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Adeus, Livraria Cultura!

 

          "Sábios e sábias sabiando burburinhos, murmúrios e gorgulhos imitando gorjeios de passarinhos"

  Assim te louvarei:

 “Como era doce passear por teus espaços, flanar por teus becos e veredas; quão bom era demorar-me por entre tuas estantes, pegar um livro, folheá-lo com ar de seriedade, ajeitar os óculos, por nos lábios um sorriso maroto cúmplice com o autor, ou na esquina do lábio o esgar de um sorriso cínico e sarcástico. Quanta graça no ritual de estender a mão e escolher mais um tomo, retirá-lo ligeiramente do lugar e deixa-lo como estava. Como que dizendo “esse não”, compreendendo tudo pela capa. E tu estavas lá, acolhedora, propiciando o meu vagar. Quantas vezes mirei as crianças brincando, correndo por aquele lugar, algumas com livros nas mãos. Era como se pudesse ver com otimismo as futuras gerações.

Louvada sejas tu, ó livraria, que sempre teve as portas abertas para acolher. Em meio ao inferno da Paulista fazias a vez de templo, onde o bom Deus se encontrava por escrito em teus milhões de páginas. Quantos cafés tentei tomar nos teus espaços, por duas vezes consegui, as mesas sempre muito disputadas, atendidas pela garçonaria atarantada. O café lotava de professores, intelectuais e artistas – ou de pessoas que gostavam da nossa companhia com pouca pudicícia. Talvez para ficarem inteligentes por osmose, embriagadas pelo cheiro do café. Olhar por aquele entorno era como ver ministros a passearem pela esplanada dos Ministérios, nunca ministeriando, mas vagando sem cessar. Sábios e sábias sabiando burburinhos, murmúrios e gorgulhos imitando gorjeios de passarinhos. Como uma mãe generosa, recebeste a todos, estudantes jogados pelo chão entre almofadas, sonhos e solas de tênis se erguendo aos nossos olhos. Sons segredados nos ouvidos fones. Tantos de nós, convidados a aceitar a proposta de acolhimento e aproximação desta livraria.

Acolhidos, confortados por algum silêncio, escarrapachados pelos almofadões, agachados ou sentados pelo acarpetado chão. Quantos encontros marcamos nas suas portas, quanta hora fizemos folheando seus livros enquanto esperávamos por alguém indo em seguida para direção. Ei de louvar-te, fostes espaço de acolhimento, de passagem, de convívio, de fragrâncias e de flagrantes livros delitos. Vi de canto de olho paixões nascerem entre os jovens, safadezas e delicadezas sensoriais entre senhores e senhoras em cujas alcovas a livraria deitou várias histórias. O que mais te louvamos não são os teus livros, Dvds, discos, HQs e lançamentos. Nem ao menos nos lembramos dos títulos que aí compramos (?),. Ai, quantos tormentos...”

         

Assim te criticarei:

A comodidade de tanto conforto e beleza deste jardim fez-nos esquecer que não se tratava de um templo sagrado, mas de um comércio. E a maioria de nós aproveitou gratuitamente suas benesses sem jamais se preocupar de todo com o ato de comprar um livro, ou vários. Sim, era disso que vivia a Livraria, vender livros. E vendia. Vender. Vendeu muito, vendeu pouco. Que era isso nem parecia, nem pareceu, fechou e morreu. Quantas vezes eu vi ,e vocês viram, a imensidão de visitantes e as pequenas filas ou ausência destas nos caixas. Quem jamais se perguntou sobre essa incoerência? Tanto esforço, tanto gasto para tão pouca compensação. Não falo de toda a organização, mas apenas do óbvio naquele espaço.






Não sejamos simplórios, mas choremos no seu velório. É sim uma grande perda este espaço, estes espaços se fecharem. Todavia, não eram jardins públicos, nem eram sustentados pelo Estado. Manter o conforto da multidão que frequentava a livraria, e seus anexos, era por si só um custo absurdo. Funcionários bem formados e sorridentes, cúmplices dos seus clientes, um custo enorme. Ar condicionado gigante, um custo infamante. Tantas comodidades e afetos tínhamos ali que não nos lembramos que as “mães também precisam ser amadas, sustentadas e paparicadas”  não é apenas na sua morte que devemos nos lembrar e lamentar, é em vida que devemos mantê-las e sustenta-las no que elas são e têm de melhor. Imagino que eu e você gastamos e fizemos o quanto podíamos, não como um favor mas como clientes. Somos poucos e a proposta do lugar era gigante.

Tive a pouco uma idéia que poderia ter salvo a Livraria Cultura, desde que ela tivessse feito isso desde sempre. Cobrar cinco reais de cada um que ali entrasse e não saísse com um livro comprado. Imaginem quantos milhares de reais num único dia? E uma taxa tão pequena não pesaria quase nada a ninguém. Desde já sei que se riem da idéia: “Que absurdo! Ninguém pagaria para entrar numa livraria. Lá é um comércio!”

É onde eu gostaria de chegar. Enquanto a maioria de nós lamenta essa perda, poucos lamentam de fato os livros que não comprou, os livros que não terá acesso físico, as experiências culturais que a Livraria Cultura propiciou. Todos gostam de almofadas, cafés e ar condicionado, todos gostam de jardim, desde que não lhe cobrem o din-din. Nós intelectuais geralmente somos pão-duros, e gostamos de saber muito bem com que livro gastamos nosso tempo e dinheiro. Outros não são tanto assim, compram por impulso o que teve para si alto custo. 

Sejamos honestos, na Paulista a Livraria Cultura desde sempre deveria ter vendido – ou alugado – a ocupação dos seus espaços, e a venda de livros entraria como um adereço dos novos tempos. O que faltou foi a adequação do passar dos anos. A proposta inicial que permitia um convívio maior entre as pessoas e os livros não foi acompanhada por um grande crescimento das vendas como se gostaria. E, com o tempo, sobrou apenas o espaço, e os livros não mais vendiam, pois que não interessam mais à população em geral. É do espaço e sua sacralidade que sentiremos falta, e não de comprar os livros que ali eram vendidos. Comprar livros, compramos em qualquer lugar, era do espaço decorado pela cultura que gostávamos (sim, a cultura é decorativa atualmente).

Então, antes de jogar uma flor e um punhado de terra no túmulo da amada Livraria Cultura, fica aqui minha proposta, que o Estado compre o lugar e que faça ali uma imensa biblioteca. E que esta supra o papel da Livraria Cultura, tenha livros – até mesmo os venda -, mas sobretudo que seja um jardim para os flaneurs de todos os tempos se encontrarem em meio à sacralidade do saber. Não somos sábios flaneurs e nem flanelinhas do saber, somos apenas pessoas que buscam um lugar de acolhimento. Nosso país tem sambódromos, por que não um jardim para as idéias?! Que o Estado compre o lugar e que tenhamos a Biblioteca Cultura, e que se cobre para ali entrar. RIP, Livraria Cultura!

P.S., usei as virgulas para ritmar a leitura.

P.S2. não falei da crise da venda de livros por que já é passado.

P.S. 3. Acabou os P.Ss.

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