Sim, às vezes gosto de adicionar
água à fervura. No século XX, e tão somente nele, a literatura e o cinema
resolveram desdobrar (ampliar ficticiamente) o papel de uma personagem evangélica
que - exceção feita ao momento da Ressurreição -, mal foi citada nos textos,
Maria Madalena. E quando citada o foi igualmente a outras mulheres. Em torno
dos anos 80, quando li com cuidado as referências a ela nos textos canônicos
(Marcos, Mateus, Lucas e João) -, preocupava-me que no cotidiano a tínhamos
como prostituta. Entretanto, eu já observava, nada aparecia ali que pudesse
fazer com que se tirasse essa conclusão. Era um engano ou um engodo.
Anos
se passaram até que veio à público a informação da fusão desta personagem com
outra, a da mulher adultera, por um Papa no século VI (Gregório Magno, em 593).
Ele não o fez por maldade como dizem atualmente, as prostitutas romanas
precisavam de uma santa padroeira, e na falta de uma que tenha tido essa
profissão ele reinterpretou Maria Madalena. Não briguem com o “Greg”, afinal,
ressalvadas as devidas proporções o muito fofo Papa Francisco tem feito coisa
semelhante. Bart Ehrman* informa que num período posterior à época de Cristo, Magdala
se tornou um balneário Romano muito frequentado, e a prostituição passou a ser
importante ali. Talvez por isso a associação entre elas. A prostituição em Roma
era uma profissão séria e que possuía até registro de trabalho. Então, era como
se São José fosse decretado padroeiro dos sapateiros, não havia uma carga moral
muito pesada colocada sobre isso - em termos populares. Só o passar dos séculos,
com o aumento da mortificação da carne no Catolicismo, modificaria essa noção.
No século XX, logo no seu início, o
filme The King of Kings (em 1926) de Cecil B. DeMille, já trazia Maria Madalena
num triângulo amoroso com Judas e Jesus. Não deu muito certo. Nem foi nenhum escândalo,
o filme havia ficado muito longo e o diretor decidiu cortar essas partes. Aos
poucos, ao longo do século, se iniciou uma mutação na percepção sobre Maria
Madalena. Ela começou a ser considerada uma espécie de “companheira” de Cristo,
e assim a vimos em uns três filmes importantes. Posteriormente, no ramo das
pesquisas supostamente idôneas, jornalísticas, ela apareceu como esposa de
Cristo e inclusive mãe de um filho seu. Depois, depois... Foi o Código da Vinci,
livro de Dan Brown, que com um monte de balelas terminou de - no cinema -,
instaurar no gosto popular essa mulher num patamar e lugar que não tivera até
então. Entretanto, no que respeita ao seu desdobramento na literatura ou nos
filmes, é tudo ficção. Ainda que com uma inspiração em fatos (na realidade
quase nenhum farto) é tudo ficção.
Mas, calma, não pare de ler ainda!
Não foi para negar Maria Madalena que te chamei aqui.
Eu como todo mundo, sempre achei um
pouco estranha toda essa movimentação em seu entorno, uma vez que nos textos
evangélicos não havia nenhuma prova suficiente para qualquer especulação. O
nome dela se repete exatamente o mesmo número de vezes de outras mulheres que
acompanharam Jesus, e geralmente no mesmo contexto, temos junto dela: Maria, Mãe
de Thiago menor e José; Salomé; Maria (mãe de Jesus); Suzana (Irmã de Maria);
Joana de Cusa, e Maria irmã de Marta (irmã de Lázaro). Ao se informar que junto
de Jesus, na Galiléia, andavam mulheres que o serviam com seus bens, se diz que
MM se expulsou sete demônios. Somente no contexto da Ressurreição, no Evangelho
de João, é que há uma economia de mulheres que vão ao túmulo de Jesus, e ele
coloca apenas Madalena. MM aparece no episodio da ressurreição nos quatro
Evangelhos.
Este quesito é importante, no
entanto, Marcos é o texto mais antigo, e dele se desdobraram Mateus e Lucas
(ampliaram os textos), eles também tinham outra fonte de eventos que fundiram
em seus textos. Marcos é do início dos anos 70 d.c. e Mateus e Lucas são da
década de 80 - mais para o final e o de João é do fim dos anos 90 d.c. Sendo
que este último é razoavelmente independente dos outros três. Costumam dizer
que é o mais teológico, e eu que é o mais literário - logo o mais fantasioso.
