Pular para o conteúdo principal

Sobre mercados e supermercados!


Alguns dias atrás vivi um típico momento da pós-modernidade. Um daqueles instantes que nos fazem sentir toda a dimensão de nossa própria idiotice. O fato ocorreu no caixa de um supermercado. Uma senhora da classe média paulistana empacotava os seus produtos numa grande sacola de tecido, onde estava escrito algumas baboseiras e a palavra “reciclável”. Por ter economizado diversas sacolas plásticas – fornecidas pelo supermercado – ela ganhou “pontos” que significam um desconto pífio nas próximas compras. Assim que ela saiu triunfante, falei educadamente para a moça do caixa: “Agora pode me dar todas as sacolas que ela economizou e mais algumas...” sorri, ela sorriu, mas fez cara de quem não entendeu. A pessoa que estava atrás de mim fez cara feia, pois entendeu e deve ter me achado um cínico. Então, vamos lá, explicarei ao leitor a mesma coisa que eu disse para o caixa e as pessoas da fila.
Quando eu era garoto, lá pelo início dos anos 70, numa pequena cidade do interior de São Paulo, o leiteiro passava numa carroça em frente de casa, bem cedo pela manhã. E eu, às vezes junto de minha irmã, saía ao seu chamado com uma garrafa de vidro de um litro, enchíamos de leite fresco e pagávamos o carroceiro. O mesmo acontecia com o pão, fornecido também por uma carroça, isso quando minha mãe mesma não o fazia.
Aos domingos, meu pai nos permitia uma espécie de dádiva, nós poderíamos ir buscar na pequena fábrica de tubaína, exatamente duas unidades da bebida. Era a glória, sentir aquele cheirinho de rolha úmida misturada a açúcar. Sentíamo-nos importantes, e depois da macarronada tomaríamos o nosso refresco, que deveria sobrar para o jantar.
Ás quintas-feiras minha mãe fazia a feira, e levava na mão uma grande sexta feita de bambu, às vezes uma sacola feita de tela de plástico. Ah, o carrinho de feira foi algo que demorou para aparecer...era uma grande novidade... mas, cara. Na famosa “compra do mês” meu pai ia sozinho ao supermercado, às vezes ao armazém, e voltava com um grande saco branco, chamado de saco de “estopa”, mas que “estopa” não era, voltava lotado. Eu e minha irmã podíamos nos divertir ajudando minha mãe a esvaziá-lo. Então, para a nossa surpresa – não que não soubéssemos – ganhávamos exatamente dois danones sabor morango. Ninguém chamava iogurte de iogurte, era Danone mesmo. O saco de “estopa” virava “pano-de-chão” e guardanapos de cozinha.
Os restos de alimentos colocávamos todos numa grande lata, eternamente suja e mal cheirosa, a “lavagem”, uma vez por semana o “lavageiro” passava e levava a suculenta mistura para alimentar os porcos. Estes porcos e alguns outros animais, as vezes voltavam, também de carroça, numa espécie de açougue improvisado durante a semana.
Brinquedos, nós ganhávamos de presente apenas em dois dias do ano: aniversário e natal. O dia das Crianças demorou muito até conseguir se fixar. Para, além disso, não tínhamos outras vontades. Brincávamos o dia inteiro na rua, após irmos pra escola e fazermos nossas tarefas, assistíamos uma hora de TV por dia, pois não havia programação de desenhos animados superior a este horário.
A noite, depois da novela das oito, que era as oito, saíamos todos para fora, onde os adultos ficavam conversando no portão e nós brincávamos de roda e de todas aquelas coisas de criança que hoje chamam de “folclore”. Alguns adultos brincavam conosco também. A grande diferença social entre o menino mais rico e o mais pobre é que havia o “dono da bola”, e nós tínhamos um grande poder contra ele, se fizesse muito “doce” brincava sozinho.
Com o passar dos anos tudo isso mudou. Nem preciso dizer muito. Criaram um mar de refrigerantes, engarrafados, cujos cascos precisavam ser devolvidos. Depois, fizeram as latinhas, depois as garrafas pets. O preço caiu e caiu e caiu. As pessoas passaram a tomar muito refrigerante... O leite, foi para o saquinho, depois virou leite “B”, depois leite “A”, e finalmente leite “C”, anos tomando aquela porcaria... Então colocaram tudo em caixinhas, claro os preços subiam a cada nova mudança. Nos supermercados surgiram os empacotadores, e os pacotes, de início de papel, depois, sacolinhas plásticas... e, claro, essa comodidade nos custou mais caro.
Rapidamente, nos explicaram que a carne deveria ser comprada num açougue, mas isso durou apenas alguns anos, pois logo disseram que os açougues eram sujos e que deveríamos comprar nos supermercados. Então, a carne ganhou bandejas plásticas, ainda possuem balcão frigorífico para atender nossas necessidades, mas fazem isso bem devagar para que peguemos a carne que está a disposição e não a que realmente queremos. O universo “Danone” cresceu tanto que descobrimos que o nome é iogurte, e agora os temos de todos os tipos e tamanhos, ficou acessível, mas ainda assim... é apenas mais lixo...
Criaram uma infinidade de brinquedos novos, e depois os brinquedos a pilha, e mais tarde os eletrônicos... E, datas e mais datas onde as crianças ganham mais e mais brinquedos. Aos poucos o Capitalismo e os capitalistas iam nos encantando com as facilidades do mundo moderno. Engraçado é que nenhum deles fazia pesquisa de mercado ou nos consultava para saber se gostávamos ou não das mudanças. Não, não gostávamos, aqueles que têm boa memória se lembram que havia resistências. No entanto, os produtos antigos sumiam, e apenas os mais caros ficavam. Pagávamos o preço.
Muito tempo se passou até que as “facilidades” da vida moderna ficaram realmente acessíveis a todos os bolsos. Claro, com diferenças, os pobres conseguem comprar um monte de roupa barata hoje, mas a qualidade, tsc tsc tsc, o tecido vira lixo num instante. E nem os ricos escapam dessa lógica terrível.
Bem, justamente agora, que eu posso consumir, que você pode consumir, nos vêm com essa estória de que o excesso de consumo irá destruir o mundo. Que o lixo está transbordando por todos os lados. Que devemos levar sacolas para os supermercados... que refrigerante engorda, etc, etc, etc. Depois de praticamente dementarem as nossas crianças com uma extensa programação idiotizante de TV e as bombardearem o tempo todo com noticias sobre violência e mais violência, dizem que precisamos fazer uma “auto-crítica” social, a começar pela sacolinha plástica do supermercado...
Muito bem, aqui vai minha auto-crítica: não pedi para que ocorresse nenhuma mudança, resisti quase contra todas elas...amoleci com os anos, e agora gostei. Não vou parar de consumir. Não irei reciclar nada. Não cooperarei! Para mim, ninguém deve cooperar. Jamais precisaram de nós para fazer nenhuma mudança, quando realmente quiserem mudar alguma coisa eles mudarão. Mas, não me venham dizer que eu tenho que fazer sacrifícios voluntariamente e agüentar essa porcaria de “ideologia” politicamente correta para fazer a minha parte. Eu e minha família, meus amigos e quiçá, meus inimigos, já pagamos por tudo isso. Pagamos caro ao longo dos anos. Escolheram por nós. Enfiaram produtos e mais produtos em quem nada pediu. Pois bem, criaram necessidades inexistentes... que agora as satisfaçam, ou as retirem do mercado.
Se eu não estou preocupado com as crianças do futuro? Não, eu não tenho filhos. Você tem? Bem, eu tenho uma péssima notícia pra você: os ricos continuarão consumindo tudo o que puderem, enquanto a classe média e os pobres caem nessa balela de fim do planeta terra. Cá para nós, quando quiserem salvar o planeta eles salvarão, nunca nos pediram opinião, agora querem cooperação... Tem dia que a gente se sente otário mesmo, não é?!

