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Deus IV - A abstração da abstração, o indizível fundamentado na palavra.

 A mecânica da experiência mística


Ás vezes não sei por que preciso escrever algo, mas sigo a intuição que vai construindo caminhos inesperados e alcançando as pessoas que podem precisar de uma ponte. No último texto falamos sobre o real e a realidade, e a sua constituição. E alertamos para o fato de que o humano sem o humano não se humaniza. E apesar da concretude material das minhas afirmações anteriores, desta vez iremos por um caminho minimamente necessário, a formação da mente, ou consciência como também podemos chamar. Refletiremos - por aproximação - sobre a construção básica do indivíduo; e iremos das relações fundamentais de sobrevivência do corpo até chegarmos à abstração, e à suprema abstração, Deus; numa relação mediada pela imaginação. Vamos à viagem!


O cérebro faz de tudo para sobreviver, por isso manipula os outros cérebros e estende seus tentáculos
no mundo externo. 

Anteriormente havíamos falado que o bebê é expulso da mãe e rasteja em busca de alimento; falamos também do processo de individuação, no qual ele se separa da mãe e inicia o processo para formar uma pessoa. Como foi dito, um cão separado dos cães, ainda é um cão; um humano separado dos humanos não se constitui humanamente. O mistério disso não é tão somente a sociedade, a família e o afeto, mas sim o cérebro. O cérebro e a sua plasticidade, e um elemento muito importante diretamente relacionado a isso a linguagem (nesse caso só uso a palavra e não o conceito acadêmico, para o qual não estou habilitado).

            Ainda que tratemos de coisas imateriais, mantenha em mente que falamos de cérebro e não de pessoas; ainda que eu fale homem, humanos, mulher e criança. Trato aqui do fenômeno orgânico, num esforço metodológico de separá-lo da sua condição cultural e afetiva, para podermos observá-lo por outros ângulos também verdadeiros.

            O cérebro humano é uma das mais intrincadas criações da natureza cuja evolução - esperamos - tenha ocorrido no planeta Terra. Diferentemente dos animais que nos circundam, o filhote de homem é o menos preparado para existir após o nascimento, exigindo muito tempo de cuidado. A dificuldade para que geste, nasça e cresça um ser humano quase obriga à pergunta: como é que não nos extinguimos há milhões de anos?! Neste processo de surgimento de uma vida humana o cérebro é o órgão mais importante no momento do nascimento, pois todo o resto está por se organizar, desenvolver e crescer. Este órgão maravilhoso precisa ser percebido como uma espécie de “parasita”, assim fica mais fácil entender seu desenvolvimento. Ele é como um polvo que estende seus tentáculos pelo mundo.

            Ao ser expulso da Mãe, que foi seu hospedeiro, o cérebro necessita encontrar os recursos que o manterão vivo. Ele tem pouco tempo para fazê-lo, pois se não o fizer de forma eficiente morrerá (mantenha em mente, ele não é uma pessoa). Sua primeira forma de manifestação é um choro - neste caso ainda vagidos - cujo timbre tem a capacidade de incomodar e irritar os humanos à sua volta. Este som desperta um senso de urgência. E mais do que se preocupar com o que, ou quem faz este ruído, os cérebros dos circunstantes preocupam-se em fazê-lo cessar.

É só a cultura, civilizada ou tribal, que faz você se horrorizar com esta abordagem. Importante dizer que o investimento afetivo é um fator nesta conta. Entretanto, ele não é tão necessário; pois em havendo afeto, ou não, o cérebro recém-nascido buscará formas de se moldar à realidade do seu entorno para satisfazer suas necessidades. Lembremo-nos do caso das crianças adotadas por animais. Em realidade foi o inverso, o cérebro daqueles pequenos corpos adotou os animais, pois eles eram o que era possível ser feito para sobreviver. Ele buscou atender as suas necessidades.