Como sou historiador, fico com Marcos, que é o mais áspero e antigo. As cartas
de Paulo são mais antigas que este texto, entretanto, desconhecem completamente
MM. E, em se tratando de Paulo, deve-se perguntar se ele conheceu alguém de
fato. As outras epístolas dos Evangelhos também não citam nossa amiga.
Como escritor algumas coisas
costumam me chamar atenção, mais do que a outros estudiosos. A mais importante
é que o Evangelho de Marcos, o mais antigo, se encerra no Capítulo 16,
versículo 8. E toda a continuação que segue foi ali colocada posteriormente.
Neste texto ele MM, Maria mãe de Thiago menor e Salomé, como olhando a
crucificação de longe. Em seguida, as coloca indo ao tumulo para cuidar do
corpo de Jesus. Chegando lá - prestem atenção - encontram um jovem que as
informa que Jesus ressuscitou e que elas devem pedir aos outros discípulos para
encontra-lo na Galiléia. Marcos se encerra aqui cap. 16 - 8 e elas vão embora
correndo espantadas. Madalena não tem nenhum papel nessa estória, é igual ao
das outras.
Hoje
eu gostaria de iniciar uma especulação
que me ocorreu. Não direi uma interpretação teológica, mas especulação mesmo.
Afinal, todo o resto acima (desdobramentos sobre MM) não passa de especulação
mal fundamentada. Acho estranho que a sociedade tenha marcado Madalena com dois
típicos arquetípicos do feminino e do sagrado, a Prostituta, e a esposa mãe.
Então, socialmente, parece que não bastava que ela deixasse de ser vista como
uma prostituta, era necessário que ela virasse uma esposa. Depois, parece que
ser esposa era muita especulação, não abandonaram a idéia, mas resolveram
elevá-la à condição de discípula mais importante de Jesus. Isto por que
resolveram socialmente abraçar o evangelho gnóstico de Maria Madalena. Não é um
texto completo, é bem fragmentado, e é atribuído a Madalena. Entretanto, é do
final do século II d.c. se não for de momento posterior. Foi descoberto ( o
trecho maior) em Nag Hamadi, no Egito em 1945; junto de muito outros, inclusive
do importante, este realmente importante Evangelho de Tomé (importante por que
se sabia da sua existência em textos antigos - era citado, mas desconhecido)
É
um texto escrito por gregos, de gente que provavelmente jamais esteve na
Palestina e que muito menos conheceu qualquer um dos personagens centrais ou
periféricos da vida de Jesus. Os Gnósticos se diziam cristãos, entretanto,
Jesus Cristo era mais um personagem do qual faziam o que bem entendiam em seus
textos do que aquele Jesus que havia nascido em Nazaré. O Gnosticismo é uma
filosofia cosmogônica que não tem nada de judaico, muito pelo contrário, o
gnosticismo torna o judaísmo e sua cultura inimigos do seu cristianismo. Tem
óbvias influências do Neoplatonismo de Jamblico e Porfírio, nas suas poucas
partes boas. Em outras palavras, é um Jesus elaborado pela filosofia grega de
segunda categoria. Repleta de misticismo, focada numa excessiva valorização do
espirito em detrimento da matéria.
Não
sou Católico, nem Protestante, mas me desculpem pessoas, depois de ler exatamente
tudo o que sobreviveu do Gnosticismo, fico feliz que tenha sido deixado para
trás. Dalí não vinha nada de bom, só coisas curiosas e esquisitas. Enfim, este
texto que disseram ser de Maria Madalena, só disseram, pois não era. Sem chance
de ter existido qualquer texto de sua autoria conhecido. Entretanto, há um
movimento importante em nossa sociedade de empoderamento feminino que se
desdobra há muitas décadas. Um movimento que visa colocar a mulher no lugar
relevante que possui. Eu acho que isto é uma das coisas mais importantes que
aconteceu e está acontecendo na história da humanidade. E é nessa onda de
elevar as mulheres a outro patamar que MM deve ser compreendida na nossa
sociedade nos últimos anos. Ainda que seja pura ficção (por que não?), acho
relevante o que ocorreu. Mas no que respeita a MM acredito que se deva coloca-la
de forma ainda mais adequada no quesito empoderamento feminino. Se vamos reconhece-la
por qualquer coisa, é preciso procurar fazê-lo pelas razões certas.
