Conversando com um querido amigo percebi que uma de minhas dificuldades não
era tão egoisticamente minha. Ele se perguntava o que fazer nesta altura da vida
(depois dos cinquenta) quando você não teve filhos. Olhava para o passado, e
mesmo sem querer parecer desanimado, carregava sobre os ombros todo o peso de
uma sociedade que desenha o tempo todo o que é o homem ideal, o ser humano
ideal. Bem... Nem todos nós nascemos para ser estes seres humanos ideais –
talvez ninguém.
Bem, eu não tive filhos, e até onde sei não os terei. Nada contra, só não
os tive. E acho que um monte de homens e mulheres da minha geração não os teve.
Talvez por que estávamos cheios de sonhos diferentes depois de séculos de
conformismo social e cultural. Alguns se casaram muito tarde, outros apenas
juntaram os trapinhos... tantas vezes o fizeram que poderiam abrir uma loja de
retalhos. Mas isso não importa. Queríamos algo diferente, uma vida diferente, e
a experimentamos, sem medo, com medo, entre sustos e gratificações. Com certeza
ter filhos é uma experiência fascinante, mas não a tivemos, e isto basta, não é
nem triste e nem lamentável.
Chegou um momento na minha existência no qual eu tive de me dizer o que
eu havia feito de mim e o que haveria de ser no futuro. A vida para quem não
seguiu os ditames sociais pode ser um pouco difícil, mas não ingrata. Existem
inúmeras outras formas de existência que não cooperam para a procriação e
reprodução humanas. E todas elas estão ligadas à idéia de “obra”. Qual é a
minha obra? O que eu irei deixar de meu para a sociedade que me criou e
sustentou? Que utilidade eu tive depois de longos anos de investimento?
Uns fazem artes, outros constroem prédios, outros ainda constroem obras
sociais eivadas da política humana. Estas últimas poucos veem, mas muitos se
beneficiam. Eu faço literatura. E claro, alguns poderão obtemperar (e a palavra
é esta mesma, pois hoje estou erudito) que o faço por que desejo não ser
esquecido, ter uma memória cultivada pela posteridade, etc, etc, etc. Talvez
queira. Aprendi muito cedo que os deuses gregos dependiam da memória dos
homens, enquanto fossem louvados e lembrados eles existiriam. Bem... Não sou nenhum
deus grego, mas entendo um pouco do que isso significa. Estar na memória dos
homens para além da minha própria existência, eis um legado.
Um dos meus filósofos estóicos prediletos afirmava há quase dois mil
anos: “Por que te preocupas com a posteridade? Por que queres ser lembrado por
desconhecidos, imorais, irracionais, perdulários de todos os tipos?” Bem...acho
que ele estava de mau humor naquele dia.
Às vezes imagino que muitos anos após a minha morte um leitor encontrará
um livro meu num sebo, e lendo, se pergunte “Quem foi Luiz Vadico?” Pronto,
estarei vivo. Mas isto ainda é algo muito distante. Então, penso que parte do
meu legado será a resposta para uma pergunta: Quantas pessoas eu inspirei e
incentivei a se tornarem grandes, maiores do que si mesmas? A essa pergunta
tenho uma resposta: todos os dias. Acredito mais no humano do que ele mesmo,
sei do seu potencial criador. Sei que muita gente – de todas as idades – só
precisa de alguém que acredite nelas, lhes dê um pequeno impulso. Alguém que
lhes diga honesta e sinceramente o quanto elas são grandes e interessantes. Alguns
deixam sua carga genética – e isso é bom. Outros deixam a sua carga de
humanidade e isso é melhor. E há aqueles felizardos que deixam as duas. Bem,
não faço parte destes últimos, ao menos as editoras ficarão felizes em não
terem de disputar com ninguém os direitos autorais.
Busco atuar no mundo acadêmico, deixando uma obra que sustente o que há
de vir por aí. Preocupo-me em elaborar trabalhos introdutórios, e refletir
sobre questões ainda virgens. É de desbravar fronteiras que falo. Sinto-me
influenciado pelas falas iniciais daquele antigo seriado televisivo, Star Trek:
“O espaço, a fronteira final, essas são as viagens da Enterprise, em sua missão
de cinco anos para explorar novos mundos, novas civilizações, indo
audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve...”
Sinto-me frequentemente assim, e perdoem-me se parecer falta de modéstia.
Quando não sei o que fazer diante dos meus novos dilemas e problemas, lembro-me
dessa frase: “indo audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve...” E aí
continuo minha jornada, pagando o preço. E, bem, isso é desconfortável, mas
alguém tem de ir nestes lugares extremos da humanidade. Então, por que não eu? Então,
por que não você?!
Este meu amigo, fez comigo o papel que tenho diante de outras pessoas.
Ele me inspirou, incentivou, aceitou minhas loucuras e me jogou no espaço
sideral. O que sou, deve muito ao que ele é, e ao que ele fez de si. Temos uma
obra, e ela é de papel, é de tintas, é de pedra, é de pessoas... É isso que se
faz, é isso que se sofre, quando decidimos ir aonde ninguém foi. Mas somos
úteis, desbravadores do espaço, do tempo, do infinito. Inspiradores da condição
humana. Sempre existirão os poemas que não foram ditos, e acredito que algumas
palavras e sentimentos meus estarão neles. Os frutos de uma vida não se contam
apenas pelas sementes, também se contam pelo abrigo da sombra que se deu aos
que estavam cansados e em pleno sol, se conta por ter se enfeitado todo na primavera,
se conta pelo exemplo em meio às tempestades.
Obrigado meu amigo por ter me inspirado e apoiado em meu caminho. Muito
tempo após você ter ido, muito tempo após eu ter ido, a sua influência, o seu
impulso criador ainda estará movimentando pessoas, mentes e idéias criativas,
que estarão sempre inspirando a humanidade. A cada um Deus sabe por que
escolhe. Uns ele manda plantar e colher, a outros ele manda cantar. Todos têm
utilidade na orquestração da vida. Nenhuma destas utilidades é menor.
Comentários