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Os homens, afetos e desejo - A história não contada. Contexto e lugar de partida - I

O inferno angustiante do desejo

Hoje quero refletir sobre um assunto do qual eu deveria saber muito, mas confesso que quanto mais aprendo, menos sei e muito menos acredito. E infelizmente não estou sendo modesto e nem socrático. Quero abordar o tema a partir do ponto de vista de alguém que viveu em outra época e que nela tinha medos, necessidades e expectativas e principalmente, tinha um futuro pela frente com o qual sonhava, mas não sabia o que seria deste tempo. Assim que eu disser a palavra, as pessoas irão abandonar a leitura, imaginando que “lá vem mais um falar do mesmo...” Confie em mim e apenas continue lendo, hoje irei falar sobre as necessidades, emoções, expectativas, vitorias e frustrações dos homens que gostam de homens.  Se não usei o termo socialmente aceito é porque de alguma forma ele está carregado de ideias e informações nem sempre corretas ou interessantes. Pode ser que eu o use mais tarde, mas por ora não.

            Acredito que neste texto falo, sobretudo, aos meus contemporâneos, não espero que os mais jovens o compreendam de qualquer forma. Pois lhes falta o principal, a vivência de outro tempo, e ter diante dos olhos outro horizonte cultural. Legume que nasceu na sopa não sabe o que foi ser colhido na roça e nem picado na pia antes de ir pra panela. É deste tempo e deste lugar que irei falar.

            Nasci no final dos anos 60 e minhas esperanças, parte importante da minha formação emocional e social se deram nos 70 e 80. Então quando comecei a sentir desejos eróticos pela primeira vez, em 1979, o mundo era outro. E já esclareço que eu sentia desejo, mas era um desejo sem direção. Sentia tesão (palavra desconhecida e proibida à época), mas não sabia pelo o que. Não fui nada precoce nessa área, tinha doze anos quando as curiosidades começaram a me pegar. E sofri como qualquer garoto da época a impossibilidade de fazer descobertas, pois éramos todos muito sozinhos em nossa criancice (não havia quem nos ensinasse e nem informasse). Falo das expectativas e emoções tidas e havidas a partir de um tempo e de uma localidade, o interior de São Paulo, o interior do Mato Grosso do Sul, a região fronteira destes dois estados. Por que me preocupo tanto com estes detalhes? Sobre desejo não existe uma estória única e nem um único caminho; e nada é padronizado, exceto a época e o lugar a partir dos quais este desejo se manifestou ou quer se manifestar.

            Quando a Aids chegou ao Brasil, em 1982, não me afetou em nada, absolutamente nada. Eu tinha 14 anos e não transava e nem imaginava se iria transar um dia. E geograficamente me encontrava distante demais da doença (era o que parecia). Na verdade eu imaginava! Como é que seria minha Lua de Mel com minha esposa. Eu era bastante correto e romântico. Então só iria me relacionar com minha esposa e seria na noite de núpcias, os dois inocentes e amorosos, provocando um acidente na cama. Nem adianta me lembrarem de que eu já “batia punheta” pensando nos colegas da escola, ou nos fregueses da sorveteria. Sim, você nunca sabe quando o filho do sorveteiro te deseja. Uma sorveteria não é o playground de crianças como atualmente se pensa, é apenas um lugar qualquer cheio de desejos não manifestos.

Os desejos estão por todos os lugares, sorrateiros, quanto mais secretos, maiores. Eu não direi que essas coisas eram confusas em minha cabeça. Afinal eu não havia transado nem com meninos e nem com meninas. A diferença é que muito rapidamente pude ter acesso aos meninos. Eles também queriam matar suas curiosidades, e estranhamente os adultos sempre acham que não tem nada demais colocar meninos dormindo juntos só de cuequinha. Se bem que minha família é tão louca que talvez achassem que era para acontecer isso mesmo e tudo certo. Claro, se eu fosse menina teriam dado mais atenção neste quesito. Mas se convencionou que os meninos tudo podem; e deixam-nos jogados num canto a si mesmos. Não sabem se desejamos ou não o que nos acontece; e quando acontece, também nós não sabíamos se queríamos o que aconteceu. Essa naturalidade foi tão inventada quanto qualquer outra coisa.

