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Tem dia que o Diabo me pega! II - Do concurso público nas universidades até uma carreira na pesquisa

Só o Diabo pra me fazer botar a mão em vespeiro

           Eu poderia começar este texto fazendo um milhão de críticas azedas e amargas- umas infundadas, outras não -, entretanto, prefiro buscar levantar a discussão e contribuir. Atualmente há um grande número de professores doutores formados e bem formados aguardando a possibilidade de entrada numa universidade estadual ou federal. Quer gostemos ou não, estes são os únicos caminhos para a pesquisa séria no país, exceção feita a pouquíssimas universidades privadas (tradicionais). Então é preciso passar por este trauma se desejar ir além na carreira.

Mas o pior trauma é saber de antemão que não há e nem haverá vaga pra todo mundo nessas universidades, haveria se todos os que estão lá se aposentassem ao mesmo tempo. Hoje ocorre uma grande desproporção entre a oferta e a procura por professores doutores. O excesso de oferta é culpa da política do governo federal que formou, e tem formado, indiscriminadamente mão de obra para uma obra que não existe. Por que as pessoas continuam se formando doutores então?

Porque este é um país pobre e as pessoas veem o estudo como uma possibilidade de ascensão social. Só de banco universitário são quatro anos de graduação, dois de mestrado e quatro de doutorado. Isso para os recentes, pois já foi três anos para o mestrado e cinco para o doutorado. Dez anos de formação no mínimo. Fora todas as outras exigências que não estão formalmente colocadas. Ninguém tem “vocação” para ser professor doutor. Essa é uma coisa que acontece aos poucos e com muito investimento e não é apenas uma realização pessoal fantasiosa. As pessoas querem um bom trabalho, um bom salário e um bom ambiente de trabalho. E é justo que depois de tantos esforços consigam, não é mesmo?

Neste processo o que incomoda é que os concursos não são nem justos e nem meritocráticos na forma como estão. E nem adianta criticar a “meritocracia”, pois o meio acadêmico é o lugar natural dela. É preciso corrigi-la e reorienta-la. O problema é que hoje exigem “méritos” mais do que excessivos para quem irá adentrar a carreira. Vamos lá explicar!

            Como é que se organiza um concurso acadêmico? Bem, o Reitor ou o RH da universidade libera que a vaga seja ocupada; a unidade a que se destina o professor informa o colegiado, em reunião departamental, que haverá o concurso. Com muita má vontade um ou mais professores aceitam fazer o edital do mesmo. Má vontade, pois todos estão bastante ocupados e não recebem nada a mais por esse trabalho.  Diante das novas realidades de enxugamento de verbas das universidades de todo tipo desejam usar este momento para solucionar algumas dificuldades. Eles são cheios de boas intenções.

Então, se estão faltando dois professores e só permitem contratar um, eles colocam no mesmo edital os requisitos necessários para dois professores, só que apenas um terá de dar conta de todo o conhecimento e trabalho necessários (precisa saber por dois). Fundem disciplinas que antes estavam nas mãos de dois professores e colocam para um só. Fazem isso como se não soubessem que são disciplinas muito especializadas, e que cada coisa que se acrescenta nelas aumenta as bibliografias e habilidades profissionais necessárias para o bom desempenho do cargo.

            Juntar disciplinas segundo suas necessidades departamentais, e não segundo uma lógica acadêmica real, torna muito mais difícil encontrar um candidato que tenha um perfil ideal ou minimamente adequado para a vaga. Os editais pedem o básico: prova dissertativa, prova didática (aula), prova de títulos (curriculum documentado), e prova de sanidade (exigida depois). O divertido neste processo são os “pontos” da prova. Os pontos são os dez temas que reúnem absolutamente tudo o que as disciplinas abordam (precisava ser “tudo”? Não).

Os pontos poderiam ter um conteúdo básico mínimo e abordarem acentuadamente os assuntos específicos para a função. Por que isso não ocorre assim? Provavelmente por que a pessoa que ficou incumbida de realizar o edital não entende do assunto para o qual foi designada. Então ela pega a ementa dos dois ou três cursos que resolveram fundir, dali tira os “dez pontos” e depois coloca como bibliografia básica ou mínima mais de 100 ou até 150 livros como já vi. E faz isso “copiando e colando” por que não quer se dar ao trabalho de selecionar a bibliografia adequada.

            Se você ficou espantado, imagina eu que já estive na graduação e na pós-graduação de uma universidade e SEI que ninguém domina porra nenhuma disso tudo. Ou melhor, uma parte disso com certeza. Qual é a contradição? Ora, mestrado e doutorado te especializam, focam em pontos determinados. Agora, expliquem-me como se exige num concurso que essa pessoa domine uma amplitude enorme de conceitos e bibliografias e de matérias díspares? Você “simples mortal” que mal lê um livro na vida, ou lê um por ano, ou quem sabe dez por ano (romances), já deve se perguntar como é que a pessoa se prepara para um concurso destes. O absurdo é tanto que contando as pessoas não acreditam. E como se entra numa vaga destas? Se o processo for “limpo”, sorte, para o azar da instituição.

