Pular para o conteúdo principal

MULHERES

I

As ruas não incomodavam muito Aparecida. Caminhava pela cidade como quem afronta o destino. Nas mãos as sacolas de compras, promoções de supermercado e dinheiro curto eram “verbos” que ela sabia conjugar muito bem. Quarenta e poucos anos... existem idades que jamais deveriam ser ultrapassadas... os olhos viçosos da mocidade apagavam-se lentamente e sabia das dores que aquela cabeça morena grisalhava. Ossuda, magra, como uma necessidade nordestina de viver, caminhava desafiando a saia justa... balançando a blusa de malha. Falseava às vezes o pé com um sapato de salto alto, mas que não tinha em si nenhuma graça especial. De longe avistou uma senhora sendo assaltada. Estacou. Não sabia se tinha medo se não tinha, as pernas tremiam ligeiramente... engoliu em seco.... num instante as mãos suavam. Escutava as ameaças do assaltante e as lamúrias queixosas da velha.
Não sabia como agir. Aos poucos uma estranha força a envolveu e gritou:
- Socorro! Polícia! Alguém ajude! Socorro! Ladrão! Ladrão! - A voz saía como um urro surdo de sua garganta rouca, um grito desumano incendiando a cidade com sua revolta.
O garoto que empunhava a arma mirou e atirou.
Sentiu-se tontear o chão faltava a seus pés, era apenas a adrenalina , por três vezes ele errara. No chão a velha jazia ensangüentada, ele não perdoou sua tentativa de fuga.

II

Aparecida, sentada no chão apertava a miserável criatura contra o peito. Afagava os cabelos dela e chorava sobre seu rosto,
- ...Minha filha... avisa...minha filha... - agonizava. Os transeuntes curiosos acotovelavam-se a sua volta, tapando a pouca luz do sol, deixando aquele instante mais escuro...o corpo alquebrado, os cabelos anelados e grisalhos, o peito massacrado pelo tiro, o xale ensangüentado... um último suspiro...
Culpa, muita culpa, era o que sentia Aparecida...Beijava o rosto da desconhecida e a chorava com o pranto mais verdadeiro, com a dor de quem foi bala naquele revólver... de quem foi bala...
- Minha boa vó... vó...- soluçava - Vó... - chorava copiosamente.... e enquanto a polícia não vinha, os populares tentavam-na dissuadir de embalar aquele corpo... corpo...andrajo do espírito. Só conseguia murmurar baixinho uma cantiga, entrecortada...por uma voz adocicada e carinhosa:
- Dorme vó... dorme... vózinha querida... dorme...

III

Agora os passos de Aparecida eram trêmulos, carregava o que sobrara das compras, as roupas ensangüentadas... às vezes parava e chorava convulsivamente... “ tão injusto”... A noite caía ligeira. Apesar da distância de sua casa decidira-se a fazer o percurso à pé. Queria ver nos rostos das pessoas a cumplicidade com o crime, queria fitar cada um nos olhos e mostrar a sua flâmula vermelha...ainda era a culpa...
Os ônibus no horário do ruch passavam lotados.. comprimiam-se as pessoas, a seus olhos aqueles transportes assemelhavam-se a grandes ataúdes coletivos... A curta frase entrecortada da mulher calava-lhe fundo na alma...” minha filha” ...” avisa”... em seu último instante aqueles cabelos anelados e grisalhos ainda não se pertenciam. Aparecida de olhos embaçados ficava imaginando a cena familiar: a filha com os netos , genros...televisão e vida doméstica... Agora pensava tão somente em sua filha, em chegar até em casa e abraçá-la, como se estivesse habitada pelo espírito daquela estranha mulher que perecera... queria estreitar sua filha nos braços e esquecer-se neste abraço, como quem perdera-se de si e precisasse desesperadamente reencontrar-se. “ Cecília, minha filha... não fui eu que morri...”