Em minha fase adulta descobri que todos, absolutamente todos, os meus amigos foram abusados, assediados e até mesmo estuprados. É um dado absurdo e chocante. Estarrecedor. E todos ficaram e estão em silêncio. É só lembrar que até uns dois anos atrás estupro era um nome dado apenas à violência sexual contra mulheres. E ainda antes disso, era um nome exclusivo para a violação de uma virgem. Os homens que eram forçados a ter suas partes íntimas invadidas tinham sido “currados” ou “seviciados” e a pena de prisão, se houvesse, era de 30 dias. Talvez isto deixe mais claro o porquê do silêncio. Além do constrangimento e humilhação públicos de quem conseguisse falar disso numa delegacia. Se as mulheres não tem um bom atendimento em razão deste crime, ainda se pode dizer que os homens no entorno não fazem piada e nem desmoralizam publicamente a vítima, com um homem isso acontece. Não basta ser violado, ainda é humilhado, constrangido e se já não for um “pervertido” ainda será chamado de viado ou perguntarão se “gostou?”. (Só para lembrar que a sociedade “dá por certo” que um homem preso será violado pelos outros encarcerados)

O silêncio sobre o desejo paira em todas as idades


Não há nada de fofo no mundo dos homens. Exceto, quando você encontra um e ele te protege e você a ele. No mundo dos homens você encontra parceiros, companheiros, até cúmplices. Naquela época ninguém, absolutamente ninguém procurava marido. Não era um desejo, nem uma possibilidade. E até hoje me pergunto se esta é uma relação (conjugal) que funciona entre homens. É preciso lembrar que na época nem divórcio existia. Não o digo por que acho atrasado ou terrível ou qualquer coisa assim. Quem vivia aquele momento não via outra vida no horizonte e lidava com ela como nós lidamos com o que vivemos agora. Não havia grandes opressores, nem os opressores imaginavam que o eram, não havia grandes oprimidos e nem imaginavam que o eram. Só era a realidade. A realidade de uma população classe média baixa ou pobre mesmo. “A vida é assim mesmo” seria a frase mais ouvida por quem reclamasse das coisas.

Havia muita dor escondida, muita coisa sem resolver dentro de cada um e havia dias bons, como havia os ruins. Uma sociedade que “não falava” sobre desejos e emoções e que também não tinha informações sobre como agir ou como lidar com os mesmos. As pessoas eram uma massa de emoções e desejos se realizando, de forma mais ou menos confusa e passional. (Neste quesito não sei dizer se não é melhor apenas a experiência entre humanos - sem intervenção da ciência - para se lidar com as emoções). Um homem adulto transava com outro homem escondido num jardim, no mato, ou depois de uma bebedeira, e no dia seguinte não era assunto. Talvez fizessem isso várias vezes, mas continuaria não sendo assunto. Os homens se casariam com as mulheres e vice-versa. E o fariam por que havia chegado a hora, e todos pressionavam para que as pessoas se casassem. E os homens que gostavam de homens não enganavam suas mulheres neste assunto, apenas não havia o que dizer, pois todos se casavam. E éramos educados para casar e ter filhos. Estavam apenas seguindo o curso natural daquela vida.

Os homens que demoravam para se casar, os “solteirões” geralmente eram assim tidos por terem uma vida “Boêmia” cheia de álcool e mulherada. E nem duvido que assim fosse, imagino que quem tinha outros desejos se esforçava para ter a vida mais conformada ao normal possível e se casasse o quanto antes. Entretanto devem ter existido solteirões que gostavam de homens e estes devem ter sido também “caixeiros viajantes” com a desculpa perfeita para estarem sempre em outras cidades e ninguém saber do que faziam em sua sociedade local. Isto não quer dizer que entre casados e casadas não se falava a boca miúda sobre um ou outro, apenas insinuações maldosas. E a fofoca, símbolo de uma sociedade calada e silenciosa, corria solta. A fofoca era algo tão grave que poderia acabar com a morte do fofoqueiro ou fofoqueira dependendo do tamanho da “difamação”. Mas a surra em público, ah, esta era certa. Bate bocas, então?! Nem se fala. A conversa fiada era o grande controle social sobre as vidas de todos. E você que ora lê, já deve estar pensando “Eu processava todo mundo!” Advogados e processos eram coisas de pessoas muito ricas, e no interior mal se via algum. Inclusive imagino que a vida de um advogado no passado deve ter sido bem complicada, pois afinal, a maior parte das coisas que os sustenta legalmente hoje, nem existia.

O que desejo dizer é que a “vida Louca” dos anos sessenta e setenta não aconteceu nos interiores da forma estereotipada que se vê nas capitais do país, Rio e São Paulo. Nos interiores, pés e mãos se encontravam por baixo das mesas, olhares e sinais gestuais comandavam os prazeres, e todos os prazeres eram escusos. Inclusive com a própria esposa, que não “chuparia seu pinto” por nenhum dinheiro do mundo e até vomitaria se se insistisse no assunto, e ter suas “partes lambidas” seria motivo de asco verdadeiro. E sobre o beijo romântico, eu mesmo ouvi mais de uma vez “Alguém enfiando a língua na sua boca, credo, onde já se viu?! Que nojo!” E olha que falavam isso do beijo francês (coisa de prostituta), imagina se poderiam conceber a existência do beijo grego?! 