            Quem é que vai julgar as pessoas que se predispuseram a encarar o absurdo - mesmo sabendo que é absurdo? O Departamento da Universidade escolhe três professores doutores da casa e, para garantir a idoneidade, convida mais dois professores doutores de outras instituições. Ahhhh, idoneidade... Professores externos são amigos convidados, e geralmente fazem vistas grossas para a idoneidade do Departamento alheio, só não o fazem quando a coisa é escandalosa demais. Aí chamam o colega de lado e cochicham no seu ouvido: “dá para serem mais discretos?”

Na vida acadêmica impera um corporativismo animal. As denúncias relativamente aos concursos NUNCA partem dos convidados, NUNCA se ouviu falar disso, partem quando muito dos que prestaram o certame. O compadrio na estupidez é regra nas universidades. Isto ocorre por que os interesses no mundo acadêmico estão muito atrelados a este mesmo compadrio. Se você criticar, denunciar ou apontar problemas e isto prejudicar qualquer energúmeno que estava sendo incompetente ou fazendo marmelada, isso respingará em você na forma de um balde de lama. Você se torna um leproso bíblico do qual ninguém deseja se aproximar. As relações acadêmicas neste quesito são tão complexas que só elas valeriam outro texto.

Vamos voltar à “vaca fria”, estes cinco potentados da vida acadêmica que julgarão todas as etapas do concurso lerão 64 avaliações de seis páginas cada, para entregar o resultado no dia seguinte ou no fim da tarde do mesmo dia, para que a prova didática transcorra. Assistirão a prova didática toda e avaliarão os 45 candidatos que restaram, depois avaliarão currículos vitae (centenas e centenas de páginas cada um) dos mesmos 45 candidatos e no dia seguinte dirão quem passou. Já deu pra entender por que nenhum professor de universidade quer ficar responsável por qualquer coisa de um concurso, não é mesmo? Você consegue, de longe, imaginar o que é examinar 64 doutores e toda sua produção acadêmica?! Não, né?! Nem eles.

            Por que isso continua assim? Porque as bestas que os organizam foram contratadas assim, com a diferença que trinta anos atrás não ousariam fazer “copia e cola” com a bibliografia das três disciplinas; como tinham de datilografar a lista de livros era bem menor. É isso o que você está lendo “copiam e colam” não fazem seleção de material bibliográfico para a prova. Fodam-se os candidatos. E agem como se soubessem tudo o que pediram, não sabem. É impossível saber. Também tudo continua assim, pois por inércia fazem como quando entraram, e ficam espantados quando aparecem 64 candidatos. Ainda que exista uma legislação que regule esse processo, parte dele é por conta do departamento, e é nele que se decide o que se fará e como fará. Só vi um edital justo até hoje, foi o de jornalismo para a UNIR de Rondônia, tinha uma bibliografia bem escolhida e não mais que vinte livros adequados na mesma.

Quando as pessoas, que hoje organizam e julgam o certame, prestaram concurso para entrar as condições de trinta anos atrás eram muito mais justas. A bibliografia era bem selecionada, não havia exigência de grande produção de artigos publicados (não havia nem carreira internacional, e uns entravam só com mestrado), e eles concorriam com quatro ou cinco candidatos. Quatro ou cinco... E ainda hoje te olham de cima para baixo e comentam entredentes: “você não conseguiu entrar no concurso? Como assim?” questionam sua competência ao invés da formatação do concurso e dos problemas de oferta de vagas. É prepotência? Arrogância? Não, é apenas inépcia, má vontade, preguiça e desinteresse pelas questões “administrativas”. Eles têm culpa por não mudarem nada.

 Entretanto, é preciso se perguntar: por que não existem disciplinas nas graduações que preparam para a administração acadêmica? Por que estas coisas tão importantes são aprendidas, e mal aprendidas, quando já ingressaram nos departamentos das universidades? Isto é como ser “orientador”. Alguém já viu um curso para orientador acadêmico?! Não, claro que não. Pois ainda agem como se o orientador fosse um “guru” indiano, que ao invés de alunos e orientandos tem “discípulos”; e que estes mesmos irão repetir os mesmos erros que aprenderam de seu antecessor (algumas virtudes também), mas isso não é nada profissional.