IV

D. Cândida batia um bolo. As mãos magras e fortes não denunciavam sua verdadeira idade. A cozinha suja e desorganizada testemunhava o extenuante trabalho doméstico. Fornecia marmitas para uma construção próxima. Ajudava a filha a manter a casa, recusava-se a tornar-se uma velha inútil. O lábio amargo, as suas amplas rugas espalhadas pelo rosto, contavam em cada dobra o sofrimento. Não lamentava o falecido, na sua opinião já fora tarde. Ele fizera a totalidade de seus cabelos embranquecerem... fizera suas parcas esperanças de felicidade definharem...Nenhum homem prestava. Nenhum. Até o marido da filha que parecia ser tão bom moço a havia abandonado por uma qualquer...não sabia o nome da outra, não interessava. A penúria típica do abandono a preocupava mais.
A neta ouvia música no quarto. “ Tão mal educada...” “ Aparecida é boa demais prá essa menina...” resmungava Cândida.
A massa convertia-se em bolo em suas mãos.
“ E a Cida que não chega?! “
O longo avental encharcava-se na pia... ariava as panelas...limpava ferozmente o chão com o rôdo.. preparava o dia seguinte... enquanto isso a novela fazia as cenas de abajour na televisão ligada, no fundo Cândida não prestava atenção, só tinha “ pouca vergonha” . Mentia prá si mesma, pois emocionava-se no final de cada novela... era comum segurar um lencinho para secar as lágrimas nos momentos mais felizes... de tristeza não chorava.

V

Cecília. Cecília de Cecília Meirelles. Feita num sonho encantado de Aparecida que embebera-se de poesia num curso normal. “ Meu amado quando virás enfim..” Veio e foi embora. Ela era assim... um sonho que se transformara em pesadelo. Daqueles que se acorda assustado e molhado de suor...Saíra mais à avó do que a mãe. Mãos fortes e grandes...talvez não devesse ter se dedicado tanto aos exercícios físicos...Baixinha e troncuda...Abandonara os estudos no final do segundo grau. Pensar demais a aborrecia. Ler Safo...” coisa de sandalhinha” respondeu um dia quando perguntada. Cecília Meirelles...” ilusão de mocinhas que esperam marido...” Hilda Hilst...não entendia, mas gostava.
O quarto. O quarto rescendia um cheiro estranho...algumas calcinhas sujas jogadas num canto. Os coturnos desamarrados e afogados por meias usadas, espalhavam-se sobre o tapete poeirento. Queria não entender a implicância da avó que recusava-se a limpar esta parte da casa.
Tirara o CD de Marina e colocara o de Ângela Rorô: “ amor meu grande amor... não chegue na hora marcada...”
As revistas Playboy desarrumadas num canto do quarto... folheava a última edição: “ Higiene Masculina” - limpar adequadamente o prepúcio evita infecções vaginais nas mulheres...



VI


A luz vazava pela janela semi-aberta do quarto. Sombras horizontais projetavam-se nas paredes vizinhas, escapando entre as madeiras da veneziana, uma luz que se deleitava pela pele da jovem. Suspirava baixinho...não queria ser percebida. Deliciava-se em olhar ‘Tília. A fumaça do cigarro saía pela janela ao seu encontro, era o forte cheiro da outra que embebia-lhe as narinas e a excitava. Tarsila era toda silêncio. Delicada e branca, magra e suave, olhos grandes, espantados e castanhos. Cabelos longos e encaracolados.
Entre uma página e outra da revista, Cecília, de soslaio a olhava e divertia-se fingindo não vê-la... tentava não sorrir para manter o prazer voyeur da amiga. Assim ficavam muitas vezes as duas...o silêncio e o propositado alheamento...DE longe Tarsila afagava os negros e curtos cabelos de ‘Tília e deliciava-se com o carinho imaginário.
Os olhos se encontram. Calmos e...soberanos. Uma penetrando a outra através da densidade do olhar. O corpo de Tarsila entregando-se lânguido aos cílios de ´Tilia...como se fossem uma língua quente, carinhosa e meiga. Um sorriso dividido pelos lábios das duas...o rubro das bocas a confundir-se com o sangue correndo quente pelas veias. Um único coração batendo em dois corpos, num ritmo denso e suave...
As mãos úmidas de Tarsíla tocando-se numa pré-carícia...

VII

- Sangue?! Minha filha, que aconteceu? Sua roupa está toda suja!
Aparecida, trêmula e cansada depositou as compras sobre a pia e sentou-se antes de explicar para a mãe o que havia ocorrido.
- Cecília?! - perguntou, já ajeitando as compras nos armários...a caixa de ovos escapa-lhe das mãos antes que Cândida respondesse.
- Aquela inútil? No quarto!
- Mãe!! Não fale desse jeito!
Mergulhava os dedos nos ovos quebrados. Cascas, claras e gemas misturavam-se pela pia, e um ruído peculiar rompia a plácida disposição do lixo. Aparecida corria a mão pelo resultado amarelo do acidente... limpando... e ao mesmo tempo... sentindo a viscosidade... o cheiro... em segundos enojou-se.
- Não sei porque essa cara! Ela é uma inútil mesmo! Não me ajuda a fazer nada...fica o dia inteiro naquele quarto que parece mais um chiqueiro!
- Mãe, a gente já falou sobre isso um monte de vezes, a ‘Tilia está desempregada...tá difícil prá ela...
- Conversa mole! Está desempregada mas não está aleijada! Pode muito bem me ajudar! - esbravejava Cândida, com justa indignação.
A torneira aberta escorria os últimos restos de ovos pela pia...