            E elas são: fome, sede, calor, proteção e abrigo. O medo é a primeira emoção que este cérebro irá experimentar - e manifestar - após o trauma e a violência extremas do nascimento (que podem resultar posteriormente no sentimento inconsciente de abandono e rejeição). Ele está frágil e só no mundo, então grita de medo e desespero. Não é o amor que nasce primeiramente. O cérebro está em fortíssimo alerta, precisa garantir que suas necessidades mínimas sejam atendidas. Gritar, irradiando uma determinada onda sonora que irá ativar receptores em outros cérebros, é sua primeira forma de atuar no mundo. Este som - desesperado - é violento. Qualquer um de nós que já esteve com um recém-nascido, sabe o efeito que este “grito” tem nos cérebros adultos. Eles ficam imediatamente em estado de estresse máximo, e quando conseguem calar o “pedido” ficam aliviados como se tivessem impedido um incêndio de grandes proporções.


Som emitido pelo cérebro, desesperado, agressivo e violento para os receptores.

Sim, é estranho dizer, mas aquele pequeno cérebro manipulou você, é por isso que ele faz o que faz. Seu primeiro contato com o mundo é agressivo - porém é uma necessidade de vida ou morte. Ele soube o que emitir para ser atendido. Lembre-se, os bezerros não fazem praticamente ruídos ao nascer. Até mesmo os cãezinhos quase não são ouvidos de imediato. Outros quadrupedes nascem e saem saltitando pouco depois, e nenhum nasce gritando, apenas o filhote humano. Nasceu um cérebro! É isso que deve ser dito. E o corpo que se constituiu para ele passará a vida o alimentando; sempre premido diante das exigências frequentes de altas quantidades de calorias repletas de proteínas e enzimas. A maior parte do que você consome - quando não vira gordura - serve para alimentar o cérebro. Esse órgão é extremamente complexo necessitando de muita energia, e se esforça por consegui-la o tempo todo. A gordura é a reserva do supérfluo para alimentar o cérebro - se houver escassez de alimento.

Este órgão no esforço para sobreviver irá se desenvolver, ativará sua plasticidade - se transformará sutilmente ou de forma radical, conforme o ambiente. Assim que possível estenderá as pequenas garras a fim de pegar alguma coisa. Alguma coisa é comida. Sempre comida. Tudo o que não for comida que ele buscar se deve à necessidade de manter seu abastecimento de alimento, ou as suas outras necessidades que se desdobram desta. Sei que pareço um pouco redundante, mas é preciso enfatizar a importância disso, pois nos passa despercebido no cotidiano e a sua relevância é posta de lado e esquecida. O desenvolvimento do sujeito depende bastante do sucesso que este cérebro obteve no princípio. Por causa destas necessidades ele se lança ao mundo. Primeiramente gritando, depois gritando e estendendo seus braços mãos e pernas, e enquanto se apropria do aparelho fonador (através de grunhidos) ele também inicia a rastejar e a desenvolver mais e mais técnicas para garantir o que precisa, comida.

Nas primeiras vezes que os humanos do entorno atendem o seu grito, a sua resposta é calar-se depois de satisfeito, e com frequência adormecer. Em pouco tempo aprenderá a demonstrar satisfação, com um leve grunhido, uma ameaça de sorriso, mas principalmente, com o olhar que se direciona diretamente pra aquilo que o satisfaz (em sua experiência ainda não é “quem”, mas o que). Ele estabelece um elo neste momento, e a primeira palavra será uma sílaba: “Moh”. Que depois se desdobrará na palavra “Mãe” (e/ou Mother em inglês e todas as suas variações em outros idiomas).

O nascimento do sorriso, cérebro sorrindo dormindo

Esta silaba é universal. Ela não é cultural, não é ensinada. Ela seria dita para a primeira pessoa que pegasse este cérebro nascituro e cuidasse dele. É a sílaba universal de vinculação. Ela é codificada geneticamente. Com ela ele estabelece a “sua” obrigação de cuidar dele, estabelece para você que é seu dependente. E ainda - não culturalmente - o seu cérebro responde de forma a aquiescer a essa vinculação, pois esta também foi a sua sílaba fundamental. É um reconhecimento genético. A sua memória orgânica a guarda em si no mais profundo do seu cérebro.

