Geografia
Por alguma razão estranha Deus me
fez um errante. Desde o dia em que praticamente não nasci até o presente,
andar, mudar de cidades, mudar dentro da mesma cidade, tem sido o que tenho
feito. Não desejo imitar um historiador e falar todas as coisas desde o
princípio. Sei como se faz isso, mas o tempo no interior de cada um de nós não
me parece linear. Então direi das coisas e dos lugares conforme me aparecem.
Vou buscar o sentido de cada um deles e sua lembrança de acordo com o que
fizeram por mim.
Em 1979, em torno de três horas da
tarde, havia um céu extremamente azul... nuvens brancas e ao mesmo tempo
pesadas, parecendo blocos de pedra passeavam pelo infinito.
Eu não tinha doze anos ainda, e meu olhar se perdia esquecendo-se da
terra... buscando refúgio entre as nuvens. Não havia quase vento apenas uma
brisa que de tão leve assim mal poderia ser chamada... Eu morava numa região
próxima à estrada de ferro, antiga FEPASA. É este céu magnificente de Três Lagoas,
que acabava de ficar localizada no estado do Mato Grosso do Sul, recém-criado
naquele ano, que me acompanha todas as vezes em que olho para cima em busca de
algo maior do que eu mesmo. Em busca de paz, que é maior do que eu... de
silêncio, de segurança, de Deus...
Naquele tempo eu tinha doces amigos.
Éramos todos descoberta. Todos os dias no caminho para a escola nos
encontrávamos e nos contávamos coisas... Vivia num mundo cheinho de novidades.
Novidades e pessoas que participavam de diversos lugares e classes sociais diferentes,
e éramos maravilhosamente todos iguais. A escola era o “Bom Jesus”, colégio que
havia sido religioso, era chamado de “o Patronato”. Estudávamos de manhã. Quando
chegávamos, antes de alcançar a escola passávamos pelo cinema na esquina.
Depois que adentrávamos os muros, ao fundo ficava a casa do bispo, Dom Geraldo
Magela. Lembro-me de tê-lo conhecido, ele rezava a missa para nós nas
sextas-feiras de manhã na capela da escola.
As nossas novidades eram coisas
pequenas e doces para meus ouvidos hoje. Quem iria jogar futebol, quais as
figurinhas do Futebolcards que
tínhamos para trocar, os gibis da Mônica e do Cebolinha, os do Tio
Patinhas. Nossos uniformes, camisas
brancas e shorts de tergal azul, meias brancas esticadas até os joelhos e
seguras com ligas – nome bonito para o elástico de dinheiro que púnhamos nessa
função – traziam um bolso com o símbolo do colégio e nele, invariavelmente a
caderneta, onde eram carimbadas as nossas presenças e faltas. No caminho
combinávamos as artes da tarde, ou o filme da matinê no domingo, iríamos ver
“Hércules contra Maciste”, “Tarzan”, ou qualquer outra coisa que tivesse muita
pancada. Todos choramos quando nos levaram para ver “Marcelino, pão e vinho”.
E, claro o inesquecível “Midway”, uma batalha da Segunda Guerra Mundial, o
Cinema vibrava com as explosões...
No caminho de ida pra escola eu
encontrava com o meu melhor amigo, Paulo Sérgio, sempre magro, moreno,
sorridente e feliz, mulato dos cabelos lisos, olhos grandes e alma aberta.
Continuávamos o caminho por dois quarteirões e pegávamos o Vinicius,
magrelinho, olhos vivos, lábios vermelhos, cabelos castanhos e encaracolados,
branco como eu, falante, muito falante. Na mesma esquina, invariavelmente
encontrávamos João Carlos, mais alto que a gente por muito pouco, encorpado,
louro de olhos azuis, bonachão já naquela ínfima idade, parecia sempre estar
com a boca cheia de saliva, era só contar alguma coisa e se via a espuma do
guspe nos lábios. Ás vezes ele vinha com o Marco Antônio, o menorzinho de nós,
as meias sempre arriadas, sorriso imenso, queimado de sol, cabelos castanhos
também marcados pelo sol, olhos verdes e imensos. Na escola víamos o Cláudio,
gordinho e loirinho, de olhos espertos, bochechas rosadas, filho do português,
as vezes o chamavam de “o portuga”. Ainda havia o Tiago, muito mirradinho,
cabelos muito encaracolados e que não viam tesoura fazia tempo, olhos pretos e
espertos, dentes um pouco pra fora, falava demais e estávamos sempre
despistando o moleque.
