(ALERTA: ESTE TEXTO CONTÉM PALAVRAS E EXPRESSÕES VULGARES, CUJO USO É NECESSÁRIO)
O
Curral das Zebras
Marlon Brando |
O que aconteceu nos anos 80, relativamente aos homens que gostavam de homens, a repercussão da AIDS e do discurso científico sobre a mesma, e a discussão social sobre este “gosto dos homens”, foi uma catástrofe. Essa conjunção de fatores sociais, biológicos e de divulgação massiva pelos meios televisivos caiu feito uma bomba numa sociedade desinformada. Na realidade não existiam informações! Não adiantava procurar por elas, logo, sem chances de reflexão elaborada sobre o assunto.
O tema já vinha corrompido, filtrado por diversos
vieses e nenhum deles era positivo. No colo dos jovens rapazes dos anos 80, que
se encaminhavam para o silêncio de sempre, caiu a bomba, “não só era pecado,
como poderia matar”. Na mídia começavam a
explicar para todos quem eram estes homens que gostavam de homens. Explicavam
sem explicar, como fazem até hoje com muita coisa. Estranhamente eram verdades
prontas e acabadas de uma coisa que se desconhecia quase completamente.
Enquanto
era pecado tudo estava bem, só não havíamos percebido que este era o melhor dos
mundos. Porém, a geração dos anos 80 foi muito ética, e se havia uma coisa
comum a muitos jovens era a necessidade de fazer a coisa certa. E parecia que a
coisa certa era sair em “busca dos seus”, não enganar uma mulher em razão da nossa
sexualidade oprimida (ah, como fomos bobos). Não tínhamos certeza de nada, mas
como dizer para uma garota do interior que você também sentia atração por homens?! Naquele período era impensável.
Fora que poderia achar que você estava com AIDS (a população não distinguia o
vírus da doença). Não bastava sermos afastados do grupo dos homens, agora
éramos também nojentos e contaminantes. Mas
é importante dizer, as pessoas no nosso entorno não fizeram isso, os meios de
comunicação fizeram.
Infelizmente
a TV brasileira é um dos maiores disseminadores de informações mal digeridas e
mal comunicadas. E que terminam por resultar em preconceito ainda mais acentuado.
Sempre dizem estar informando e fazendo o melhor pela comunidade. Entretanto,
têm um forte viés de classe (classe média alta). A melhor ideia que tinham
sobre o assunto é que estes homens específicos deveriam assumir a sua sexualidade. E “assumir” virou uma regra para os
homens e “atingir o orgasmo” virou para as mulheres. Um não poderia ser
plenamente homem e a outra não poderia ser plenamente mulher. Essas eram condições
sine qua non de “saúde”. E aquilo que
nem era assunto até então, aos poucos começou a encher consultórios psiquiátricos
e psicológicos (só para lembrar que não era comum a ninguém estes
profissionais).
Em finais daquela década tive um relacionamento amoroso conturbado com um rapaz da mesma idade. Cheios de medo, pecado e tesão. Foram cinco anos de um relacionamento tóxico, como dizem hoje. Mas ao fim de cinco anos ainda não sabia o que eu era. Pois ficamos fechados em nós mesmos e nos nossos medos e angústias. E como ninguém sabia do relacionamento, ao final poderíamos simplesmente ignorar que tivesse ocorrido e continuar a jornada. Eu poderia ter me casado com uma garota, p.ex.. Apenas quando vim para Campinas, em 1990, fazer a faculdade tive acesso a um mundo muito maior. Fiz História, então todo mundo achava que “estava tudo certo...” - coisa de humanas (ainda assim, não disse para ninguém). Errado, os liberais eram os rapazes da Engenharia Elétrica e da Química, curtiam adoidado nas festas, até tínhamos de botar freio neles. Nunca confundir expressão de liberdade com falta de consciência e nem consciência com excesso de liberdade. Estas coisas não são tão simples como são vendidas pelas TVs.
Eu havia me tornado espírita em
1984, e em 1986 conheci o meu primeiro amor realizável. Antes disso havia me
apaixonado perdidamente por três meninas que não deram a mínima para mim. E a
minha primeira namorada - a relação durou seis meses - era tão machista que me
assustou. Exigia de mim que tomasse todas as iniciativas. Porém eu era - e sou
- um tímido convicto, capaz de violência para que não me toquem. Eu queria...