“Moh” nos une e vincula. Ainda que culturalmente essa sílaba remeta à cuidadora, pois frequentemente é a geradora daquele cérebro, isto não precisa ser assim. A sílaba, não é uma pessoa no primeiro instante, é uma partícula vinculadora. De alguma forma ela é uma “palavra mágica” que agrilhoa uma pessoa ao pequeno cérebro.

Sim, aquele cérebro encontrou uma forma de que alguém o sirva em suas necessidades. Vamos pensar nos Antílopes, ou nos Veados Campeiros, tanto faz, eles atendem suas próprias necessidades, ainda que desenvolvam algum afeto pela Antílope em troca de leite. Ops! Adiantei-me, afeto em troca de comida. “Oh, Deus! Estes antílopes manipuladores!”

A segunda palavra que os cérebros do entorno tentarão - com muita dificuldade - ensinar ao nascituro a falar é “Papai” e quando sair será um mero “Pah”, entretanto, essa será meramente uma palavra cultural. Notem que chamo de palavra, pois ainda que emitida como uma sílaba pelo nascituro é uma palavra na origem, e é ensinada. Repetem-na à exaustão para que a criança a emita. Inclusive é ensinada para a satisfação do humano do sexo masculino, que fica frustrado por não ser “reconhecido” pelo cérebro faminto. Festeja-se quando essa partícula é “adivinhada” nos ughes gughes do bebê. Frisando, a sílaba “moh” é como a senha que exige a contrassenha plantada no organismo do adulto. Após a vinculação um elo se estabelece, pode ser mais intenso ou menos, mas é único.

Agora temos pés, mãos e corpo que se mexem, gesticulam e se alçam na direção das coisas das quais ele necessita ou deseja alcançar para satisfazer suas necessidades. A aprovação que mostra sorrindo ou fazendo sons - reconhecidos por nós - de aprovação e acolhimento, faz por reconhecer a proximidade da satisfação das suas necessidades. Ele não te ama, ele fica satisfeito ao te ver, pois você significa comida fácil. Este cérebro não terá que se esgoelar e descobrir novas formas de ser atendido ele encontrou alguém que irá servi-lo, então sorri para você e você fica feliz em poder servi-lo - pois ao fazê-lo não terá o estresse do choro. Aquele pequeno cérebro está se comunicando com o seu, e ás vezes você tem de se livrar da cultura civilizada para entender os sinais que ele dá. A partir deles ele poderá ser iniciado na cultura através de imitação e repetição.

A primeira relação fundamental é aprovação e desaprovação e foi iniciada pelo medo, e no que ela vier a significar de “apego” o significa por causa apenas de tudo o que foi dito até aqui. É importante notar que o sorriso nasceu - provavelmente - como imitação da satisfação dos cuidadores. O pequeno cérebro sabe que aquilo dará algum prazer e satisfação aos que o alimentam, e o emite no momento apropriado. Quando ele adormece, você poderá notar em suas expressões que ele está decodificando o “sorriso”, ele não chora adormecido, mas sorri dormindo. O sonho é uma forma de redundância do aprendizado cotidiano. Quando sorri dormindo ele está “exercitando”, para depois realiza-lo no momento adequado. Tudo de forma instintiva e ainda sem consciência. Podemos sugerir que neste momento ele fez brotar a empatia. Ele se prepara para o aprendizado, daí por diante imitará o que vê. É importante notar que a visão é o sentido que mais lhe dará informações cerca de 70 % do total. É uma característica do nosso organismo e também uma debilidade.