Vamos
tentar entender, então, quem e qual a relevância social de Madalena, sem
ficções.
Jesus nasceu numa sociedade
patriarcal, na qual as mulheres possuíam alguma liberdade e também valor
reconhecido. Sim, está razoavelmente equivocada a informação de que as mulheres
eram completamente subjugadas naquela época. Não podemos imaginar que as
mulheres da Palestina eram as mulheres de Atenas (trancadas em casa). Mesmo nos
Evangelhos trombamos com diversas mulheres que buscam Jesus para se curar ou o
encontram ao acaso. Elas estavam na rua e realizando os seus afazeres. As
mulheres possuem razoável liberdade na Antiguidade, em alguns lugares mais, em
outros menos. Ainda que alguns desejem - tendo em vista as regras do Judaísmo vigentes
- fazer afirmações sobre o que ocorria nas relações entre homens e mulheres
naquele período, digo que isso é complicado, pois o judaísmo sinagogal só
começou a se constituir de verdade depois do século I, após a destruição de
Jerusalém. E isso num processo de três séculos pelo menos. Então, um monte de
coisas que se diz que Jesus e as mulheres daquele período viviam, simplesmente
não ocorreu da frma que alguns estudiosos interpretaram equivocadamente.
Concordei anos atrás com a idéia de
que Jesus foi casado, pois parecia correta. Havia a informação de que meninos e
meninas eram dados em casamento (noivos) desde muito cedo. Logo, Jesus teria se
casado obrigatoriamente. Depois descobri que estes contratos não eram
obrigatórios e nem generalizados naquele período, assim se tornaram
posteriormente. Então, Jesus pode ter sido solteiro, inclusive por que sua
pretendente poderia ter morrido (dificilmente). E imagino que o tenha sido,
pois dos vários sacrifícios que ele diz ter feito - ou pedido - para os seus
seguidores fazerem ele jamais disse “deixei minha esposa” ou “minha esposa está
aqui para dar exemplo”. Ainda mais quando - existe um momento - em que sua mãe
e seus irmãos queriam leva-lo pra casa por acharam que estava louco. Nesse
momento ele não tinha nenhuma esposa do ao seu lado, se não ele diria, “minha
familia é esta aqui”. Mas ele diz uma frase de um homem obviamente sozinho no
mundo “Quem são minha mãe e meus irmãos?”. Jesus não foi casado.
Agora o que me chamou atenção a
respeito de Maria Madalena foram algumas coisas relativas à sociedade daquela
época. Primeiramente é citada como uma das mulheres que serviam Jesus com seus
bens e o seguiam. Todas as mulheres que são citadas juntamente dela, são mulheres “velhas”, melhor dizendo
maduras, bem maduras, com filhos homens e mulheres adultos. Enquanto isso,
jovens como as irmãs de Jesus não têm seus nomes citados. Entre as mulheres que
ajudavam pagar as contas de Jesus estavam Joana de Cuza, esposa de “Cuza,
intendente de Herodes, Maria mãe de Thiago e José, e Salomé, provavelmente
esposa de Cleopas.
Entre
todas essas mulheres de meia idade, Maria era a única a sempre ser referida
como de Magdala. Ou seja, ela não tem marido, ou este morreu, não tem filhos,
ou morreram, e não é irmã de ninguém importante. Apenas os homens geralmente
tinham o nome acompanhado do lugar de onde vieram, quando não eram da região. As
mulheres sempre estavam ligadas a um homem e não a um lugar. Exceto se Madalena fosse uma mulher só, e
que tinha se tornado viúva. Como não houve nenhuma guerra importante
naquela região naquele período, se estava em relativa paz, podemos pensar que o
marido dela - se ela teve - morreu em idade mais ou menos madura.
Talvez tenha perdido os pais e os
irmãos, ou tenha sido filha única e os pais morreram. E desta forma ela teve de
cuidar dos negócios da família. Ah, sim, estamos falados de uma mulher de negócios.
Madalena servia a Jesus com seus bens. E ela o seguia. Então, tinha bens o
bastante para ajuda-lo, e deixar alguém trabalhando em seu lugar na cidade.
Talvez escravos ou servos. Para que pudesse - numa cidade de menos de dez mil
habitantes (Magdala) possuir posses suficientes e um papel de algum destaque,
ela deve ter trabalhado por anos a fio. Primeiramente para conseguir riquezas
suficientes e depois foi preciso consolidar sua posição - que é o que garante
que ela pode sair de casa pra passear pela Galiléia, seguindo Jesus.