A parte mais divertida das exigências dos concursos é que eles desejam que você entre numa universidade pública (porta da pesquisa), com uma carreira de pesquisador pronta. Querem que você tenha mais publicações em revistas do que eles, que tenha pesquisado mais, que tenha uma carreira internacional e que fale fluentemente uma série de idiomas que eles mesmos não falam. Em outras palavras, pensam em suprir suas carências em relação às exigências da Capes contratando alguém que esteja “pronto”. Mais do que pronto, que seja mais ótimo do que eles mesmos.

E este profissional “pronto” existe? Existe, claro que existe. Mas não deveria existir. Pois que para existir, além de estudar por anos, também tem de custear suas pesquisas, gastar muitas horas vagas - além do trabalho - para publicar os resultados da sua pesquisa doméstica, e participar de congressos e mais congressos para comunicar o resultado das suas pesquisas. O pesquisador trabalha de graça anos a fio. Tudo para estar pronto para um concurso feito nas cochas, organizado nas cochas, mal pensado e que prejudica todo mundo. Isto não é correto. Esse profissional precisa ser preparado dentro da universidade e não em seu lar pagando as contas extremamente caras da vida acadêmica, na qual ele efetivamente ainda não entrou. Além do mais, este investimento gigante dará com os burros n’água na maior parte dos casos. Pois afinal, quem conseguiu fazer um bom trabalho analisando 64 profissionais para uma vaga?

Está tudo errado, é óbvio que está! As universidades públicas precisam urgentemente cuidar melhor dos processos admissionais. Não se pode delegar a pessoas sem competência a realização de um concurso. E já é hora de reconhecer, que se tiveram competência para isso, não têm mais! A conjuntura mudou. Professores de Departamento podem atuar como consultores no processo, mas só um RH pode dizer o óbvio: bibliografia com 150 livros NÃO. 64 candidatos para uma banca de cinco professores? NÃO. É preciso criar etapas na seleção que tornem o processo como um todo mais justo. É preciso filtrar, criar critérios melhores. Criar critérios reais.  O futuro dos formados não pode ser contar com a sorte ou com o compadrio acadêmico. É injusto, é incorreto, é absurdo. Está na hora das universidades públicas encararem a realidade. Os processos seletivos para contratação de professores apodreceu de velho, não funciona mais. A Capes, por sua vez, necessita mudar a política de formação de mestres e doutores, que vê com ótimos olhos quem forma a cota máxima de alunos exigidos. Estamos formando desempregados altamente qualificados e para isso gastando verbas públicas da educação. Além de iludir quem deseja fazer uma carreira.

Está na hora dos governos federais e estaduais pensarem na criação de empresas ou fundações dedicadas somente à pesquisa científica em todas as áreas. Fundações sem finalidade pedagógica, pesquisa, apenas pesquisa. Salários maravilhosos?! Não, apenas dignos. Se existe uma formação de pesquisadores é preciso que haja a carreira e o local de trabalho para os mesmos. Deve-se desvincular parte importante da pesquisa das obrigações das universidades públicas, para que assim haja emprego e trabalho para os que se formaram com a promessa de uma carreira. Os governos não podem simplesmente continuarem agindo como se o problema não existisse. Parte importante da inteligência do país migra em busca de lugares melhores, e eu já adianto, esses lugares melhores não existem. Precisamos resolver o nosso problema.

É preciso gente gabaritada e nomeada para tanto. Não se pode esperar que professores cuja bundas amoleceram dentro da universidade se importem com quem está fora dela. Este inclusive é um grande problema, a maior parte deles não se importa (efetivamente) nem com seus bolsistas - afinal, a bolsa é concedida pelo governo e não por eles. Se alguém perde uma bolsa injustamente, o professor só pode dizer “sinto muito”. Senta, mas não faz nada, a política de bolsas nunca foi discutida nos congressos, nunca foi assunto. A bolsa é vista como uma generosidade do estado, como se não fosse ela que garantisse a pesquisa. A formação de Doutores neste país passou a ser um engodo de massa. Depois de receberem o título saem campeando uma bolsa de pós-doc para se sustentarem, e continuam vivendo de migalhas e a mercê da duração de bolsas. É preciso criar empregos para pesquisadores e parar de fazer da concessão de bolsas o plus ultra da vida acadêmica.

Quais são as chances de alguns deles lerem ou pensarem estas críticas?! Nenhuma. Só pensariam se seus empregos estivessem correndo risco. O concurso, bom ou viciado que prestaram e passaram, lhes garantiu o Olimpo e de lá não se importam com o restante. Afinal, os deuses precisam de quem os louve, não é mesmo?! E por que eu escrevo isso?! Ah, devo ser um sem noção, como estão dizendo agora.

 

P.S. Não inventei o número 64, era a quantidade de candidatos para a área de comunicação da Universidade do Recôncavo Bahiano em 2022.

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