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O desletramento

Estamos passando por um fenômeno inesperado, o desletramento; mais um efeito colateral das novas tecnologias. É urgente reverter este processo.

Nossa sociedade durante milhares de anos se baseou na escrita. Desde os primórdios a escrita e a leitura foram o ofício de poucas pessoas. Apenas com o passar dos séculos, acompanhando várias transformações, aprender a ler e escrever passou a ser uma necessidade. Entre os séculos XVI e XIX o letramento era ainda um privilégio das classes altas ou de padres e freis nos mosteiros e pastores reformados. Com o surgimento da Prensa de Gutemberg, jornais e livros começaram a ser mais e mais impressos e publicados. A circulação de impressos transformou o mundo e as pessoas. E isso resultou em vária revoltas, guerras e revoluções. Depois, ao longo do século XIX, a industrialização crescente, que levou a uma urbanização exacerbada, o letramento passou a ser a base de desenvolvimento de toda a sociedade. Não é a toa que vimos várias campanhas contra o analfabetismo e o tempo todo vemos pessoas lutando por escolas públicas melhores.


Ao dizer letramento não estamos dizendo pura e simplesmente “alfabetização”, mas tudo aquilo que envolve a escrita e a leitura, até mesmo manusear o lápis para desenhar as letras e palavras. Sei que estou dando muitas informações, mas são necessárias. Também é importante no processo de letramento o “tempo”. Demora mais para escrever uma palavra à mão do que digitar. Se a velocidade for menor, uma frase começa de um jeito, mas com a reflexão, no tempo em que se a escreve, ela termina por ser um tanto diferente do que seria a partir do primeiro impulso. A frase amadurece. Na digitação isso acontece também, mas numa escala muito menor. O mais normal nesta última são as frases incompletas e erros de digitação e ortografia, pois a pessoa escreve tudo rapidamente como se fosse num único impulso.

Podemos ler muito rapidamente um texto, entretanto, a interpretação exige releitura e reflexão. O conteúdo de um texto bem escrito não se entrega facilmente à nossa primeira leitura. Já a leitura exige, conforme o seu nível, uma diversidade de comportamentos e rituais. O livro longo pede um lugar confortável, claridade e tempo. Um texto longo pode pedir algum conforto e tempo. Já um bilhete exige menos tempo de leitura, mas não quer dizer que não exija interpretação. Temos, então, duas coisas bastante claras: a habilidade de escrever manuseando um lápis e a habilidade de ler e interpretar textos, no tempo e com tempo. Essas habilidades estão diretamente ligadas à capacidade de raciocínio, memória e coordenação motora. Se você impede esse desenvolvimento, obviamente ele acontece de forma deficiente. Um variável que não muda é o tempo. Por mais rápido que você escreva ou leia e interprete, o tempo é o “local” no qual essas coisas se dão e na duração em que elas se dão. Nosso cérebro tem um limite para a velocidade com que essas coisas são feitas com qualidade.

O letramento se tornou uma importante base do desenvolvimento cognitivo humano. Sem ele estamos mais distantes dos processos de raciocínio, racionalização e interpretação. O letramento é difícil e se dá através de etapas educativas e após se alcança-lo ele costumava frutificar em pessoas mais maduras para as relações sociais e para o crescimento da civilização. Por isso lutamos para que houvesse o letramento de toda a nossa sociedade, entretanto, quando quase estávamos conseguindo alcançar este sonho civilizatório, eis que se inicia o processo, muito rápido, de desletramento. Democratizar o letramento é dar a possibilidade de que o sujeito se reconheça e se torne completamente humano. O letramento não pode estar afeito às mãos de muito poucos, pois o letramento significa poder. E também o poder de desmontar o poder dos poderosos.

Cinco parágrafos para começarmos a falar do que interessa, para entender por que não poderia acontecer o que está acontecendo. Já há algum tempo tenho ouvido queixas de amigos e amigas que não conseguem mais ler textos longos. E isso por que estão falando de cinco ou seis páginas. Muitos já abandonaram as leituras de livros por exemplo, tentam, mas fracassam. Todos continuam escrevendo, mas atualmente através de teclados. O tempo que gastam? Geralmente é rápido, quando pensam na escrita é para corrigir o corretor. Então, estão escrevendo pouco. Frases curtas apenas de conteúdo informativo, cotidiano e algumas obscenidades, sem profundidade ou reflexão. Já me entenderam. Estamos perdendo a habilidade – já adquirida – do letramento. Lá se vão o raciocínio, a memória e a coordenação motora. E tudo isso se deve ao encurtamento do tempo que as tecnologias novas levaram para a aplicação destas habilidades.

Mas outras causas necessárias precisam fazer parte deste arrazoado, estamos fazendo cada vez mais atividades relativas a uma nova cultura oral. Vemos uma grande quantidade de vídeos, e gastamos muito tempo com isso, mesmo que estes vídeos sejam muito curtos e feitos desta forma para que vejamos o seguinte. Ao invés de ler um livro nós o estamos ouvindo num áudio livro. Ao invés de ler interpretações e informações bem fundamentadas num jornal, estamos ouvindo podcasts. Os dados e informações que exigem muito tempo para serem lidos e manuseados nos são confiscados por quem faz uma coisa e outra, pois ocorre a necessidade de que haja um encurtamento no tempo do que será dito, caso contrário a memória náo reterá nada e ou a pessoa perderá o “interesse”, pois se é rápido é aceitável, caso contrário é considerado desinteressante. Uma cultura oral, sem base no letramento, exige suas próprias regras de funcionamento. O fundamental de uma cultura oral é a quantidade reduzida de informações e a efetividade do conteúdo das mesmas.

E sobretudo, a memorização, repetição e memorização. Que também exigem “tempo”. Por isso chamei isso de nova cultura oral, pois ela surgiu sem a variável tempo e memória. Tempo de aprofundamento, de leitura e reflexão para amadurecimento e tempo passado< memória para guardar e chamar essas reflexões a testemunhar um outro momento presente.

O desletramento é algo extremamente sério. É diferente do analfabetismo ou não letramento. O desletramento mostra pessoas que até então tinham letramento invejável perdendo sua capacidade. Elas não lêem mais, a capacidade de reflexão foi combalida pelo excesso de informações curtas e desencontradas, e são anestesiadas por vídeos curtos ou séries maratonáveis. O desletrado também passa por uma motivação cada vez menor para se dedicar a qualquer atividade escrita pois esta acaba por se tornar um “sacrifício”. O outro dado extremamente importante é que acabou o reforço positivo da sociedade em favor do letramento.

Aqui não falamos das instituições, mas do imaginário popular. Pessoas enriquecem – ou apenas ficam famosas -, realizando pequenos vídeos de conteúdo superficial e banal, postados na internet. Tem milhões de seguidores e quando os especialistas se perguntam por que estas pessoas são seguidas não conseguem encontrar respostas claras. Ás vezes tudo o que o “influencer” é “é bonitinho”. E claro, passamos também a uma cultura extremamente sexualizada, mas sobretudo objetificadora.

            O desletramento levará à falência das instituições baseadas no letramento. Pense sobre isso, e não, não há nada de bom vindo daí.

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