Instigado pelas imagens abaixo, hoje refletirei sobre uma das muitas faces da memória. Imaginava que iria adentrar por este assunto a partir do indivíduo particular, lembranças, escolhas, questões ligadas à sua formação pessoal. Mas, eis que diante dos meus olhos apareceu essa interessante imagem. O Instituto Paulista de Arqueologia, nos informa o seguinte:
Estátua de um guerreiro de Copán com as mãos
amarradas atrás das costas, capturado em Chiapas. Acredita-se ter sido cativo
de Toniná, pouco antes de ser decapitado e queimado. Inscrições hieroglíficas no peito e na tanga,
indicam que foi súdito do senhor K'uy Nic Ajaw, pertencente à casa real do
reino de Copán - Escultura em calcário medindo 1,5 metros de altura, pesando
cerca de 400 quilos - Cultura Maya - Datada entre 695 e 699 d.C. - Período
Clássico Tardio - Encontrada em 2011, no sítio arqueológico da cidade de
Toniná, em Ocosingo (sul do México), que na época, estaria em guerra com Copán
- Atualmente território de Honduras.
O achado, segundo os especialistas, confirma uma aliança firmada pelos impérios
maias de Copán de Honduras e Palenque (México) contra Toniná durante 26 anos
(de 688 a 714 d.C.), pelo controle das águas do Rio Usumacinta
VOCÊ GOSTARIA DE ESCULPIR ALGUÉM?
Os Maias mostrando como se faz. Não
basta capturar, matar, sacrificar e queimar os restos do inimigo, antes disso
você faz uma escultura dele amarrado, aprisionado, sentado no chão e humilhado.
Você eterniza a humilhação do adversário, não deixa ninguém esquecer que ele
foi derrotado. Talvez, ainda mais eficaz do que a estatua do triunfador. E
você, gostaria de esculpir alguém?
A minha afirmação, que foi inspirada duplamente, pela
existência da estatua e pela informação do Instituto Paulista de Arqueologia,
se assenta na importante questão da memória. O que é que fica de um evento ou
de alguém para a posteridade? O que significa essa mensagem? Hoje quero pensar
sobre a memória pública, a memória social, a memória que parece pertencer a
todos nós e nos afeta de diferentes maneiras. Ela nos afeta pelo lugar que
ocupamos na sociedade, por nossa localização física, ou até pela forma como
transitamos, e ainda a outra possibilidade, depende também de onde cavamos
(arqueólogos). E nestes quesitos a obra apresenta diferentes sentidos e
significados. O monumento é para ser visto, admirado, inspirar respeito,
inspirar atitudes e ações; ou relembrar catástrofes e mártires, para que não se
repitam.
Nos anos 90, quando fazia minha faculdade de História,
participei de uma disciplina bem interessante com o saudoso professor Nelson
Brissac. Um dos seus blocos discutia o “lugar” da Arte contemporânea. Aqui o
lugar se referia mesmo à localização física. Discutimos monumentos e estátuas,
os murais ficaram de fora. Vinte e três anos depois volto ao assunto. Desta vez
dando ênfase ao monumento público enquanto memória. Aquilo que deve ser
lembrado, ou o que não pode ser esquecido.
A inspiração para as aulas foi o fato de que as pessoas
nas cidades “não olhavam” mais os monumentos do passado: estátuas de grandes
homens, marcos de grandes eventos, que beneficiaram e ou ocorreram para a
sociedade como um todo. Estes marcos e pessoas eternizadas, servem e serviam
para pontuar momentos importantes e paradigmáticos de uma cidade. Os
homenageados são de todos os tipos, e a sua função social deve ser clara: o que
ele fez para beneficiar a sociedade?! As estátuas, de todos os séculos, em
altos pedestais estavam entregues aos pombos. E isto é verdade, o Davi de
Michelangelo - em Florença - tem pombos na cabeça e é todo cagado, a estátua de
Carlos Gomes, em Campinas, é toda cagada e não bastassem os pombos também é
cagada pelos pichadores, exigindo manutenção constante. É um poleiro muito
caro. Entretanto, não foram erguidos em praças públicas para que os pombos
deles se servissem. Ainda que assim nos pareça.