Comentários

Geraldo disse…
Lembrei muito da minha infância lendo esta crônica. Adorava as brincadeiras "folclóricas" e temo por meu filho ver isto apenas em livros e documentários do mês de agosto (Mês do folclore). Concordo que pagamos um alto preço na história e sempre nos pedem mais. Quer preço maior do que ficar 10 a 12 horas/dia sentado na frente de um computador durante 11 meses no ano para alimentar alguns felizardos acionistas que estão esquiando ou jogando polo as minhas custas. Sacolinha de supermercado é "fichinha" quando vemos o quanto já pagamos durante uma vida toda de escravidão capitalista. Parabéns pela visão "picante" do cotidiano e pela expressão sincera de seus pensamentos. Abraços do "gafanhoto" Geraldo

Postagens mais visitadas deste blog

Os homens, afetos e desejo - A história não contada. Contexto e lugar de partida - I

O inferno angustiante do desejo Hoje quero refletir sobre um assunto do qual eu deveria saber muito, mas confesso que quanto mais aprendo, menos sei e muito menos acredito. E infelizmente não estou sendo modesto e nem socrático. Quero abordar o tema a partir do ponto de vista de alguém que viveu em outra época e que nela tinha medos, necessidades e expectativas e principalmente, tinha um futuro pela frente com o qual sonhava, mas não sabia o que seria deste tempo. Assim que eu disser a palavra, as pessoas irão abandonar a leitura, imaginando que “lá vem mais um falar do mesmo...” Confie em mim e apenas continue lendo, hoje irei falar sobre as necessidades, emoções, expectativas, vitorias e frustrações dos homens que gostam de homens.   Se não usei o termo socialmente aceito é porque de alguma forma ele está carregado de ideias e informações nem sempre corretas ou interessantes. Pode ser que eu o use mais tarde, mas por ora não.             Acredito que neste texto falo, sobretudo,

