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Carta dos 18 anos

Toda sociedade possui marcos e ritos de passagem para a vida adulta. Há tribos que submetem seus rapazes a picadas de abelhas, há outras que os submetem a provas físicas e morais, e outras onde estas provas de passagem desapareceram. Numa coisa todas concordam: chega um momento da vida de um ser humano onde aqueles que o precederam na jornada terrena, devem passar a considerá-lo como um igual. Não importa o quanto alguns resistam, a realidade é inevitável.

Bem vindo à igualdade. De hoje em diante você é igual em direitos e deveres a todos os homens e mulheres. Agora podem lhe chamar de "senhor" se assim o desejarem e se você não dispensar o tratamento cerimonioso. Agora você é igual a um velho de oitenta anos, igual a um de cinquenta, igual a um de trinta, igual a um de vinte. Bem...nem tão igual assim...

Nossa sociedade escolheu há muito tempo que chegado à idade de 18 anos você seria considerado um homem, um homem adulto. E, daqui para adiante você será livre para cuidar de si se assim desejar. Pode ser imputado criminalmente, não pode mais deixar de votar, nem deixar de pagar as suas contas...mas, pode também, e principalmente, ser livre para fazer suas próprias escolhas...e, claro, ser responsável por elas.

Quantos sonhamos que aos dezoito anos poderíamos fazer de nossa vida o que bem entendêssemos? Sonhamos, alguns realizaram, outros não. O certo é que você está próximo do primeiro passo da grande queda livre que é a liberdade.

Tenho uma crença engraçada. Acredito que Deus tenha embutido em todos nós um para-quedas. Cada pessoa tem um de acordo com sua capacidade. Mas Deus, este grande comediante, também quis divertir-se um pouco. Fez com que os para-quedas pudessem mudar de tamanho, para menor ou maior, conforme fôssemos descuidados na queda, e em alguns casos ele seria substituído por pedras...

Muitos de nós sonhamos com este dia: o dia da grande queda-livre. Sonhamos com o momento no qual pudéssemos deixar de receber ordens dos adultos. Poucos adultos se lembram de como foi difícil manterem-se sob o guante dos pais e parentes, anos a fio. Poucos se lembram que tiveram que submeter sonhos e vontades aos desejos de outros. Poucos se lembram que ao serem surrados pelos pais, ou ao serem "suavemente" educados, desejaram crescer e dar o troco, ou, quando tiveram juízo o bastante, dar a retribuição.

A liberdade tem dessas coisas...o humor de Deus é refinadíssimo e, quando menos esperamos vem alguma ironia do destino. A maior ironia é que além de estarmos nesta queda livre que é a liberdade, ainda temos que conquistar a consideração e respeito de todos, sem os quais poderemos não nos sentir verdadeiramente livres. Se fracassarmos nisso...ainda estaremos livres, mas inevitavelmente esbarrando pelos paredões e rochedos, sendo arranhados pelos galhos que brotam da beira do abismo...infindáveis sofrimentos para quem não pode deixar de cair.

Importante é que não se esqueça que neste vôo para o infinito você não está sozinho. Existem aqueles que têm medo de altura, e aqueles que estão cheios de raiva, e aqueles outros que estão embriagados com a liberdade e desejam mesmo cair mais depressa, apenas para sentirem a adrenalina pulsando forte dentro de si...Vigia-os em sua queda, eles podem se agarrar a você e puxá-lo ainda mais rápido para baixo. Isto se você mesmo, carregado de rancores, não se agarrar a eles espontaneamente.

Contrariamente ao cotidiano, no que tange a liberdade, amigos que o respeitem e consideram não o agarram...eles também possuem suas próprias preocupações e só dão um "alozinho" enquanto passam...algumas vezes vocês estão equiparados na velocidade....aí...aí é bom manter longas conversas sobre a técnica de cair mais devagar.

Enquanto escrevo ouço o barulho de alguns corpos chegando lá embaixo e esborrachando-se...é triste, mas os que fizeram esta escolha são praticamente a maioria...vejo outros que pousam suavemente... e que de lá olham para cima e aguardam seus queridos que ainda descem, depois eles iniciam outra jornada.

O grande consolo em tudo isso é que você nunca estará sozinho. Sempre haverão os amigos e os que o amam, indo todos em direção parecida. Se desejar ouvi-los e souber julgá-los ou simplesmente amá-los, sei que sua jornada terá um bom termo.

Aí encontramos um novo percalço: julgar. Uma das faculdades humanas mais complexas, tanto quanto a liberdade. Posso te dizer, seguramente, que ao acordar de manhã e ao sair à rua você encontrará um homem estulto, um ladrão, andando mais um pouco um viciado, um desonesto, um oniricida, e que todos poderão cometer erros contra você. Nesta ocasião basta perguntar-se quais são os objetivos deles e quais são os seus e perceberá que eles agem em conformidade com suas naturezas. Haja você segundo a sua e os deixe com o que necessitem, no entanto, nunca se omita quando a injustiça chegar próxima a você, pois uma omissão, pode fazer que em algum momento ela o atinja.

Assim como a "velocidade da queda" seja perspicaz ao julgar e, nunca, jamais dê o último veredicto. O primeiro julgamento nos protege dos insanos, a abertura em relação à última palavra, quase sempre surpreende-nos com uma nova amizade. Então, não tenha pressa em julgar. E, não se preocupe com aqueles que o julgam depressa demais...eles já têm mais velocidade...

Diante de tudo isso só posso dizer que a importância da liberdade está encerrada em si mesma. É essencial ser livre, é fundamental saber ser livre e é urgente incentivar a liberdade. Quantos mais souberem vivenciar melhor este estado de espírito mais depressa a nossa própria liberdade se realizará.

Hoje desejo felicitá-lo pelo seu aniversário, pois sei que você já era, há muito tempo, um aprendiz da liberdade, e que agora, nada mais fará do que um belo aperfeiçoamento. Esta carta não é um sermão, mas sim seu "primeiro manual de queda-livre" , e, se arrisco-me a ser considerado desagradável num primeiro instante é porque vejo em você alguém capaz de realizar em si mesmo toda a grandeza da palavra homem, no sentido que ela tem de melhor.

Hoje fez dezoito anos e a sociedade disse que está pronto para ter responsabilidades, direitos e liberdade...e eu...eu lhe digo que a sociedade, agora, apenas sanciona a grandeza que desde já emana de você.

Tudo o que escrevi pode parecer pessimista. Alguém que percebe o homem como um ser destinado à queda...até o fim...alguém que pensa que a única satisfação meritória é a de não esborrachar-se lá embaixo... Mas, tenho ainda uma outra crença particular sobre o peculiar humor de Deus... Essa longa queda nada mais é do que um teste. Um teste para saber se poderemos usar asas.

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