VII

Aparecida não entendia esses longos corredores das casas antigas. Longo e escuro, o corredor estendia-se sórdido até o quarto de Cecília. Ela caminhava quase tateando pelas paredes. Pensativa. A mulher moribunda em seus braços..."tanta perda inútil. Ama-se, ama-se profundamente e num instante...apenas lembrança...depois, nem isso." Parou.
Por um momento recordou o grande amor, Ernesto. Ele encarnou Cecília. Não adiantava a amargura da mãe a lembrar-lhe das desonestidades dos homens. Chorava ainda por ele, escondida. Quisera entender...não entendeu. O abandono dói. "É como perder os dois braços...e aí...aí mendiga-se com a boca" refletia "Pega-se tudo com a boca...o bom e o ruim...o limpo e o sujo...tem-se pernas, mas é inútil andar, pois não há braços para abraçar...se alguém toma seu corpo...se satisfaz sozinho..." A filha. Ela era o amor possível, não o melhor amor...apenas o possível.
Estacou silenciosa no corredor...arranhava levemente com as unhas a parede caiada...desejava sentir alguma coisa que não fosse seus desorganizados pensamentos. Ouviu ruídos no quarto de Cecília. Sons abafados e...estranhos..."respiração?!"... Havia desejo e, parecia, volúpia no ar. Podia adivinhar o calor de frases desconexas de amor...mas, "não, não pode ser..." pensou, sem aceitar o que sabia. O coração batendo forte, as veias do pescoço saltadas, a face sangüinea alterada. As pernas ganharam força. Os passos ficaram firmes. E o corredor foi encurtando...encurtando... Ela era novamente a mulher que tentou impedir o assalto. Não importava que fora bala naquele revólver...que fora bala.
Parou diante da porta. Uma fresta, da porta entreaberta, deixava escapar uma nesga de luz que caía em Aparecida, um último carinho...não percebido, não digerido. Ela olha pela fresta. Vê. Tomada pela visão, intensa dor a invade. Recosta-se à parede e sente as lágrimas quentes brotarem dos olhos. Abraça-se com os braços que não possuía. Agarra-se firmemente para garantir-se que ainda existia, que seu corpo era real...que o que via era real...Deixa-se escorregar lentamente pela parede até agachar-se no chão. Gane baixinho...gemendo de dor e angústia.