Deus - I O Devorador

  Deus me seduzindo            Esse não é um texto para relembrar o passado, mas uma tentativa de descrever o que não pode ser descrito.  Vou meter-me a falar do que não sei. Talvez seja exatamente assim, conhecemos muito e desconhecemos muito mais aquilo que realmente é importante. É como mãe, amamos muito mas às vezes nos damos conta do quão pouco a conhecemos. Entretanto, Deus, como o conheço, foi definido magistralmente pelo poeta indiano Rabindranath Tagore: “Sou um poeta e meu Deus só pode ser um Deus de poetas”. Então, só quem vive profundamente o ser poeta consegue traduzir em si o que isto significa.             Por aproximação tentarei dizer um pouco sobre isso. Uma definição destas não aparece em nosso coração na infância ou na puberdade, surge apenas quando ocorre um amadurecimento íntimo, que não tem idade para ocorrer. Podemos ter uma epifania em algum momento, mas ela só se consolida ao longo do tempo através de outros momentos assim. É como um “dejavu” não tem importâ

Deus III - A sustentação essencial. O que é real? O que é realidade?

  Não dá para ilustrar este texto de forma adequada                 Há muito tempo atrás se alguém discutisse a realidade concreta das coisas e do cotidiano eu mandaria a pessoa “catar coquinhos”. Entretanto as experiências existenciais nos ensinam se permitimos. O tempo passou e tive vários aprendizados que considero importantes. Eles ajudaram a definir minha relação com o mundo e as pessoas. Nestas experiências, e vivências, passei a lidar com um real que é tênue. Perigosamente tênue. O risco de lidar com uma compreensão expandida do real e da realidade é perder o vínculo que torna as coisas entre nós inteligíveis e aceitáveis. Entretanto, não há nenhum caminho, místico ou não, que não passe pela discussão daquilo que nos parece óbvio, e obviamente verdadeiro, irretocável e irrevogável. Então, hoje vou refletir sobre a realidade física e social, vamos desmaterializá-la para só então, falarmos de imaginação. Mas usaremos a imaginação o tempo todo como método para essa discussão.  

Deus II - A dança: Som e fúria

O sagrado pode se manifestar no cotidiano              De todas as coisas sensórias que me envolveram desde sempre o som é uma das mais fascinantes. Trago grudado ao espírito o canto da pomba “fogo apagou” envolto pelo silêncio da fazenda, ambientando a solitude do jovenzinho que sentava-se na improvisada jardineira da avó e olhava longamente para o campo. De um lado o pasto a perder de vista e de outro o cafezal assentado no morro. De um pouco mais distante vinha o som do vento assoprando forte nos eucaliptos, só quem ouviu esta melodia que rasteja pelos ouvidos e dá profunda paz sabe como é a música e o perfume que juntos vem e quando junto deles estamos ainda toma nossa pele a sombra fresca do “calipial”.             Trago no espírito meu pai assoviando. Era um tempo onde os homens assoviavam, e fazer disso uma arte também era parte do seu quinhão. Só com o tempo eu saberia que o som nos afeta fisicamente antes de nos afetar o espírito. O som toca o nosso ouvido, toca fisicament

Os homens, a história não contada. A pornografia e as transformações sociais da AIDS - II

  (Continuo aqui o texto anterior. Passaremos incialmente pelos anos setenta, a televisão e suas influências e chegaremos aos poucos até os anos 90 e as profundas transformações sociais e sexuais que ocorreram na sociedade). Começavam os anos 70 e éramos apenas amigos! Uma das coisas que me passavam pela cabeça quando era menino (05/07 anos) é que eu deveria ter nascido mulher. Mas isso ocorria não porque eu desejasse os homens, mas porque eu era, desde aquela época, bastante caseiro e não queria sair de casa e nem ver pessoas. Depois aprendi a ler e tudo o que eu queria era mais silêncio e menos pessoas. Depois veio a música e aí eu queria ainda mais silêncio e nenhuma pessoa. Mas para um homem essas coisas não eram possíveis. Homens deveriam ficar o dia todo fora de casa trabalhando e fazendo coisas que não gostavam, pois era necessário para sustentar a casa. Então, o Luizinho queria ter nascido mulher para ser “sustentado” e ficar em casa. E eu não achava a vida doméstica tão terrív