O último a ser lembrado entre os
amigos próximos é o Marcelo, cabelos pretos e lisos, cortados redondo com uma
tentativa de riga para dividi-los ao meio, pele queimada de sol. Provavelmente
de nós era o mais rico, mas isso não fazia muita diferença. Ele era o contador
de vantagem. Tudo o que fazíamos ele já havia feito e melhor. Sempre assim.
Havia também o Antônio, magro, de cabelos grossos e duros, sobrancelhas unidas,
olhos grandes, sempre calado e quieto. Houve, por pouco tempo, o Juscelino,
loiro bem loiro, pele branca e bochechas muito rosadas. Eu quase fiquei amigo
dele. Cheguei a sair com ele fora do horário das aulas. Saída de criança.
Aquelas voltas que se dá em alguns quarteirões, de bicicleta, à pé... ou
visitávamos a lagoa. Meus outros amigos não gostaram nada. Alertaram-me que ele
era esquisito. Falavam que ele era “mulherzinha”. Sim, ele era efeminado, mas
não do tipo que fica tímido e aceitando o que os outros dizem dele e fazem com
ele. Ele se virava, arranjava forças de algum lugar e ignorava as pessoas.
Vivia num mundo todo particular e cercado de mistérios. Mentia de manhã, a
tarde e a noite. Dizia ser filho de
ciganos, aqueles que roubavam criancinhas. Nunca acreditei em loiros que se
dizem filhos de ciganos. Todos sabemos que os do Brasil são morenos. Desisti da companhia dele, não pelo mesmo motivo
de meus amigos, mas por que ele mentia.
De todas as meninas que havia na nossa
sala me lembro de Sandra e Nádia. Sandra era morena, magrela, cabelos
repartidos ao meio, lisos, pretos, e falante, tinha algo de árabe, mas não o
nariz. Nádia era uma espécie de loura/ruiva, olhos claros, bochechas rosadas.
Elas viviam aquela fase de meninas que odeiam meninos e nós aquela em que
odiávamos meninas. Eu gostava da Sandra, no entanto, as duas conseguiam ser
extremamente irritantes, sempre tinham segredos que não podiam nos contar,
claro, depois de anunciá-los. Para guardar estes segredos preciosos elas
falavam a famigerada “língua do pê”. Acho que elas sabiam o efeito odiável que
nos provocavam. Juntava-se às duas Ana Maria, também morena, com jeito de
síria, cabelos lisos, pele branca, e que conseguia ser mais irritante do que as
outras duas juntas.
Foi naquele ano, cheio de céu e
nuvens, que descobri a biblioteca municipal. O encantamento foi tão grande que
faltei três dias inteiros da escola para me dedicar às minhas descobertas.
Ficava horas vendo livros dos quais lembro-me das imagens impactantes até os
dias de hoje. Livros ilustrados, Grandes Personagens da História Universal, Grandes
Personagens da História do Brasil, Asterix e Cleópatra, dicionários, livros de
física, antropologia, aquela dedicada à pré-história. Nas minhas retinas
ficaram para sempre coladas “O rapto das Sabinas” e “A Morte de Marat” os
Napoleões, todos de Louis Davi. Descobri as estátuas, a sua beleza eterna,
mergulhei nos detalhes da Fontana di Trevi, e da Fontana dos Quatro Rios...
Demorava-me nos corpos imensos das esculturas, as cochas bem torneadas, os
torsos nus... Os olhares e expressões fixados num momento único, dominava-me a
impressionante beleza do “Moisés” de Michelangelo, e eu queria gostar da “Pietá”,
mas no fundo achava-a insossa. Foi fascinante ler a biografia de Michelangelo,
mais ou menos um ano depois. Saber o que era um mármore de Carrara, a
dificuldade em se cortá-lo e transportá-lo pedreira abaixo. Saber da admiração
de Michelangelo por Vitória Colona, amor nunca realizado... Com tão pouca idade
eu já conseguia distinguir o anjo pintado por Leonardo da Vinci no “Baptismo de
Jesus Cristo” de Ghirlandaio, o mestre de Leonardo, e saber a diferença que o
fizera notável, o brilho dos cabelos.