Antes de qualquer outra forma comunicativa, a terceira (às vezes a segunda) a aparecer é o famoso “dah”. Essa sílaba também é universal, e obedece à necessidade de alcançar por si mesmo as fontes de alimento, ou as coisas que chamam atenção. O pequeno cérebro ainda não tem controle sobre a mobilidade do seu corpo, então precisa fazer com que tragam para ele o que deseja. “Moh” é a vinculação e a certeza do alimento, “dah” é o reconhecimento do mundo. E novamente, diante da sua necessidade de tocar e alcançar para poder ser independente daquele que o serve, ele se expressará de forma intensamente agressiva, ainda mais do que o vagido e o choro originais. A intensidade de um grito de “dah” é capaz de te obrigar a dar-lhe qualquer coisa que queira. É uma subjugação biológica através do som e do seu efeito na química cerebral. (Relembremos a importância do som de textos anteriores, ele é um dado material e físico e nos toca fisicamente).

"Dah"

É um momento tão insuportável que toda e qualquer pessoa que tenha estado próximo de um pequeno cérebro sabe como é absolutamente estressante lidar com isso. O “dah”, sua frequência e altura, é tão insuportável que muitos de nós os atendemos antes mesmo dele se tornar em algo mais estridente ou insistente, prontamente queremos nos livrar do ruído. Essa sílaba também marca o primeiro momento em que a vontade - subjetiva - começa a se manifestar. A curiosidade surge aí, e é natural que tudo que se lhe “dê” ele leve a boca, pois deseja saber se é comestível, que gosto tem. E ás vezes a reação é bem negativa. Entretanto, agora ele parece também fazer escolhas, e tentar aquilo que mais lhe agrada. Mas tudo passa pelo crivo: “é de comer?!”

A boca é a sua porta de contato com o mundo. Ela está pronta e desenvolvida antes mesmo da visão se tornar clara e se constituir de forma completa. A visão do pequeno cérebro é desfocada e embaçada. O que nos faz perguntar se a sua finalização em órgão completo não se realiza também pelo efeito da mente sobre este, através do aprendizado daquilo que importa ver. Aqui se inicia todo o processo que se manterá como o subterrâneo dos gestos e desejos, sonhos, delírios, conquistas, dores e frustrações do ser-humano plenamente desenvolvido. O que nos alimenta e tira a fome, nos dá satisfação e logo “prazer”, o que não faz isso, causa “desprazer”. O que atende a necessidade de calor - ou conforto térmico - dá prazer, e nesse contexto está o corpo quente da genitora e o cheiro liberado por ele, que garante ao nascituro (que não vê bem) que aquele é o corpo que garante a satisfação das suas necessidades.

O afastamento deste corpo lhe causa desprazer. O pequeno cérebro exige que cuidem dele constantemente, mesmo quando suas necessidades estão perfeitamente atendidas, precisa garantir que elas continuarão a serem atendidas. Então não suporta o afastamento. Por isso existe um choro específico que ele elabora que é prontamente calado quando é pego no colo. Quanto menos for atendido com agilidade neste processo, mais crescerá nele a sensação de abandono, logo, medo. O que trará neste cérebro a marca da insegurança. Inversamente a insegurança pode também estabelecer a agressividade como uma manifestação, pois esta o marcará a partir do esforço sonoro insistente para ter suas necessidades atendidas.

O choro e o riso serão suas principais ferramentas para ativar os outros cérebros no entorno para darem o que necessita e também o instrumentarem para caminhar e usar suas mãos e pés de forma socialmente adequada. Se no início da vida do cérebro o choro mobiliza os cérebros desenvolvidos para auxiliá-lo, numa atitude praticamente obrigatória; na vida adulta este choro costuma ter um efeito contrário, pois é entendido como aborrecido, agressivo e manipulador. O sofrimento demonstrado em sua forma inicial causa empatia, a sua manutenção constante é percebida como uma forma agressiva, autoritária e manipuladora de “aprisionamento” do outro. O que apenas demonstra como biologicamente o inverso é verdadeiro em relação ao nascituro. Cuida-se dele por uma determinação biológica e genética.