Ora, Vadico, onde você deseja
chegar? Acho que podemos dizer que Maria Madalena foi uma seguidora de Cristo.
Não foi tão importante quanto as pessoas desejam neste momento, mas foi
fundamental para as pregações na Galiléia. Entretanto,
quero chamar atenção para um dado fundamental. Maria Madalena era uma mulher
razoavelmente poderosa e independente. Então, muito mais do que provavelmente,
ela era bem mais velha que Jesus, tipo uns quinze anos. E ainda que eu não seja
preconceituoso, naquela época o casamento tinha uma finalidade bem clara, gerar
filhos e aumentar a riqueza da família. Ora, Jesus era um “duro” e também
bem mais jovem. Por que digo isso? Por uma questão de hierarquia social,
Madalena é sempre citada com as mulheres mais velhas (inclusive todas com
filhos adultos). Existem outras mulheres mais jovens? Sim, mas não são
nomeadas, não faziam parte das mulheres de relevância, pois as mesmas só
atingem essa relevância com a idade. E com grande esforço.
Onde quero chegar?! Óbvio. Maria
Madalena foi uma mulher muito mais interessante do que pintam hoje. Ela foi uma
mulher do seu tempo e bem real. Ela vivia só, ao menos sem homens
hierarquicamente superiores, tinha que cuidar desde cedo dos negócios. Estes
eram bem bons e lucrativos. E não lhe interessava um consórcio afetivo com
Jesus - mesmo ele não devia pensar nisso.
Também não teve filho com Jesus pois as chances disso ocorrer eram
pequenas. Se houvesse se casado com ele, ou sido sua namorada teria causado um
escândalo tão grande que seria descrito. Como eu sei?! Então, outro profeta
famosíssimo se ligou a uma mulher rica e mais velha. Só não digo quem foi para
vocês ficarem curiosos e não me matarem. Mas ele originou a terceira religião
monoteísta.
Madalena,
não é a bela jovem prostituta, também não é a bela jovem casadoira, amante de
Jesus ou discípula “porra louca gnóstica”. Madalena é uma mulher madura, de
meia idade e contada entre as mulheres maduras e de meia idade. E para
marcar bem este seu papel devo lembrar que Jesus escolheu os seus discípulos
próximos em número de doze e ela não está entre eles - nem nos evangelhos gnósticos. Por isso especulo que Madalena é uma mulher
muito mais interessante para as mulheres de hoje da forma como a vejo do que
como ela vem sendo vendida e empurrada pra todos indiscriminadamente.
A maneira com que Jesus é visto hoje,
não permite que observemos a realidade dele e dos que estavam em seu entorno,
exceto com muita pesquisa. Ele é o líder de uma seita apocalíptica e que queria
virar o mundo judaico de ponta cabeça. É o Reino de Deus, e uma sociedade
igualitária era a promessa, inclusive para os camponeses, proletários e
mulheres. Essa é uma razão importante, um lugar assegurado socialmente na
sociedade vindoura. Um lugar de liberdade, onde homens não arrebatariam os
direitos das mulheres. É por isso que MM está - junto de outras mulheres -
ajudando a financiar a obra de Jesus.
É
evidente que estas não são as únicas motivações delas e nem as dele. Enfim
gosto mais desta Madalena, uma mulher que trabalhou para sustentar o seu
negócio, que o fez crescer, que o consolidou e que fez investimentos políticos
e religiosos em Jesus, e que por isso teve um papel relevante. Ela é de meia
idade, não tem filhos e nem parentes homens adultos. Uma mulher de fato e não
uma ninfeta bonita como as produções cinematográficas e audiovisuais ainda vêm
pintando. Nem precisa de Jesus para se libertar de fato, já estava livre.
Uma
bibliografia pra quem desejar ir além:
Bart
Ehrman. Pedro, Paulo e Maria Madalena. S. Paulo, Ed. Record, 2008.
Jean-Yves
Leloup. O Evangelho de Maria. Míriam de Magdala. Petropolis, Ed. Vozes, 98.
John
Dominic Crossan. Jesus.Uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro, Imago,
1995.
P.S.
Minhas referências vão muito além destes três, entretanto, apesar do
conhecimento envolvido, meu texto é especulativo.
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