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Memória Impura e a Padaria



Em nosso dia-a-dia todos vivemos experiências fascinantes e inesperadas. Poucos anos após chegar em São Paulo eu estava padecendo de uma solidão crônica, mal adaptado. Tão carente de amigos e pessoas estava que, um belo dia, indo à padaria da esquina de casa, um senhor que lá trabalha no balcão me atendeu com tanta cordialidade, carinho e atenção que não resisti, lá voltei para tomar o café no dia seguinte... (ô carência...)

Aos poucos fui, dada a frequência de minhas visitas à padaria, conhecendo todos os atendentes e acabou surgindo uma gostosa intimidade, que notei, é típica destes funcionários com todos os frequentadores. Cada um deles com uma deliciosa personalidade. Logo perceberam um pouco das minhas manias, entre elas a de sempre pedir “Misto Quente” com mais queijo, já faz vários anos que chego lá e soltam o grito para a cozinha: “Solta o Misto Quente do Luiz!”

Com o progressivo aumento da amizade, um dia eles acabaram sabendo que sou escritor, e mostraram interesse em conhecer meu trabalho. Bem, dei para cada um deles meu primeiro livro “Maria de Deus”. Depois, de lerem e comentarem, ao longo do tempo, assim que eu chegava no balcão a primeira coisa que me diziam: “Quando você vai lançar outro livro?”

Demorou um pouco e lancei “Filmes de Cristo. Oito aproximações”. E, qual não foi a minha surpresa, eles queriam o livro também. Como eles são em sua maior parte Evangélicos, agarraram-no, já foram lendo e depois levando para as sua igrejas e fazendo propaganda. Quem diria... Um livro de teor acadêmico, universitário, à vezes de leitura difícil...

Bem, mas daqueles livros eu possuía uma boa cota e poderia distribuir um pouco. Mas, pensam que se deram por satisfeitos? Não, novamente começaram, quase todos os dias, “E, aí, Luiz?! Quando sai o livro novo?”

E, quando eu estava um pouco desanimando do desejo de lançar, parece engraçado, este pequeno cutucão semanal, me dava ânimo para correr atrás das editoras. Quando fui lançar “Memória Impura” os convidei para o lançamento, mas infelizmente, por causa dos horários de trabalho não puderam ir.

Então, começaram a falar todos os dias que iriam comprar o livro... E, foi então que pediram para que eu trouxesse um exemplar para eles conhecerem. Coloquei um exemplar numa caixinha plástica e lá deixei. Afinal, não iria atrapalhar o seu trabalho na padaria pedindo que vissem na hora.

Passados alguns dias, veio a reclamação de um deles: “Fulano pegou o livro e não deixa a gente ver! Ele tá lendo já!” e seguido de Cicrana, que esbravejava: “Isso não vale, eu também quero ver!” Nos dias subseqüentes a mesma reclamação em forma de gozação reapareceu. Até que anteontem, ao ir tomar meu café da manhã lá, o acusado de monopolizar o livro, depois de muita pressão dos colegas, estendeu-me o exemplar para devolver. O livro, marcado até a metade com a orelha da capa. E aí, inesquecivelmente, com os olhos brilhantes ele me falou assim: É uma pena devolver, por que assim que leio a primeira frase não consigo mais parar de ler, agora eu parei aqui: “Por que tarda a morte quando a beleza já me abandonou?”

Fiquei desarmado, pois ele disse a frase decor e cheio de emoção. Fiquei completamente pasmo, emocionado. Pois é uma pessoa que eu julgava teria dificuldades “morais” de leitura deste trabalho, por causa da sua religião e tudo o mais. Ele já havia passado por Solidão Macedônica, O Filosofo e Firmino, e saído ileso! E estava emocionado com Folhas Secas de Outono... Ah, me senti o homem mais mesquinho da terra. Pedi o livro e fiz uma dedicatória para a equipe que me atende todos os dias. E sugeri que após lerem eles sorteiem para ver com quem ficará. Sorrisos por todos os lados. Logo, começarão novamente: “E aí, Luiz, quando vai sair o livro novo?” Com certeza, logo...

Como não os avisei deste comentário, deixo de citar o estabelecimento e seus nomes. Mas, sei que eles gostariam de saber que foram lembrados. Já os agradeci pessoalmente pelo incentivo, e lá continuo comendo o meu “misto Quente” – um por semana pra não engordar, rs. É como sempre digo: ninguém cresce sozinho, ninguém prescinde de ninguém neste mundo. E amigos surgem de todos os cantos.

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