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A Solidão no Tempo

 

Sempre restará o Crochê

            Das diversas solidões que existem uma é mais comum a todos nós, ou será: a Solidão no Tempo. Em outras palavras, sobreviver a quase todo mundo da sua geração e ao mesmo tempo ter mudado de lugar ou visto as coisas se transformarem completamente. Essa solidão é inexorável, só não ocorrerá se você morrer antes.

            Em meu prédio há uma senhorinha (digo-o assim, pois é carinhoso) que tem provectos 98 anos. Ela caminha muito bem e sai todos os dias para dar uma agitada volta no quarteirão imenso no qual moramos. E sempre a encontro no meu passeio com os pinschers. De longe já vou cumprimentando-a e dando “dois dedos de prosa”, vejo-a com alegria e simpatia.  Já segredou a todos que me adora, pois segundo ela, “ele não tem vergonha de falar comigo na rua”. Meu coração despedaça cada vez que ouço algo assim. Faço questão de cumprimentar e falar com ela quanto posso, pois compreendo a solidão. Racionalizo o que sofre, mas não consigo saber o que é, pois não vivo a sua vida. Talvez seja menos solitária do que imagino. Não, não é! Besteira minha tentar aliviar o que é dor. Noventa e oito anos, meu Deus, que horror! Não imagino que eu suportaria chegar vivo a essa idade.

            E por chegar vivo, falo em suicídio, pois existe um momento em que a vida não é digna. Eu tinha um piano Bechstein de 123 anos de idade, e eu o olhava e me dizia espantado, “Ele já era tocado em 1899, viu a primeira e a segunda guerras, a Revolução Russa, a Guerra Fria, o homem chegar a lua, o surgimento da eletricidade, dos eletrodomésticos, o fim do apartheid americano, o recrudescimento do nazismo, viu a Europa em crise e sair da crise, o surgimento do cinema e suas estrelas, do rádio e seus cantores, da televisão e seus atores. Viu as máquinas de escrever e depois os computadores. Viu as carruagens, os automóveis e depois os aviões. Do télegrafo, passou para o telefone e depois para o fax e o malfadado celular. Ah, meu piano era muito feliz, não só por que eu o tocava, mas porque ele não era humano (talvez fosse um deus).

            Imagine, você viu a Belle Époque quando criança e agora vê a “Bôste Epoque” dos smartphones. Uma te convidava ao convívio e a outra te retira e isola, pois você não pode mais se adequar a isso. Não é necessário que tenhamos 98 anos, 70, 60, 50 já bastam atualmente. Se envelhecêssemos na Grécia Antiga (uso o exemplo pra parecer culto), tirando as pessoas que morreram de tédio e as que morreram nas batalhas, tudo seria mais ou menos igual ao que você viveu na infância. Entretanto, no século XX as mudanças tecnológicas e sociais se aceleraram de tal forma que estamos vivendo a solidão do Tempo mais cedo.

            A solidão do tempo é estar vivo ainda quando todas as pessoas (ou quase) que constituíram sua vida já morreram; é quando não tocarem mais no rádio as músicas que você costumava ouvir; quando seus ídolos não só pereceram, mas foram esquecidos ou estão desqualificados na atualidade. A solidão do tempo é quando você olha à sua volta e nada mais lhe traz conforto. Não há mais afeto, não há mais interesse sexual, intelectual ou humano em você. Todos te olham como alguém cujo destino é a morte, e que ela ocorrerá muito mais cedo do que tarde. Ainda não sei se é pior estar morando só por essa época da vida - como minha vizinha -, ou estar com a família. Tudo depende de como você encara a solidão. Solidão acompanhada é a pior, pois não basta sofrer ainda tem de aguentar os outros.

            Hoje já consigo imaginar o que é a solidão no tempo. Muitos amigos já morreram, muitos ídolos já se foram e as paisagens se transformaram profundamente. Eu que lutava para ter uma máquina de escrever, pois escrevia minhas primeiras estórias à caneta, hoje as escrevo num micro ou num celular e luto para alguém ler. Quer coisa mais incrível que esta? Tudo mudou tanto que a escrita e o escritor não são mais importantes de qualquer forma. As pessoas - em geral - não leem mais; e se dizem valorizar a leitura é só uma falácia social. Durante milhares de anos a escrita foi o centro da vida espiritual e intelectual e a leitura dignificante. Agora podemos sentarmo-nos e sentir no rosto as letras arrastadas pelo vento. E isso aconteceu no meu tempo de vida, apenas 56 anos (ainda um adolescente, sem hormônios). Perdi há pouco tempo minha mãe, e outros parentes próximos, aos poucos só eu posso contar sobre o meu próprio passado e tento recuperar e sustentar o passado destes outros. E é uma luta em vão, pois que vou sendo comido pelo tempo e sua velocidade acelerada. Eu que pensei em suicídio aos 98 já revejo estes planos.

