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Agrigentum



É fome o que eu tenho. Olho em volta e tudo está seco. As árvores morreram aos poucos... até o mato está seco, nada nos resta para comer. Primeiro abatemos as cabras e bodes, os porcos se foram muito antes disso tudo, enfim, chegou a vez das vacas, todas foram sacrificadas, uma por uma, aos deuses e à fome. Deixamos apenas uma para dar leite para as crianças. Aos poucos também as crianças foram morrendo, agora restam algumas. Não há muita reflexão na fome e nem na sede. A água é pouca e escassa, pode ser que logo não tenhamos nem este pouco. Enfim, chegamos ao desespero. Sei que algumas pessoas estão comendo os cadáveres, mas ainda não cheguei a isso. Deve haver um pouco de dignidade na morte, mesmo que esta seja de fome e sede.

Na décima Legião, parecia uma boa idéia quando fomos enfim desmobilizados. “Vocês se fixarão em um nova colônia” nos informou o centurião Vitrúrius. Após tantos anos de serviço no exército de Roma, chegara o momento onde nós poderíamos ter descanso e viver em paz. Nada mais justo do que recebermos um pequeno quinhão das terras conquistadas. Júlio Cesar começou com as doações, os outros continuaram. Muitas colônias bem sucedidas. Aqui e acolá elas espocaram, fermentando o que nós chamamos de Mundo Romano. Nem só de sucesso viveram as colônias. A de Cartago passou por vários revezes antes de se firmar. As da Espanha foram de vento em popa, as da Gália também progrediram bastante, graças ao próprio povo gaulês que não se intimidou diante de nossa cultura e civilização, foi logo se apropriando e absorvendo-nos a nós que os absorvemos.

Para oriente estava a nossa última fronteira. E lá as coisas não foram nada fáceis. Não são nada fáceis. Mas aqui, tudo era para dar certo. Era... Mas agora olho para o futuro e não vejo solução para a sede e fome que nos abatem.

Colônia ou não, ao chegarmos levantamos a paliçada, é tudo o que nós soldados sabemos fazer, traçamos o decumano no solo, consagramos a terra, dividimos os lotes, cavamos em torno de nossas improvisadas muralhas um fosso, e levantamos as estacas defensivas, estabelecemos torres de vigia. Aos poucos, improvisamos três templos, um para Jupiter, outro para Juno e outro para Minerva. Templos muito simples, por enquanto de madeira, nenhum de nossos deuses principais poderão queixar-se de não terem sido honrados. Mas, não sabíamos que ainda tínhamos inimigos tão poderosos por aqui. Eles não se rebelam contra Roma, mas nos sitiam e nos perseguem quanto podem, tornando a nossa vida um verdadeiro tormento. Minam as nossas energias, pequenos ataques cotidianos...eles aguardam nas sombras, conhecem o território, têm o tempo ao seu favor. Conhecem os recursos, as estações, o momento do plantio e da colheita e nos negam qualquer favor.

Não conhecemos a língua, e nem eles a nossa. A única fala que compreendem é a da espada. Posso compreendê-los, mas não quero. Meu sonho, nosso sonho, precisa ser realizado. Encontrar sentido para tudo o que fizemos ao longo de tantos anos. Será crime um homem sonhar em construir sua casa num pequeno pedaço de terra e vê-lo verdejar com o suor do seu trabalho? Não, não é, disto eu sei. Então por que os deuses nos desampararam? Queria saber que ritual realizar nesta hora, para fazê-los atenderem nossas preces, mas todos foram tentados. Agora não podemos nem usar as galinhas para saber o agouro de nossas pequenas batalhas, pois as comemos. Mas isto não deve ser nefasto, pois não tínhamos mais nada. Em vão nosso augure tenta ver o futuro no vôo dos pássaros, mas até estes parecem estar cada vez mais distantes daqui, pois quando vemos um abatemos e comemos.

Tudo o que consigo fazer nesta hora é recordar. E cada recordação é cheia de dor. Podíamos ter ficado em Roma e viver a expensas do estado, com a distribuição de trigo. Mas acho que isso é mendicância, não importa o quanto as pessoas acham isso tradicional. É miséria. E se posso trabalhar fujo dela.

Quando Tibério nos dispersou, nem esposa tínhamos. Eu e Farsênsio, grande companheiro de lutas, decidimos que precisávamos de esposas para começarmos a nossa nova vida. Mas a idade, e os poucos recursos nos limitavam muito as escolhas. Assim que pegamos as placas de propriedade fomos ao Suburra. A casa que sempre frequentávamos em nossas folgas tinha mulheres que não se importavam tanto com o nosso estado lastimável de guerreiros velhos... Foi assim que eu me casei com Carlina e Farsênsio com Rosabuta. Era uma tarde calourenta, abafada. E, Silena, a dona do prostíbulo, havia já nos arranjado as mulheres que desejavam deixar aquela vida e que ainda podiam ter filhos. Carlina era magra, e lhe faltava carnes... Seus cabelos eram negros, e seus olhos grandes e vivos, o rosto ovalado, a pele ainda macia, e não importava muito que as rugas frequentassem seu rosto, afinal o meu também tem suas marcas. Farsênsio teve melhor sorte, pois Rosabuta vinha da Germânia, era morena, um tipo raro entre os germanos, olhos verdes e cheia de carne. Mas, isso também não podia importar, pois combinamos, tirando a sorte, que ele ficaria com a primeira que fosse apresentada por Silena, e, claro, a primeira, sempre é a melhor.

Não importava muito a beleza ou feiúra delas. Afinal, poderíamos dar pouco, e uma parte substancial de nosso soldo ficou para a dona do lugar. Importante é que pudessem ter filhos e tivessem força para trabalhar na terra, pois por muito tempo não poderíamos ter escravos. Além do mais, numa terra estranha ninguém tem passado, só futuro. E o nosso, acreditávamos, seria alvissareiro. Carlina e Rosabuta também sonhavam com um outro destino, mas sei que os deuses não gostam de que tentemos enganar o nosso caminho. Mas qual é o nosso destino? Como sabermos se não tentarmos? Os oráculos para os pobres são mais pobres do que nós mesmos... Então, melhor tentar a sorte, sacrificar para deusa Fortuna, e tentar...

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