Entretanto ela queria que eu quisesse, e quisesse por mim e por ela, e que
sendo assim, avançasse todos os sinais. As respostas sensíveis e positivas dela
nunca vieram; desejava um homem que a jogasse na parede e a fizesse mulher. E
eu era apenas um rapaz tímido, religioso, que tocava piano, escrevia poesias,
pintava quadros, e era respeitoso com as mulheres como havia aprendido em casa.
Não deu certo. E não foi porque não a desejasse. Ela era linda, loira e branca
como a neve que eu nunca vi, e fui eu quem a paquerou e pediu em namoro. E fui
eu quem terminou o namoro por não saber lidar com as expectativas dela.
Anos
depois, morando em São José do Rio Preto tive outra namorada, essa sim sabia me
jogar na parede, inteligente bonita, senhora de si, dos seus desejos da sua
sexualidade; e nem falava sobre isso, só me jogava na parede. Hoje é professora
de uma grande universidade estadual. Ela quase me puxou para a complexa vida
que eu almejava e não sabia: professor doutor pesquisador casado com uma
senhora acadêmica e com um monte de petizinhos superdotados. Importante notar
que com meu primeiro namorado foram seis meses de aproximação tímida também,
não foi muito mais fácil porque era um rapaz. Por que não “aconteceu”? Meu
namorado (secreto e tóxico) assustado por ver que eu poderia trocá-lo por ela,
se tornou uma pessoa mais interessante.
Mas no meu caminho havia o Espiritismo
para confundir as coisas, cheio de boa vontade e respostas equivocadas e
preconceitos enraizados a guisa de conhecimento. Ainda parecia melhor que as
outras religiões, porém não era “assim” a melhor coisa do mundo. Por que eu
tenho estes sentimentos? “Ah, você utilizou equivocadamente as suas potências
sexuais em outras encarnações. Foi uma mulher de má vida, até mesmo uma
prostituta. E agora tem de purgar os seus desvios se abstendo de sexo”! Ser
puta na encarnação passada não era a resposta que eu esperava, mas até isso
aceitei. Quem procura punição sempre
encontra um chicote. Eu procurava
explicação e redenção para o que eu era, não encontrei nem acolhimento.
James Dean e Marlon Brando, a sexualidade é fluida |
Eu
estava no mesmo barco que milhões de jovens entre meados dos anos 80 e 90,
procurando explicação para o que éramos. Além das nossas curiosidades sãs, é
importante notar que este era “O” assunto na televisão. Até então éramos considerados
viados, um assunto do qual não se falava, e ponto. E ninguém queria ser o
“viado”. E neste sentido, poucos realmente o eram. Essa busca por compreender a si mesmos só pôde ocorrer porque houve um
boom na sociedade sobre o assunto. Como eu disse, tive um relacionamento de
cinco anos, apaixonado e complexo, com outro jovem; e apesar de não sabermos
nada sobre isso, o relacionamento aconteceu porque nos amávamos. Sabe como é:
dois adolescentes românticos dentro de uma religião complicada. Muita
adrenalina e a “vontade de gritar nosso amor pro mundo inteiro...” Claro só eu
queria isso, o outro era um bundão. No mundo é preciso a coragem de ser, seja o
que você for. Não confundir com a coragem de assumir, é coragem de ser.
Após me livrar do meu primeiro relacionamento.
Tomei coragem - em Campinas, em meados de 1992-, e fui com um amigo para uma “boate
gay”. A menção do nome soava como prostíbulo. Depois de descermos do ônibus,
andarmos um pouco, chegamos a um muro alto com uma porta comum de madeira (tétrico
e assustador). Barrando a entrada um Leão
de Chácara daqueles bem grandes. Deixou meu amigo entrar, me parou e
olhando-me nos olhos, com uma voz ameaçadora, perguntou: “O Senhor sabe onde está
entrando?”
Ninguém
esquece uma coisa destas. Parecia a voz do destino, parecia alguém me mandando
ir embora, parecia o demônio, parecia... blá blá blá; ele fazia a mesma
pergunta para todo novato. Amedrontado acenei um sim. E o pior aconteceu quando
entrei: só havia gente normal. Normal! E
quando digo normal, é normal, muuuito normal. Era mais careta do que uma festa
de família, já que nem tinha o “Tio bêbado”. Essa foi a experiência mais
impactante da minha vida. Sim, porque você sente que está errado e fazendo
coisas pecaminosas. Então imagina que o resto dos seus cumplices sejam
demônios. Dentro de uma casa não muito grande, tipo classe média alta, havia muitos
rapazes e algumas moças. Uma pista de dança na sala, dois banheiros no andar de
cima, lugares para se conversar e timidamente namorarem.