Não sei por que eu desejava fugir da escola. Mas me lembro que a emoção
de fazer algo errado era maravilhosa. Eu ficava ali na biblioteca, quietinho,
como se fosse um estudante pesquisando. Congelado de medo e ao mesmo tempo
maravilhado com tudo aquilo, eu sentia que poderia ficar ali o resto do ano... Enfim,
estes dias frutificaram em
mim. Durante muito tempo achei que queria estudar história,
mas hoje eu sei que o que eu gostava mesmo era das figuras.
Numa tarde, os mesmos amigos que eu adorava vieram me visitar. Assustei-me
ao vê-los, afinal jamais havia merecido uma visita de todos ao mesmo tempo. Reunidos
na frente de casa, com suas bicicletas, olhando para mim de forma reprovadora...
vieram ver minha mãe. Chamaram-na, e na minha frente disseram que vieram me
visitar, pois diziam que eu estava doente, já que não ia pra escola. Bem, nem
preciso dizer o que aconteceu. O engraçado é que foi um plano do Paulo Sérgio,
todos sabiam que eu estava bem e saudável. Se é que dá pra se chamar de bem e
saudável um menino que foge pra biblioteca. No dia seguinte a diretora do “Bom
Jesus”, a Dona Cleides, a qual temíamos mais do que a Deus, me interrogava com
ares de quem poderia me matar a qualquer momento. Eu que não era bobo nem nada
cai no choro, fiz uma representação – se é que foi realmente uma representação,
pois estava apavorado – em que dava como causa da minha irresponsabilidade as
brigas entre meus pais... Me saí dessa como um garotinho traumatizado. Bem, não
sei se realmente não era... Mas tenho certeza de que qualquer um teria uma
idéia dessas se também tivesse ficado à espera de ser atendido por ela, naquele
dia uns dois ou três moleques me precederam, e eu ouvia as broncas e o choro
deles enquanto ela lhes puxava as orelhas, e não é metaforicamente que falo.
Não era um fato incomum, lembro-me que a professora Dagmar, de História,
doutrinou o Gilson, um coleguinha de classe, à reguadas.
Em algum momento daquele ano, onde
os laços com Juscelino eram frouxos, e as dúvidas iniciais dos caminhos
masculinos começavam a pairar estranhamente em minha cabeça, aconteceu algo que
até hoje está nítido em minha memória. Se me lembro bem estávamos todos na
sétima série. “O bom Jesus” era uma escola muito acolhedora. Os professores
realmente pareciam complemento de nossa família. Mesmo assim, algumas coisas
estranhas aconteciam. Lembro-me que o Paulo Sérgio arrumou emprego na cantina
de Seu Sabino, um homem magro, careca, moreno, e de rosto vermelho, com cerca
de cinqüenta anos e solteiro. Tinha a afabilidade de um açougueiro. Mas, vendia
um delicioso pastelão recheado de salsicha, essas coisas estranhas que crianças
adoram. A cantina da escola vivia lotada. No recreio quase nos matávamos para
comprar pastelões e outras coisas politicamente incorretas.
Pouco antes de dar o sinal a cantina
fechava. E os meninos ficavam lá dentro um bom tempo. Depois, o Paulo Sérgio me
contou que o dono os mandava tirar toda a roupa e os revistava um por um. Para
mim aquilo era assustador, e meu amigo também parecia constrangido... Não sei
se foi a forma como ele contou... mas parecia que a revista era íntima
demais... pois, o que o incomodava não era a suspeita de que todos roubassem,
mas a forma como a revista era feita. Bem, eu nunca soube detalhes. Mas, como
disse antes, era uma época onde estranhas sensações e decisões pairavam sobre
nossas cabeças de meninos. Nossos corpos ainda não nos davam sustos, mas já
falávamos coisas estranhas que ninguém entendia bem o que era, e trocávamos
risinhos maliciosos: bater punheta, meter... falávamos como conhecedores sem
nunca termos feito, ou se quer sabíamos do que realmente se tratava, e o vazio
de nosso conhecimento era preenchido por risadas fantasiosas e extasiadas...
O “Bom Jesus” tinha uma
característica marcante para uma escola, na sua parte interna ele era em
formato de “U”, criando um grande pátio, cercado por corredores espaçosos.