A Palavra

Enfim chegamos à palavra. De imediato diremos “palavras” para não lhe dar excessiva dignidade, posteriormente voltaremos à ela como questão metafísica.

A partir das sílabas “moh” e “dah” que como vimos uma é vinculadora e ao mesmo tempo garantidora da manutenção e a outra, desdobramento desta, mas exploradora para garantir a manutenção alcançada; ou seja, busca alcançar os recursos dos quais precisa, trazê-los até si, ou posteriormente ir até eles. A relação supostamente afetiva começa aí, no apego e na busca.

Em resposta a estes pedidos verbais e gestuais os cérebros maduros do entorno instruem, normalmente através de repetição de palavras e gestos, até que o cérebro jovem possa repeti-los de forma apropriada. O pequeno cérebro também é capaz de escolhas e por si mesmo imitará as coisas que veja, pois ele tem iniciativa própria. Inclusive tudo até agora foi iniciativa dele. Iniciativas que exigiram a submissão do outro às suas necessidades (não podemos culpá-lo, sem isso ele morreria). No que tange ao pequeno cérebro tudo foi desde sempre um jogo entre a vida e a morte, vale tudo para garantir a sua sobrevivência. Se ele nascesse entre os lobos e ursos, e macacos, ele seria lobo, urso ou macaco, mas continuaria vivo.

Essa é a fantástica capacidade plástica do cérebro. Quanto mais for exigido para compreender relações complexas mais complexo se torna, mais sinapses se desenvolvem para aumentar as relações internas e orgânicas dentro do mesmo. São relações físico-químicas sustentadas pela necessidade do aprendizado e ao mesmo tempo facilitadas e exigidas pela aquisição do mesmo. Plasticidade física cerebral e aprendizado são intrinsecamente relacionados, estabelecendo uma relação virtuosa de causa e efeito. Quanto mais complexa a rede neuronal, mais desenvolvido é o cérebro. Quanto mais desenvolvido for o cérebro, mais poderemos chamar de humano o seu detentor. Aos poucos notaremos que o humano o é para além do seu organismo, ele o é determinado por sua capacidade de fazer relações complexas e delas retirar consequências ainda mais complexas e elaborar outras relações de complexidade crescente. Até que o “diálogo” ocorra apenas através da complexidade (abstração) e não de trocas orgânicas e ou das relações dela originadas.

As palavras aprendidas e os acontecimentos (bons e ruins) são registrados pela memória. E ainda que frases possam ser pensadas como relação entre palavras, estas mesmas continuam ser memória do aprendizado e seu conteúdo, e significado, estão tão ou mais enterrados quanto a antiguidade do tempo em que o cérebro as aprendeu. Daí a proximidade entre desejo (fundante, a necessidade a ser atendida), palavra, e memória (o que fazer ou não fazer para ser atendido); estes três quesitos se refinam com o acumulo de palavras e de recursos para atender a necessidades cada vez mais complexas. É importante notarmos isso, que da simples relação necessária de comida e cuidado tudo se inicia, se desenvolve, amadurece e continua existindo num continuum a vida toda.

A memória, ainda que esteja bem fundamentada nas relações, não se organiza de forma linear, mas em camadas de fatos e informações sobrepostas. E estes se sobrepõem em camadas tão infinitesimais que sua sobreposição parece ser uma única tessitura, tal como se fosse uma rede; entretanto, ainda que assim pareça na superfície, a rede é neuronal (orgânica), não de memória (abstração/imagem). Por isso, quando se “puxa” um fato há muito profundo na memória ele “sobe” arrastando consigo outras memórias e relações necessárias.