Meu Deus! Que
libertador! Eram apenas pessoas iguaizinhas a mim,
calça jeans e camiseta, calça social e camisa de manga arregaçada, um ou dois
blazers, tênis e sapatos sociais e calças Saint
Tropez, quase amarradas na cintura. E o hit da noite era uma música famosa
do Clube das Mulheres, usada para strip-tease masculino na TV. Isto também era uma novidade do período e avançou
bem aos poucos na cultura, objetificar e explorar o corpo masculino - eu
achava que era juntar a fome com a vontade de comer, mas o corpo masculino era
um tabu e continua um tabu. A boate se chamava Sintonia e o nome deve ter vindo
de algum lugar do Espiritismo, pois ele afirmava que os espíritos afins se
reúnem por sintonia. É importante notar que isso ocorreu em meados de 1992,
Campinas era uma cidade de 800 mil habitantes, e só havia este pequeno
estabelecimento para nos encontrarmos em circunstâncias aceitáveis, não cabiam
200 pessoas no lugar.
Em
pouco tempo ali fui fisgado por novos amigos. Digo fisgado, pois muito
rapidamente alguém se aproximou, perguntou quem eu era, e já foi me
apresentando para uma imensa roda de conhecidos. Parecia que eu havia
encontrado “os meus” que felicidade! Que libertação! Acho que todo mundo sentia
algo assim. Entretanto, na verdade viram
um novato chegando e me puxaram para o grupo dos não-efeminados. Havia
pouquíssimos efeminados, todavia, os que não eram, reconheciam neste
comportamento um perigo para a pessoa que o mantivesse; como é um comportamento
aprendido pela imitação e repetição constantes, simplesmente puxavam para si os
que estavam chegando. Buscando que se mantivessem como mamãe havia ensinado a
ser. Isso não significava perseguir e oprimir os efeminados, tão vítimas quanto
nós.
Eu
sei, eu sei, que coisa preconceituosa de se escrever e dizer, e blá, blá, blá.
Mas experimente ser considerado portador de HIV, numa sociedade em pânico e
sair pelas ruas com gestos efeminados, com uma melancia no pescoço apontando
para sua sexualidade. Era pedir para ser morto. Gostemos ou não 99,00% dos
efeminados realizam um comportamento aprendido, e isso pode ser escolhido. Vi
pouquíssimos casos, mas pouquíssimos mesmo de meninos (crianças) efeminados
desde sempre, mas existem. E naquele momento, os homens que gostavam de homens
mantinham ainda alguns comportamentos atávicos, queriam homens viris e se manter
assim. E não vou fingir, para agradar alguém, que o que ocorria não ocorria. Isso
ocorre ainda hoje. Vamos descobrir que um dos grupos mais recheados de
preconceitos somos nós os gays. E estes são de todos os tipos, desde sociais,
cor, sexo, gênero, preferências na cama, etc. Era assim naquela época e hoje é
pior. Eu sei, eu sei, estou tirando a sujeira de debaixo do tapete. Não é
porque somos gays que somos bons.
Nas
férias do meio do fim de ano eu contei
para minha mãe e minha irmã que era homossexual. Parecia que eu tinha
direito à “cidadania”, pois agora estava devidamente identificado. E identificado eu não faria mal a ninguém,
não enganaria as mulheres e nem os homens, pois que eu não era como eles, eu
era homossexual. Que Glória, saber
quem eu era, e encontrar um lugar para mim. Típico entusiasmo juvenil.
Minha Mãe disse que confiava em mim e mandou tomar cuidado com a AIDS. Claro,
antes disso confirmou se eu “só dava”, para saber se eu realmente era
homossexual. Sabedor de que devia dar a resposta certa, informei que era
“passivo até a morte”, caso contrário sempre haveria a esperança de que eu
mudasse de ideia. Minha irmã, ingenuamente, perguntou se eu iria virar
Travesti, e pude garantir que não era do meu agrado. Foi fácil assim, mas antes
de ocorrer, parecia que eu iria morrer ou ser morto ao revelar para minha
família. Foi muito bom ter o respaldo dos que me amavam, isto evitou que eu
ficasse à vontade para ter uma vida marginal. Sim, deste período em diante o
comportamento marginal passava também por escolha.
