seres espetaculares, gostamos de ser vistos em nossa performance cotidiana, gostamos de dividi-la, gostamos de aplaudir e ser aplaudidos. Todos os dias nos levantamos para essa apresentação no teatro do mundo que nunca termina. Nunca. Até mesmo os mortos continuam aparecendo de vez em quando para terem algum tipo de atenção.

            O filme “Os Outros” é um exemplo belíssimo da solidão e do isolamento. O sofrimento psicológico leva ao isolamento e à solidão extremas. A solidão não pressupõe a falta de contatos com as pessoas - contatos mínimos -, mas pressupõe que estes contatos sejam “impermeáveis”. Não resultam efetivamente em companhia afetiva. Quando uma pessoa se isola - ela raramente tomou essa decisão -, foi acuada até ficar cercada de muralhas que levantou para se proteger. Agora está só lá dentro, sem conseguir sair e com medo dos outros entrarem. Queria afeto e companhia, mas verifica antes se aguenta mais um pouco sem eles avaliando se suporta ser machucada ou sofrer novas perdas. A solidão imposta ou buscada, ou ainda que não pôde ser evitada, é um sofrimento cruel e desumano. E falando nisso, desumaniza a pessoa. Infelizmente o humano só se faz em continua interação com o outro.

            No nível da solidão e auto isolamento com o passar do tempo o indivíduo se pergunta se vale a pena viver, pois dele foram retirados todos os prazeres. Ler um livro, masturbar-se, tocar um instrumento, por um tempo bastavam para aliviar essa condição e pareciam bem satisfatórios. Entretanto, as horas, os dias, os meses, os anos sozinho esvaziam todo o prazer e resta uma treva interna, e a luz não vem de lugar nenhum. A recusa do outro, que é tão outro que precisa ser deixado distante.

Quem está fora não compreende quando o isolado diz: as pessoas fedem, tem cheiro, suam, são grosseiras, violentas, insensatas, inconstantes, emocionais e carentes de tudo. E tudo fazem para que os outros as sirvam em suas necessidades reais ou imaginárias. O isolado não quer que o toquem, não quer que o beijem, não quer que o amem e nem que o violentem. E se ele saísse, inevitavelmente as pessoas iriam açodá-lo com suas necessidades e incompreensões cotidianas até que ele pusesse fim ao sofrimento que elas significam. Se perguntadas sobre si, as pessoas diriam “ué, somos normais!” Pronto, a resposta está dada.

            O normal é importante e comezinho, mas mesmo assim pessoas há que não o alcançam. Dói o sexo, dói o afeto, dói o amor, dói a vida, mas ainda não é a morte. A solidão de não ser igual aos demais por mais que eles o vejam assim. E se o vêm como um deles não compreenderão o que se passa e também não ajudarão. Sim, essa solidão precisa de ajuda. Ninguém sai deste estado sozinho, por que o fim da solidão exige a presença do outro e se o autoisolado não consegue busca-la é bom que os outros vejam isso. Todavia, isso também não significa sucesso. Quando encontramos uma águia ferida, escondida embaixo de um tanque na lavanderia, não sabemos socorre-la. E o melhor que fazemos é dar-lhe água e um pouco de comida e torcemos para que morra logo, já que não podemos tocá-la por representar algum perigo.

            A solidão e o isolamento são coisas que se retroalimentam. Só podem ser vencidos quando o indivíduo é olhado com compreensão pelos demais e seja aceito sem ser “normalizado”, mas isso é muito difícil. E qual o valor de alguém nesta circunstância? Ahhh o mesmo que o do diamante, ele brilha pois aguentou muita pressão e se transformou em outra coisa, não é uma pedra adequada, mas é uma pedra como as outras pedras e guarda grande valor em si. Todos se beneficiam com ele, menos ele. Então de que vale o resgate? É por generosidade e misericórdia, é imoral permitir que alguém sofra e sofra por nossa causa.

            Solidão é muitas coisas mais. Mas é um assunto pesado que aborrece e deprime as pessoas e só podemos tratar dele a contagotas. Importante é saber que o homem do farol está cuidando da luz, o viúvo da chácara está cuidando da plantação, e assim vai. Os solitários produzem e produzem coisas maravilhosas e profundas, só não podem ser mantidos na cela solitária.

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