"Sábios e sábias sabiando burburinhos, murmúrios e gorgulhos imitando gorjeios de passarinhos"
Assim te louvarei:
“Como era doce passear por teus espaços,
flanar por teus becos e veredas; quão bom era demorar-me por entre tuas
estantes, pegar um livro, folheá-lo com ar de seriedade, ajeitar os óculos, por
nos lábios um sorriso maroto cúmplice com o autor, ou na esquina do lábio o
esgar de um sorriso cínico e sarcástico. Quanta graça no ritual de estender a
mão e escolher mais um tomo, retirá-lo ligeiramente do lugar e deixa-lo como
estava. Como que dizendo “esse não”, compreendendo tudo pela capa. E tu estavas
lá, acolhedora, propiciando o meu vagar. Quantas vezes mirei as crianças brincando,
correndo por aquele lugar, algumas com livros nas mãos. Era como se pudesse ver
com otimismo as futuras gerações.
Louvada
sejas tu, ó livraria, que sempre teve as portas abertas para acolher. Em meio ao
inferno da Paulista fazias a vez de templo, onde o bom Deus se encontrava por
escrito em teus milhões de páginas. Quantos cafés tentei tomar nos teus
espaços, por duas vezes consegui, as mesas sempre muito disputadas, atendidas
pela garçonaria atarantada. O café lotava de professores, intelectuais e
artistas – ou de pessoas que gostavam da nossa companhia com pouca pudicícia.
Talvez para ficarem inteligentes por osmose, embriagadas pelo cheiro do café.
Olhar por aquele entorno era como ver ministros a passearem pela esplanada dos
Ministérios, nunca ministeriando, mas vagando sem cessar. Sábios e sábias sabiando
burburinhos, murmúrios e gorgulhos imitando gorjeios de passarinhos. Como uma
mãe generosa, recebeste a todos, estudantes jogados pelo chão entre almofadas,
sonhos e solas de tênis se erguendo aos nossos olhos. Sons segredados nos
ouvidos fones. Tantos de nós, convidados a aceitar a proposta de acolhimento e
aproximação desta livraria.
Acolhidos, confortados por algum silêncio, escarrapachados pelos almofadões, agachados ou sentados pelo acarpetado chão. Quantos encontros marcamos nas suas portas, quanta hora fizemos folheando seus livros enquanto esperávamos por alguém indo em seguida para direção. Ei de louvar-te, fostes espaço de acolhimento, de passagem, de convívio, de fragrâncias e de flagrantes livros delitos. Vi de canto de olho paixões nascerem entre os jovens, safadezas e delicadezas sensoriais entre senhores e senhoras em cujas alcovas a livraria deitou várias histórias. O que mais te louvamos não são os teus livros, Dvds, discos, HQs e lançamentos. Nem ao menos nos lembramos dos títulos que aí compramos (?),. Ai, quantos tormentos...”
Assim te criticarei:
A
comodidade de tanto conforto e beleza deste jardim fez-nos esquecer que não se
tratava de um templo sagrado, mas de um comércio. E a maioria de nós aproveitou
gratuitamente suas benesses sem jamais se preocupar de todo com o ato de comprar
um livro, ou vários. Sim, era disso que vivia a Livraria, vender livros. E
vendia. Vender. Vendeu muito, vendeu pouco. Que era isso nem parecia, nem
pareceu, fechou e morreu. Quantas vezes eu vi ,e vocês viram, a imensidão de
visitantes e as pequenas filas ou ausência destas nos caixas. Quem jamais se
perguntou sobre essa incoerência? Tanto esforço, tanto gasto para tão pouca compensação.
Não falo de toda a organização, mas apenas do óbvio naquele espaço.
Tive
a pouco uma idéia que poderia ter salvo a Livraria Cultura, desde que ela tivessse
feito isso desde sempre. Cobrar cinco reais de cada um que ali entrasse e não
saísse com um livro comprado. Imaginem quantos milhares de reais num único dia?
E uma taxa tão pequena não pesaria quase nada a ninguém. Desde já sei que se
riem da idéia: “Que absurdo! Ninguém pagaria para entrar numa livraria. Lá é um
comércio!”
É onde eu gostaria de chegar. Enquanto a maioria de nós lamenta essa perda, poucos lamentam de fato os livros que não comprou, os livros que não terá acesso físico, as experiências culturais que a Livraria Cultura propiciou. Todos gostam de almofadas, cafés e ar condicionado, todos gostam de jardim, desde que não lhe cobrem o din-din. Nós intelectuais geralmente somos pão-duros, e gostamos de saber muito bem com que livro gastamos nosso tempo e dinheiro. Outros não são tanto assim, compram por impulso o que teve para si alto custo.
Sejamos honestos, na Paulista a Livraria Cultura desde sempre deveria ter
vendido – ou alugado – a ocupação dos seus espaços, e a venda de livros
entraria como um adereço dos novos tempos. O que faltou foi a adequação do
passar dos anos. A proposta inicial que permitia um convívio maior entre as
pessoas e os livros não foi acompanhada por um grande crescimento das vendas
como se gostaria. E, com o tempo, sobrou apenas o espaço, e os livros não mais
vendiam, pois que não interessam mais à população em geral. É do espaço e sua
sacralidade que sentiremos falta, e não de comprar os livros que ali eram
vendidos. Comprar livros, compramos em qualquer lugar, era do espaço decorado
pela cultura que gostávamos (sim, a cultura é decorativa atualmente).
Então,
antes de jogar uma flor e um punhado de terra no túmulo da amada Livraria
Cultura, fica aqui minha proposta, que o Estado compre o lugar e que faça ali
uma imensa biblioteca. E que esta supra o papel da Livraria Cultura, tenha livros
– até mesmo os venda -, mas sobretudo que seja um jardim para os flaneurs de todos os tempos se
encontrarem em meio à sacralidade do saber. Não somos sábios flaneurs e nem flanelinhas do saber,
somos apenas pessoas que buscam um lugar de acolhimento. Nosso país tem
sambódromos, por que não um jardim para as idéias?! Que o Estado compre o lugar
e que tenhamos a Biblioteca Cultura, e que se cobre para ali entrar. RIP,
Livraria Cultura!
P.S., usei as virgulas
para ritmar a leitura.
P.S2. não falei da crise
da venda de livros por que já é passado.
P.S. 3. Acabou os P.Ss.
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