O monumento público é geralmente financiado e erguido
pelos governos, e sem a autorização dos quais não se instalam em lugares de
circulação popular. Você pode levantar uma estátua para si mesmo, não tem
problema e nem é proibido, mas só pode colocá-la no quintal da sua casa ou no
seu túmulo (enquanto não a roubarem para derreter o bronze). O fato de ser memória e pública é o que
importa. E, no começo dos anos 90 parecia - de alguma forma - que as
pessoas do mundo inteiro perderam um pouco do devido respeito aos seus
monumentos. E naquela ocasião discutíamos qual o lugar que teria a arte
contemporânea “monumental” nas cidades quando ninguém estava mais prestando
atenção.
Nesta discussão é importante chamar atenção para a
estátua de Carlos Drumond de Andrade instalada em 2002, em comemoração ao
centenário do poeta. Localizada na Avenida Atlântica, em frente à Avenida
Rainha Elizabeth, em Copacabana, é inspirada em uma foto de Rogério Reis e foi
confeccionada por Leo Santana. Duas coisas são importantes nessa obra o fato de
que não está num pedestal típico de obras que homenageiam alguém - puseram-na
sentada num banco -, e está localizada na icônica praia de Copacabana. A
primeira coisa importante é que retirar do pedestal alto coloca a obra próxima
ao público, então é mais difícil ignorar a sua existência; melhor que isso, está
localizada numa situação tal que fica na altura do olhar, ou até precisamos
baixar o olhar para vê-la em sua inteireza. Uma completa inversão em relação à
estátua de Carlos Gomes, em Campinas p.ex..
Homenagem a Drumond de Andrade em Copacabana |
Ninguém
sabe quem é o seu escultor - não sem pesquisar -, poucos dos transeuntes leram
ou sabem realmente quem é Drumond de Andrade. Sabem que é um poeta, e que foi
homenageado. Entretanto, hoje afirmo sem a menor sombra de dúvida que a estátua
dele é mais conhecida e importante do que ele foi ou será. Pode ser que ela até
desperte a curiosidade de alguém para conhecer alguns dos seus poemas... ou
não. Mas, selfies, sim! E selfies das mais engraçadas, desrespeitosas,
delicadas, carinhosas, interessantes, criativas possíveis.
E
Drumond?! Solucionamos o problema da visibilidade e atratividade do monumento,
mas e a memória?!
Este
empreendimento foi tão bem sucedido que atualmente a obra é uma espécie de
cartão postal da cidade. Inclusive um dos que custou mais barato para o erário
público. Aos poucos foi sendo imitado em seu formato geral nas mais diversas
cidades do país. Agora temos estátuas sentadas, agachadas, capinando e até
algumas em meio a calçadões, como se tivessem displicentemente caminhando pelas
ruas em meio à multidão. Irá se inaugurar em São Paulo algumas estátuas de
mulheres (mais que louvável) neste formato supostamente atraente.
Eu tenho receio, muito receio, pois que a primeira estátua inaugurada, a de Drumond, trazia em si a novidade e o pioneirismo, quer seja do local e do lugar (banco e copacabana). Não é qualquer calçadão. Também existe a posição física na qual a pessoa foi posta. A estátua de Drumond não nos dá acesso ás suas partes pudicas. Se se puser uma estatua andando em meio a um calçadão, com certeza, vão passar a mão na bunda dela, ou em outros lugares. Além dos pombos cagarem. O que chamo atenção aqui é para um fato importante: monumento não pode ser banal. O de Drumond escapa a essa classificação por ter se tornado icônico, os outros não. E aos poucos se tornarão apenas um objeto atrapalhando o caminho.
A proximidade com o público também permite constantes vandalismos |
Essa
obra é só a expressão de uma das questões ligadas à memória. É memória social,
tem de estar no coletivo, e este mesmo coletivo tem de nela se mirar, se
reconhecer, e desejar alcançar o que ela representa. Um monumento é a
materialização de um modelo exemplar, algo espiritual a ser atingido: a glória,
a fama, a iluminação, a superação, etc. Eu gostaria que houvesse uma caixa de
bronze ao lado da estatua de Drumond, com vários livros seus grátis. Alguns
boiariam nas ondas do mar, mas outros semeariam vidas.