Existia um lugar da mulher, geralmente bem assumido por elas, o da decência. A “decência” era uma arma de dois gumes, ou melhor três gumes. O primeiro gume era o da legitimação (o lugar da honradez feminina), isso trazia os homens mais respeitosos e lhes obrigava até mesmo a certa submissão; o segundo gume era o da proteção, a sociedade valorizava e a protegia em situações difíceis - inclusive no caso da violência doméstica, a sua reputação ilibada fazia recair sobre o agressor a sua vilania; o terceiro gume da decência era quando esta se tornava uma arma contra as mulheres que não conseguiram o mesmo status social e contra todos na sociedade que não pareciam revestidos desta virtude vinda dos céus. Sei que hoje pode parecer incrível, inacreditável, mas houve mulheres que acolheram muito bem este papel e fizeram dele motivo para serem lembradas, e até mesmo fizeram da decência sua arma contra o alcoolismo e a violência dos maridos.

Em finais do século XIX surgiram os diversos Movimentos pela Decência, compostos em sua ampla maioria por mulheres. Foi a partir destes movimentos que surgiram outros movimentos femininos como o das Sufragistas, que passaram a exigir o direito de voto e depois os direitos políticos. A decência era a marca da honestidade moral, a arma por excelência. A decência também era masculina, entretanto, a honra era o que os homens vestiam. Bem, discutam à vontade entre vocês sobre o real significado destas coisas, só sei que existiam e tiveram papel na vida das pessoas. Alguns homens eram honrados e a imensa maioria das mulheres eram - por natureza - decentes. Para essa mulher, chupar um pinto era ultrajante, muito abaixo da sua dignidade. Talvez o fizessem, afinal, como homem adulto eu sei que é no apagar das luzes que a vida começa e ocorre.

            É deste lugar e desta sociedade que falo. É preciso notar que não existia “assumir”; assumir o que? Assumir o que não existia?! Não existiam relacionamentos afetivos maritais entre homens, ao menos não nesse Brasil; se existiram foram a exceção da exceção e realizados por pessoas muito fora da sociedade. Os homens, mesmo os que gostavam de homens, seriam pais, seriam maridos, teriam de sustentar sua esposa e sua família. E, sobretudo, seriam julgados em cima deste fato, se proviam ou não a casa. Se fossem homens bons, teriam direito a uma vida afetiva com a esposa e os filhos, os vizinhos e os cães (que ainda não eram importantes). Havia o desejo entre homens, mas não me lembro de haver o desejo de eternizar uma relação ou de que devessem, pudessem ou quisessem, constituir uma família a partir deste fato. Este conceito não existia ou não era nada claro.


O que desejam os homens que desejam homens? O silêncio imposto pela causa social

Ninguém vivia outra vida. Este é o tempo no qual quase não existia solteirões, existiam solteironas (o numero de mulheres sempre foi maior do que os de homens) e havia duas figuras maravilhosas, a viúva e o viúvo. A viuvez era uma maldição e uma libertação. Maldição se você desejasse arrumar um companheiro ou companheira, era bem mais difícil, mas você não teria mais que obedecer todos os cânones sociais. Pois, socialmente, você havia feito o seu papel, e agora era uma pobre alma “enlutada”. Alguns de vocês, não entenderão, mas sinto saudade de todo este silêncio. Faz-me falta o interdito, a realização do desejo e o sossego de um abraço doméstico, a solidez do lar sempre igual. Direi, faz falta ao masculino o elemento do feminino. Mesmo homens que gostam de homens deveriam ter o equilíbrio do feminino ao seu lado. O desejo libidinoso não deveria definir as relações familiares e nem de companheirismo. Você deveria transar com quem quisesse, com quem te quisesse, casamento é outra coisa; a pressão social sobre a sexualidade no casamento só o torna impossível de se sustentar. E ainda que fosse exceção, existiram mulheres que sabiam que seus maridos preferiam os homens, mas que, entretanto eram tão afetuosos e bons pais, que elas preferiram fazer vistas grossas. Afinal, seu entorno era bem pior que isso.

Imagino que tenha gente que já parou de ler a essa altura, ou está me vendo com muito horror. Entretanto, lá em cima eu disse de que lugar eu iria falar e a partir de que tempo e olhando para os horizontes que tínhamos até então. E era absolutamente assim a partir de uma existência cheia de sentido e vivida num lugar perdido e desconhecido do interior. As pequenas vicissitudes dessa vida ficam retratadas no crochê minúsculo realizado pelas senhoras daquela época. Tudo pequeno e vivido, pequeno, observado, caprichado, vigiado e, sobretudo, um monte de pecados sendo confessados nas igrejas. O Catolicismo era a religião da maioria da população e isso também tinha consequências nestes comportamentos. O ser humano vive sua libido em profusão, não importa onde, como e com quem, e nem com o que. Se reconheço que algumas pessoas estão lendo tudo isso com horror, imagina se um jovem muito jovem conseguirá entender - de verdade - o que foi isso, que vida era essa, e da qual - estranhamente - muitos sentem falta.

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