Hoje a coisa me parece bem mais sórdida. Na
selva toda (sociedade) os animais vivem livres, mas existe um curral para as
zebras. E eu era zebra. As pessoas até passaram a achar zebra legal, meus
amigos se sentiam bem sendo zebras (ainda que com algum receio da sociedade).
Hoje tudo isso me parece claramente um engano. Não havíamos sonhado com um
gueto, só éramos homens que preferiam os homens - e pode ser que isso fosse
ocasionalmente (não deu tempo de descobrir), pois fomos pegos numa avalanche
social. Agora havíamos aceitado de boa
fé fazer parte de uma nova cultura. Agora não éramos mais viados (pervertidos,
pederastas safados, moralmente doentes), podíamos estufar o peito e dizer que
éramos homossexuais. E, como dizem por aí: “Viado é o filho dos outros, o
meu é homossexual!” Claro que nenhum pai achou que este fosse um motivo de
orgulho. Mas com um pouco d’agua, engoliram.
As pessoas passaram achar Zebra legal, mas incentivam o curral. |
A cultura da qual
faríamos parte, parecia ter estado sempre ali, mas nós mesmos não sabíamos que
ela ainda estava sendo inventada. E isso teve o condão de nos fazer aceitar -
ao longo de décadas - tudo o que nos empurravam como cultura gay. Os pequenos e
grandes empresários trouxeram de fora praticas que não eram nossas. E aqui
tenho de citar novamente a pornografia como tendo tido um papel muito
importante nisso; ela oferecia estéticas, modelos e padrões - e nisso se
parecia com a ciência.
Lembro-me
de uma festa de aniversário que me dei em 1995. Foi numa grande casa, uma
república. Convidei todos os meus novos amigos gays; e os outros não gays, não
vieram, e mesmo que convidados, aos poucos foram ficando de lado e me deixando
de lado também. Pois - parecia claro - que os interesses de uns e de outros
eram contraditórios e diferentes. Mas seriam?! O detalhe é que convidei a minha
Mãe e mais duas mães de amigos. As três tiveram a coragem de aceitar e sentaram-se
no sofá da sala (velha, com um carpete sujo, cheio de buracos). E as “bichas” -
como se nomeavam de brincadeira - em número de vinte se apertavam na cozinha. Mortas
de vergonha das mães ali presentes.
“Vergonha
por quê?!” Ah, você não encarava, naquela época, três mães com naturalidade
sabendo que quando olhavam pra você imaginavam que você “dava o cú”. E aquelas
mães maravilhosas, supermulheres e superlegais que aceitavam seus filhos,
conversavam sobre o que ninguém gostaria de ouvir: “Como era decepcionante, não
era isso que desejavam para seus filhos”. Não havia raiva, apenas um sentimento
de dor e perda legítimos. Ninguém criava filho para isso, né?! E teriam que
confiar que nós não virássemos marginais. Nós também preferíamos não ter ouvido
isso, mas era uma posição honesta. E hoje até se fala sobre o luto dos pais ao
terem a noticia e que deve ser respeitado também. Naquele oba-oba todo alguém
tinha a cabeça no lugar, e eram elas. Nós éramos muito jovens para entender que,
mesmo assumindo, isso significava exclusão. Exclusão dos sonhos afetivos de
toda família.
Daquele
momento em diante muitos se descobriram zebras. E de boa fé procuraram o
curral, e ninguém fez muita questão que não saíssem de casa. E ainda que
dissessem que não, nós deixávamos de pertencer à vida para a qual havíamos sido
criados - e que também, em grande medida era desejada por nós. Qual era o problema? Éramos homens que
preferiam homens, grupo de risco de contágio de HIV. Essa foi a grande razão do
início do apartheid. Retiraram-nos o
direito à convivência constante da família, ao lar, à cidade natal, sugerindo que
devíamos viver “outra vida”. Muitos entenderam que isso seria mais fácil em
cidades maiores, ou em outros lugares. Esse “sai pra lá” silencioso era tão
discreto e forte que era como se nós decidíssemos alegremente cuidar das nossas
vidas. Peço desculpas por às vezes escancarar as palavras, é que não vejo outra
forma de dizer o que precisa ser dito e da forma como precisa ser dito. É
preciso entrar no lugar de quem está no curral das zebras.
Marlon Brando sendo Marlon Brando |
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