A imensa maioria das memórias são constituídas por imagens, acompanhadas de signos que as organizam em escala de importância. E da mesma forma, inversamente que a memória foi organizada para melhor atender às necessidades, ela pode ser revista e alterada ou até mesmo anulada para atender outras tantas necessidades. A memória se constitui, assim, de um acumulado de imagens sobrepostas que se emaranham, dada a sua extrema proximidade umas das outras. As diversas camadas comprimidas formam uma tessitura que se articula vivamente sem ter um vínculo causal necessário, mas físico. O pensamento, projeção, racionalidade e imaginação, estão diretamente ligados ao poder do indíviduo - organizado pelo cérebro -, de evocar a memória - ou as memórias de todos os tipos - para se manifestar junto aos outros cérebros através de palavras e ações, constituídas pelas necessidades. A consciência fica assim, formada pelo cérebro, mas para além do cérebro, pois que ela está bem representada por essa vontade evocadora de informações e memórias que as utilizará para manter o cérebro.

A consciência é desde o seu princípio aquele impulso para satisfazer as necessidades do cérebro, torna-se complexa até se constituir - de certa forma - em um indivíduo separado, mas em relação com este mesmo cérebro, ao ponto de alguns acharem que a consciência pode sobreviver à morte do corpo, tamanha é a sua individuação e diferenciação. Mas não pode, como pudemos notar. A consciência é uma secreção dos processos cerebrais de atendimento das necessidades básicas, e é elaborada na relação com os outros cérebros, para a sustentação destas mesmas necessidades. Em outras palavras, a consciência é uma mediadora entre as necessidades do cérebro e o mundo, ou os outros cérebros e/ou as estratégias para atender essas mesmas necessidades.

A consciência é um recurso emanado por aquele órgão, ela não é o cérebro, mas a ele está intrinsecamente vinculada. E, estranhamente, e não inversamente, o cérebro pode continuar a existir e a ser alimentado (com o provimento das suas necessidades) sem que a consciência continue existindo de forma ativa e efetiva; para compreendermos este fato basta observarmos os estados vegetativos e os cérebros atacados pelo mal de Alzheimer. E a perda de memória não se dá em camadas e nem de forma linear, mas por “furos” na tessitura das diversas camadas, transtornando as lembranças quando evocadas e realinhavando-as na busca de um sentido comunicativo.

Tudo isso para podermos chegar à questão da imaginação. A partir destas relações todas, a imaginação - um ato da consciência - é uma atitude ativa de evocar, relacionar e dar sentido às imagens extratificadas como memórias de todos os tipos. Essa vontade da consciência cria novas relações e até mesmo novas atitudes e novos objetos. A imaginação, ainda que nascida e fundamentada nessa relação fundamental de necessidades não é de toda necessária. Ela só é algo quando evocada pela vontade da consciência, que só é algo devido às relações diversas entre o cérebro e o meio. A imaginação é a forma mais pura de abstração conseguida pela consciência.

A imaginação pode ser comunicada para outros cérebros, por meio da abstração, que por sua vez, também são convidados a imaginar a partir do mesmo processo. Então, a partir de todos estes elementos podemos dizer que imaginar, ficcionar, é a capacidade da consciência de criar mundos conceituais, de ser transformada por estes conteúdos criados e reelaborados e de ser afetada efetivamente por sua capacidade imaginativa. A memória e a imaginação, mediadas pela linguagem, são os fenômenos básicos das relações sociais e da formação do elo social permitido pela cultura.

E, enfim, esta mesma capacidade de abstração, imaginação e comunicação, permitem à consciência - que não é algo em si - imaginar e evocar a outra coisa que só é possível na abstração absoluta, Deus. E é neste sentido que A consciência e Deus se encontram. A consciência é a mediadora do cérebro com o mundo, Deus é o nexo mediador da natureza consigo mesma. Quando a consciência do individuo se encontra com a consciência suprema (por meio da vontade, abstração e imaginação) este mesmo indivíduo pode manifestá-la para outros indivíduos, através da música, ou das palavras, a partir da experiência mística, como a poesia, p.ex. O poeta comunica a experiência mística da sua consciência com a consciência suprema, cuja existência só é possível por causa da abstração da abstração. Deus IV.

 Ufa!!! Enfim, eu tinha razão para iniciar este texto, a intuição funcionou como um guia.

A consciência individual encontrando-se com a consciência suprema.

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