Exatamente no meio do pátio ficava a quadra de esportes. Um pouco abandonada,
de cimento áspero e pouco convidativo. Ali era onde fazíamos alguns de nossos
exercícios. Sob o comando do professor “Perú”, tinha este apelido por que era
louro e ficava muito vermelho ao sol. Em volta da quadra não havia piso
cimentado, era terra, áspera e poeirenta.
Numa tarde, onde o pátio estava
estranhamente lotado, e esperávamos para fazer Educação física, aconteceu uma
daquelas coisas típicas de meninos. Marcelo, aquele que era sempre o “Bão”, por
alguma razão qualquer, passou a mão na bunda do “Filho do Perú”, um moleque
loiro e vermelho da Oitava série, muito maior do que qualquer um de nós, e que
só me lembro do apelido. Bravo com a brincadeira ele saiu correndo atrás dele.
Subitamente, a molecada percebendo o que acontecia começou a gritar “pega!”
“Pega!” Entre gritos, urros e vaias, Marcelo corria, corria, pelo sol quente da
tarde, entrava num corredor, desviava-se dos outros moleques, corria em volta
do pátio, e o “filho do Perú” sempre quase alcançando. Ás vezes chegava a
colocar as mãos nele, mas Marcelo escapulia. O sol, aos poucos descia
vermelho... e subitamente, próximo a mim, “O Filho do Perú” empurra-o e Marcelo
cai de bruços no chão. A poeira se levanta, formando ondas lentas pelo ar,
refletindo o vermelho do sol daquela tarde calourenta. O outro se joga por
cima, prende o seu pescoço com uma das mãos e sentado sobre as suas costas,
enfia com violência a outra mão por dentro do short dele, metendo o dedo no cú
até onde pôde. Eu via a cara de Marcelo, susto, humilhação, dor, desespero. “O
filho do Perú” levantou-se, levou o dedo ao nariz e depois colocou no rosto de
Marcelo e disse: Cheira!!! Saiu até bosta! Então saiu com ar triunfante
enquanto a molecada dispersava, a maior parte olhando pra Marcelo que se
levantava, suado, cheio de terra, recoberto por uma humilhação inesquecível e
dolorosa.
Habita-me aquela estranha violência
até os dias de hoje. Talvez por ser cênica demais. Houve certa beleza na forma
como a poeira subiu, na maneira como o sol estava vermelho, na dominação
sofrida por Marcelo, no doloroso suor escorrendo por seu rosto. É dessa beleza
típica da tragédia que falo, nos comove, nos emociona. Todos que ficaram ali,
olhando a defenestração de Marcelo, foram um pouco defenestrados com ele.
Alguns com ar pasmo como eu mesmo estava, outros rindo, outros fazendo o “deixa
disso”. Mas, para todos nós que estávamos tentando saber o que era essa coisa
nova e estranha que estava nos habitando, hormônios, desejos, descobrir seu
lugar no mundo, “O Filho do Perú” deu bem o recado. O mundo dos homens era
assustador. Se você não tem força será submetido, então não desafie o mais
forte. Se não tem força e nem coragem, fique por ali apenas olhando, sendo
prudente... Depois, nós os amigos do Marcelo, passamos por ele, dando tapinhas
na suas costas como que para consolá-lo do inconsolável. Ele passou pela
inspetora de alunos e foi embora trocar de roupa. Não sei se ele chorou ao sair
dali, não sei, mas deve ter chorado. Deve ter caminhado cheio de raiva e dor
até sua casa, e não deve ter contado tudo para seus pais, pois nada aconteceu
com ninguém. Tarde estranha aquela. Não sei se marcou mais alguém entre meus
amigos, a única coisa que houve depois daquilo foi o silêncio. Era humilhante
demais até para ser comentado.
É engraçado como me lembro
perfeitamente de todos, e sinto que seja em função deste fato. O rosto de cada
um, o medo, o susto, a insegurança... a identificação com Marcelo. E a pergunta
que estava na cara dos meninos mais novos: E se fosse eu? A era da inocência
chegava ao fim. Não poderíamos mais sorrir gratuitamente, brincar de forma
inconseqüente... Estávamos virando homens... e isso foi uma grande perda para a
nossa humanidade.
Comentários