VIII

Cecília nua, passeava carinhosamente a língua pela pequena vulva de Tarsila. A delicadeza do cheiro...do sabor...da mulher que era só sua. Pára. Um ruído. Um gemido. Era choro.
- Mãe?! - gritou espantada e estarrecida. Caminhou rapidamente até a porta e abriu-a num ímpeto. Seus olhos caíram sobre Aparecida, desfeita ao pé da parede.
- Mãe?! - não quis acreditar no que via. O coração completamente descompassado... Os olhos vermelhos de Aparecida fitando-a desesperados, vermelhos e decepcionados. A mulher era apenas dor. Súbito calor enfurecido toma o corpo de Cecília.
- Você não tinha esse direito!! - gritou, avançando para a mãe. Levanta-a do chão e a chacoalha pelos ombros. Aparecida inerte, chorava. Tarsila, assustada, cobria sua nudez, improvisando tapumes com as roupas sujas encontradas no chão.
- Eu te odeio!! - berrou Cecília - Você não podia! Você não podia!
As mãos fortes comprimindo os ombros de Aparecida que soluçava aos chacoalhões.
- Pára de chorar! Pára de chorar! Você está sempre sofrendo! Pára! Pelo amor de Deus pára!
Aparecida...perdida em algum lugar de si mesma chorava convulsivamente. Sente as mãos fortes e calosas de Cecília envolverem seu pescoço. Elas apertam. Apertam. A voz distante da filha ficava repetindo: "Pára de chorar! Pára de chorar! Pára!" Ela sente a forte dor no pescoço, o sufocamento...sente a língua saindo para fora em busca de...socorro. Não há último suspiro. De repente...num instante de duração infinita, Aparecida sentiu seu corpo afrouxando, relaxando...a imagem transtornada de desespero da filha embaçando...sumindo... e uma voz distante e inaúdível..."pára de chorar mãe..."
Cecília, aterrada, sente o peso do corpo da mãe adensar-se sob suas mãos...a face arroxeada, a língua para fora... os braços estendidos ao longo do corpo...Suas mãos afrouxam e soltam-na. Aparecida cai. Não é mais Aparecida... é apenas um corpo...um corpo que não tivera braços para reagir. Não alongara-se num último esforço, deixara que a dor a levasse embora.
Cecília, de mãos trêmulas, coração disparado, tinha seu olhar dividido entre o cadáver da mãe e a assustada Tarsila que encolhia-se chorando a um canto do quarto...
- Si-sila - gaguejava - c-calma...está tudo bem...
"Aparecida?" - ouve-se a voz da avó vindo do fundo do corredor, seguido do grito lancinante: "Aparecida!!!" D. Cândida corre até o corpo. Atira-se sobre ele abraçando-o. Tentava levantar a filha. Sacode-a, vendo a cabeça balançar inerte para os lados. "Minha filha" murmura...uma pequena lágrima de dor escorre-lhe tímida.
Cecília parada e catatônica.
D. Cândida, mãe raivosa, tomada de uma energia sem igual avança sobre ela de mãos em riste. Como uma leoa vingando o seu filhote, a mulher tinha a face enrugada num esgar, os dentes ligeiramente à mostra.
- Minha filha! - gritava numa voz rouca de ódio - Você matou minha filha!!!
Cecília tenta segurá-la, quase inutilmente. Cândida era tomada de uma força indizível. As duas lutam até que...até que as mãos da neta chegam-lhe ao pescoço. Aí, com muito mais força e velocidade do que fizera com a mãe, ela esgana a avó, e...chega até mesmo a sentir prazer ao vê-la ajoelhada aos seus pés, enquanto as suas últimas forças a abandonam. As hercúleas mãos soltam o pescoço de Cândida, que tomba pesada sobre o corpo de Aparecida...um estranho e terrível abraço...sem sentido...
Tarsila grita, grita, grita, distorcendo sua voz meiga e doce, num urro fino e metálico. Enchera-se de dor e pânico... a sua Cecília...matara.
Tília volta-se para ela...mostrando as mãos...Tarsila continua gritando aterrada...sentindo-se sufocar, no entanto, ela apenas mostrava-lhe as mãos...ao mesmo tempo olhava-as sem compreender...sem acreditar no que fizera... sem acreditar... Os cadáveres empilhavam-se...as lágrimas de dor brotaram-lhe violentamente dos olhos e abraçou-se na maior solidão que um ser humano houvera sentido. Uma dor que sufocava e aturdia.
Tarsila...chorando...parou de gritar...Com menos pânico olhava para a outra. A forte Cecília parecia agora apenas uma criança frágil e assustada. Frágil, pequena e sozinha no mundo...sem ninguém. Vendo-a sentiu seu coração agigantar-se, uma nova força tomava-a, não sabia de onde vinha. Levanta-se e caminha até a amada. Cecília desmanchada em lágrimas olha-a com dor e desespero, como a criança que pede desculpas diante de um erro muito grande cometido e prontamente castigado. Tarsila envolve-a num abraço forte e carinhoso...e nina-a:
- Shss...shss...vai passar...pronto...acalme-se...logo vai passar...
Deseja acarinhá-la e acolhe-la...senta-se e puxa-a meigamente para seu colo materno...amava-a... amava-a... guardava-a em seu peito, como se fosse o segredo mais íntimo que lhe fôra contado pelo próprio Deus...nem lhe importava saber que estava sentada sobre os cadáveres. Seus olhos ora caíam sobre Cecília, ora perdiam-se pelo corredor longo e escuro...Sentia um estranho poder enquanto seus dedos perdiam-se pelos curtos cabelos de Tília...um estranho poder...como se dos cadáveres sobrevivesse uma maternidade que a invadiu e dominou. Embalava sua criança...e, nada mais parecia estranho...nascia-lhe a perfeita consciência de serem mulheres, vivas e mortas. Mulheres.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os homens, afetos e desejo - A história não contada. Contexto e lugar de partida - I

O inferno angustiante do desejo Hoje quero refletir sobre um assunto do qual eu deveria saber muito, mas confesso que quanto mais aprendo, menos sei e muito menos acredito. E infelizmente não estou sendo modesto e nem socrático. Quero abordar o tema a partir do ponto de vista de alguém que viveu em outra época e que nela tinha medos, necessidades e expectativas e principalmente, tinha um futuro pela frente com o qual sonhava, mas não sabia o que seria deste tempo. Assim que eu disser a palavra, as pessoas irão abandonar a leitura, imaginando que “lá vem mais um falar do mesmo...” Confie em mim e apenas continue lendo, hoje irei falar sobre as necessidades, emoções, expectativas, vitorias e frustrações dos homens que gostam de homens.   Se não usei o termo socialmente aceito é porque de alguma forma ele está carregado de ideias e informações nem sempre corretas ou interessantes. Pode ser que eu o use mais tarde, mas por ora não.             Acredito que neste texto falo, sobretudo,