            No século XX lutávamos contra a Indústria Cultural que manipulava a cultura em diversos aspectos e impunha o que a coletividade iria ver, ler e sofrer nos cinemas e nos diversos meios de comunicação. Uma indústria que falava para uma massa indiferenciada. Reclamávamos que éramos manipulados, mas hoje sabemos que não era tanto assim. Afinal, conseguimos distinguir o que acontecia. Hoje lembramos com saudade dos ídolos que foram mais ou menos impostos e temos uma experiência coletiva do que foi vivido. Nos identificamos coletivamente e nos sentimos parte de uma coisa, de um tempo, algo que é intercambiável com qualquer um que viveu isso, e isto traz conforto afetivo.

Entretanto, as novas gerações não possuem mais esta experiência, seus ídolos são rapidamente substituídos por outros e que ainda mais rápido são substituídos por outros, seus amigos não ouvem as mesmas musicas e se ouvem é só para mais rapidamente trazerem outras novidades. Tudo que era coletivo para a manada, agora mana no nada. Não, isso não é uma choração de um velho saudosista. Infelizmente a única cosa que ficará como identidade coletiva serão os times de futebol e seus jogadores (que desgraça para cultura humana). Isso é solidão no tempo. Aos poucos ela vai nos alcançando, lutamos contra ela, mas o tempo vai nos comendo. Logo não nos reconheceremos mais no mundo em que vivemos. Se antes as pessoas de oitenta anos eram aos pouco excluídas, hoje isso é mais rápido, quando já te chamam, e é de forma pejorativa, de “tio” ou “tia”, não querem dizer com isso que você é uma pessoa mais velha simpática e sim que você é desatualizado e ultrapassado. Você está abaixo do modelo ultrapassado de celular de dois anos atrás.

Então a solidão no tempo, ainda que terrível, não o era na Grécia Antiga e nem na tribo dos Cholula (para contentar os mimizentos), pois que a paisagem tecnológica era basicamente a mesma. Ainda nos sentiríamos solitários se naquela época vivêssemos, mas não teríamos a sensação de “não pertencimento”. Hoje a solidão no tempo é muito mais forte, pois as paisagens das cidades, das tecnologias, até mesmo das pessoas e seus corpos, não são mais as mesmas - e se são as mesmas o são com funções diferentes. Os nossos saberes se tornam obsoletos, nossa memória obsoleta e aviltada. Ninguém ficará para cuidar dos nossos “numes tutelares”. Então, antes que este futuro (próximo) chegue e nos engula de vez, já sentimos também a solidão no tempo.

Você olha para todos os lados e já não se reconhece mais. E ainda que lute contra, todos proclamam a sua obsolescência, até mesmo seus amigos obsoletos o dizem. O problema é que você continua vivo e não é velho o bastante para estar aposentado. Mas o tempo no qual, e para o qual, você foi criado já passou. Sim, eu compreendo a senhorinha de 98 anos, logo também eu agradecerei aqueles que me derem “dois dedos de prosa” ou que passem por mim e finjam que eu não existo. Existir enquanto o mundo proclamou a sua “não existência” é uma solidão horrorosa, pois que é forçada. Para alguém de noventa e oito anos não restaram contemporâneos para pedir ajuda ou apoio, ao menos este consolo nós temos; ainda sobrevivem muitos como nós.

Não falo aqui de felicidade, apenas da solidão no tempo. Não sei se a pessoa que atinge essa condição pode ser feliz ou estar satisfeita de qualquer forma. Existir num mundo que não nos reconhece é uma punição muito dura para alguém que só se esforçou para continuar vivo. Que o mundo não te reconheça é até aceitável, mas muito mais perverso é o fato que este mundo te diminua e te reduza - sem condições de reação - a um entulho de lixo deixado pelas ruas, do qual as pessoas fazem questão de se desviar ou dão uma cuspida quando passam próximas demais.

Olhar em volta e não reconhecer mais as paisagens, não reconhecer mais ninguém, não ter mais ninguém vivo do seu passado, não ter para quem contar a sua história, e saber que ela também não interessa é cruel e desumano. A solidão é desumana, entretanto, para a solidão no tempo não há cura possível. Ainda que um jovem te abraçasse e acolhesse seria um estranho para ele e ele para você; um estranho tão estranho que seria o mesmo que abraçar um velho cão morrendo na sarjeta, um gesto estranho e desusado, não ajuda o cão e só permite a vaidade do outro dizer ter ajudado e ser bom. Não, não há fuga dessa solidão. E se você tiver uma velhinha ou um velhinho vivendo do seu lado e contigo essa caminhada, segura a mão dele firme e não deixa que pereça tão cedo, será o que resta, trate-o bem.

Não se desespere a qualquer tempo você poderá aprender a fazer crochê e olhar fixamente para a linha e a agulha e encontrar-se num gesto secular de utilidade e grandeza. O prazer estético e criativo nunca nos abandona.

                (Por que você é tão triste? “Porque vi coisas demais”)

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