A
estátua e o monumento servem para marcar. Não sei quem começou essa cultura,
mas olhamos para os Sumérios e Egípcios antigos e já as encontramos. Naquela
época eram estátuas do Faraó ou dos Reis Divinos, e, além disso, também
representavam suas conquistas. E elevavam obras imensas para demonstrarem seu
poder e glória, para que a posteridade não os esquecesse. Deu certo, todo mundo
sabe quem é Ramsés II. Tendo em vista essa relação, podemos dizer que fazer a
estátua de alguém a aproxima dos deuses, estes sim receberam as primeiras
homenagens em forma de estátuas (a maior parte é só estátua mesmo). Então,
esculpir alguém é dá-lo à louvação dos homens, como fazem com as deidades,
apenas em menor grau. É representar o poder, o encantamento, a diferença entre
o retratado e aqueles que o louvam. Ele é ao mesmo tempo distante e meta, é um
objetivo a ser alcançado. Um monumento nos lembra que é necessário esforço para
atingir o modelo proposto.
Ainda
que eu já tivesse visto representação de conquistas, guerras, soldados
massacrados, homens feitos prisioneiros e levados como escravos do
conquistador, romano, egípcio ou sumério, esta estátua Maia, me chamou atenção
pela primeira vez, pois ela está sozinha. Nos murais e colunas comemorativas da
antiguidade, geralmente, o vencedor vem posto em glória junto aos derrotados.
As vezes até cortando a cabeça do Rei adversário; entretanto, esta estátua Maia
está sozinha, sem ninguém. Seu conquistador é tão poderoso que sua presença é
espiritual.
Por
isso minha afirmação no Facebook sobre essa estátua Maia. É uma percepção
diferente da nossa - ainda que complementar. Aqui temos a personificação da
derrota. Visualmente todos sabem que é um prisioneiro, está amarrado e
cabisbaixo - ainda que pareça ter alguma dignidade. Temos aqui o nosso Drumond
de Andrade “Maia”, é uma estátua sem um alto pedestal - e provavelmente -
localizada num lugar adequado. Verifiquem como somos obrigados a olhar para o
chão para vislumbrá-la, até mesmo a estátua parece estar submissa a nós. Não é
apenas a representação de uma vitória sobre alguém, mas a encarnação viva da
humilhante derrota. Até a pedra na qual foi esculpida é reduzida à indignidade
do olhar. Ela não tem pedestal, está sentada no chão pela eternidade; seus
olhos estão baixos e a sua cabeça também. Pela eternidade, ou por quanto tempo
durar essa pedra, essa pessoa será lembrada como derrotada. Ao desenterra-la,
os arqueólogos trouxeram à tona novamente a memória esta encarnação da derrota.
A
representação toda é soberba, pois não é como a estátua romana do “Gálata
derrotado”, na qual ele aparece massacrado, aqui está estabelecida a submissão.
As mãos estão atadas, o corpo está sentado no chão, a estátua cabisbaixa, não
servil, mas submetida. Por isso é mais importante do que a estátua de um Rei
poderoso, aqui está a própria representação e manifestação do poder: “não
apenas te derroto e submeto, mas o faço pela eternidade”. “Não apenas extermino
os seus feitos, mas os absorvo e submeto”. Essa estátua Maia é magnifica, pois
social e coletivamente estabelece uma relação inescapável de poder. Aqui o
poder está manifesto de tal forma que ele paira invisível sobre nós.
O triunfador está presente na representação da submissão e derrota e na manutenção da sua memória |
Todo
este desenvolvimento até aqui para podermos dizer que, o monumento aproxima o
representado dos deuses, ao mesmo tempo, estabelece uma memória, e essa mesma
está diretamente relacionada ao poder. Ainda que os “vencidos” de uma sociedade
consigam erguerem monumentos para si, estes jamais devem estar ao rés do chão,
todas as coisas importantes estão além e para cima, em busca das nuvens ou do
céu. Olhamos para cima, pois estamos abaixo daquilo representado e para isso
louvamos ou buscamos. O representado aponta para o sobre humano ou o melhor do
humano, nós que estamos ao rés do chão somos por eles beneficiados e temos
neles exemplos e modelos a serem alcançados ou simplesmente dados à admiração. Ainda
que atualmente - parece - que arte dos monumentos está em crise, diria que está
em crise a criatividade de quem necessita fazê-los. Os sentidos e significados
se mantém.
E
os pombos?! Ora, os pombos... Eles cagam até em quem está andando, quanto mais
em estátuas paradas.
Comentários