Deus - I O Devorador

  Deus me seduzindo            Esse não é um texto para relembrar o passado, mas uma tentativa de descrever o que não pode ser descrito.  Vou meter-me a falar do que não sei. Talvez seja exatamente assim, conhecemos muito e desconhecemos muito mais aquilo que realmente é importante. É como mãe, amamos muito mas às vezes nos damos conta do quão pouco a conhecemos. Entretanto, Deus, como o conheço, foi definido magistralmente pelo poeta indiano Rabindranath Tagore: “Sou um poeta e meu Deus só pode ser um Deus de poetas”. Então, só quem vive profundamente o ser poeta consegue traduzir em si o que isto significa.             Por aproximação tentarei dizer um pouco sobre isso. Uma definição destas não aparece em nosso coração na infância ou na puberdade, surge apenas quando ocorre um amadurecimento íntimo, que não tem idade para ocorrer. Podemos ter uma epifania em algum momento, mas ela só se consolida ao longo do tempo através de outros momentos assim. É como um “dejavu” não tem importâ

Deus III - A sustentação essencial. O que é real? O que é realidade?

  Não dá para ilustrar este texto de forma adequada                 Há muito tempo atrás se alguém discutisse a realidade concreta das coisas e do cotidiano eu mandaria a pessoa “catar coquinhos”. Entretanto as experiências existenciais nos ensinam se permitimos. O tempo passou e tive vários aprendizados que considero importantes. Eles ajudaram a definir minha relação com o mundo e as pessoas. Nestas experiências, e vivências, passei a lidar com um real que é tênue. Perigosamente tênue. O risco de lidar com uma compreensão expandida do real e da realidade é perder o vínculo que torna as coisas entre nós inteligíveis e aceitáveis. Entretanto, não há nenhum caminho, místico ou não, que não passe pela discussão daquilo que nos parece óbvio, e obviamente verdadeiro, irretocável e irrevogável. Então, hoje vou refletir sobre a realidade física e social, vamos desmaterializá-la para só então, falarmos de imaginação. Mas usaremos a imaginação o tempo todo como método para essa discussão.  

Deus II - A dança: Som e fúria

O sagrado pode se manifestar no cotidiano              De todas as coisas sensórias que me envolveram desde sempre o som é uma das mais fascinantes. Trago grudado ao espírito o canto da pomba “fogo apagou” envolto pelo silêncio da fazenda, ambientando a solitude do jovenzinho que sentava-se na improvisada jardineira da avó e olhava longamente para o campo. De um lado o pasto a perder de vista e de outro o cafezal assentado no morro. De um pouco mais distante vinha o som do vento assoprando forte nos eucaliptos, só quem ouviu esta melodia que rasteja pelos ouvidos e dá profunda paz sabe como é a música e o perfume que juntos vem e quando junto deles estamos ainda toma nossa pele a sombra fresca do “calipial”.             Trago no espírito meu pai assoviando. Era um tempo onde os homens assoviavam, e fazer disso uma arte também era parte do seu quinhão. Só com o tempo eu saberia que o som nos afeta fisicamente antes de nos afetar o espírito. O som toca o nosso ouvido, toca fisicament

Os homens, a história não contada. A pornografia e as transformações sociais da AIDS - II

  (Continuo aqui o texto anterior. Passaremos incialmente pelos anos setenta, a televisão e suas influências e chegaremos aos poucos até os anos 90 e as profundas transformações sociais e sexuais que ocorreram na sociedade). Começavam os anos 70 e éramos apenas amigos! Uma das coisas que me passavam pela cabeça quando era menino (05/07 anos) é que eu deveria ter nascido mulher. Mas isso ocorria não porque eu desejasse os homens, mas porque eu era, desde aquela época, bastante caseiro e não queria sair de casa e nem ver pessoas. Depois aprendi a ler e tudo o que eu queria era mais silêncio e menos pessoas. Depois veio a música e aí eu queria ainda mais silêncio e nenhuma pessoa. Mas para um homem essas coisas não eram possíveis. Homens deveriam ficar o dia todo fora de casa trabalhando e fazendo coisas que não gostavam, pois era necessário para sustentar a casa. Então, o Luizinho queria ter nascido mulher para ser “sustentado” e ficar em casa. E eu não achava a vida doméstica tão terrív