"Toda luz é meio bruxuleante diante da escuridão.." |
Thiago
acendeu uma vela de Natal e a colocou sobre a pequena mesa. Olhou à sua volta e
não conseguia acreditar no que restara depois de tudo, uma quitinete. Não me
via, pois tudo estava imerso em trevas, e com elas me confundo. Perguntava-se,
imerso em desânimo “Foi para isto que vim pra cidade grande?!” Décadas de luta,
sonhando em vencer numa carreira e tentando realizar o que aprendera desde
cedo, construir um lar. Senão um lar, uma casa. E ter uma casa não era como ter
um carro. Um carro significava poder e satisfação. Mas a casa era a suprema
vitória, na qual haveria o repouso do leão. Agora quase seis décadas o batiam,
desde a juventude empreendera uma feroz luta pela sobrevivência. Apoio da
família tivera e não tivera, aquela coisa inconstante. Para suprir essa falta
acreditou fortemente em Deus. Pois, criado como um subalterno não poderia
acreditar em si. E estranhamente, acreditou nas pessoas. Essa a coisa mais tola
que fez. Aprendeu muito tarde com Doctor House, um seriado de TV, que as
pessoas mentem, e mentem sempre.
Já
contava quarenta e cinco anos quando comprou no Bom Retiro seu primeiro
apartamento. Em razão do seu local de trabalho havia morado muito tempo em
Moema. Lá descobriu que não podia pagar por aqueles apartamentos. Poderia alugá-los,
mas comprá-los não. E não podia, pois tudo no mundo foi feito para um casal
pagar. Para homem e mulher da classe média juntarem seus esforços, se endividarem
e conquistarem algo de seu, e ali criar seus filhos. Mas nisso Thiago
fracassara, era gay, não teria uma esposa para dividir as despesas. Então para ele,
e todos os que têm a sua sina, tudo custaria o dobro.
Estranho
como demorou para descobrir este simples fato da vida. O mundo não é dos gays,
o mundo não é dos que vivem sós. Nada é fabricado, produzido ou pensado para os
que viverão uma vida completa de solidão. É como se esta vida não existisse,
entretanto, na cidade grande ela é comum. Principalmente entre viados. Não é
porque as pessoas vivem sós que elas desejam morar na rua ou numa quitinete.
Elas têm no seu coração a casa dos pais, e nessa sempre cabiam quatro pessoas.
E é essa construção, grande ou pequena, que nos invade quando queremos um lar.
Buscamos repetir o que tivemos ou construir o que nunca tivemos, a casa da
família margarina do comercial de TV. E Thiago havia notado mui tardiamente que
isso lhe fora tirado: relações familiares profundas, um lar e pessoas queridas
vivendo sob um mesmo teto.
Na
Moradia dos Estudantes, quando jovem, se viu dividindo um espaço não muito
grande com mais três. Ainda que odiasse aquilo não conseguia pagar um
apartamento na cidade, e demorou muito para fazê-lo. Antes disso chegou a morar
de favor na casa de um amigo. Quando conseguiu alugar o primeiro local, onde
poderia desfrutar da sua própria companhia em paz, ele tinha vinte e cinco
metros quadrados. E sem assombro, descobriu que tinha de lavar a roupa na pia
do banheiro. Era angustiante ficar ali dentro. Sozinho era ruim, acompanhado
era muito pior. Numa feita, chegou a dividir a quitinete com outro rapaz para
poder pagar o aluguel. Nestas circunstâncias resolveu morar novamente em
república, pois ao menos o espaço era maior.
Quando
enfim, anos mais tarde, teve condições de financiar um apartamento descobriu o
Bom Retiro. Um bairro cheio de lixo e tradições no centro de São Paulo.
Recheado de prédios velhos e decadentes, entretanto os apartamentos eram
grandes, com um preço razoável. Aos poucos se convenceu que o bairro era ótimo,
pois de nada adiantaria entender que as pessoas que trabalhavam com ele jamais
pisariam ali. E apesar de ser uma situação um tanto quanto degradante, era o
paraíso perto do que qualquer pessoa comum tem para morar na Capital. Quando
conseguiu pagar o financiamento, telefonou para todo mundo que em sua
imaginação, o havia ajudado na conquista. E chorando, agradecia-os ao telefone.
Deve ter passado por louco. Havia sido difícil pagar o imóvel, dois anos quase
passando fome. Mas estava pago.
Decorou
com calma o grande apartamento, três dormitórios mais um. Chegou a ter uma
faxineira ótima que cuidava de tudo. Tapetes persas (usados), antiguidades meia
boca, quadros e outras quinquilharias de bom gosto preencheram o vazio de vida
do apartamento. Ali entrava um ou outro rapazote que logo ia embora sem deixar
afeto de verdade. A solidão no Bom Retiro foi ainda pior do que a de Moema. O
lugar grande, ecoando os desejos não realizados, as frustrações e tristezas. O
lugar grande preparado para os pais pobres virem morar, não vieram.
E agora estava com aquele grande espaço, ocupado, mas vazio. Só para não estranhar demais, dormia numa cama de solteiro num quarto minúsculo próximo ao banheiro. Depois passou a dormir com um casal de pinschers na mesma cama de solteiro. Tinha um quarto com cama de casal e tudo organizado, mas se sentia mais seguro e sem medo no quarto pequeno no qual só cabia uma cama. Medo de que?! Medo dos espíritos maus do bairro. Estavam por todo lugar. E nisso não havia como contraditá-lo.
E
enquanto olhava fixamente para a vela de Natal que acendera, cuja luz recaía
sobre o Peru, na realidade um minúsculo frango defumado, sentia-se triste. Gostava de comemorar o Natal quando era
adolescente, mas a família fizera a data se transformar em algo amargo e
desprezível. Longe de casa, sempre longe, não tinha mais motivo para comemorar.
Entretanto, agora, quando não tinha mais pais, irmãos, ou parentes próximos, e
estava há alguns quarteirões da Cracolândia, sentiu uma necessidade aflitiva de
comemorar o Natal. Talvez, numa sede humana, deveras humana, da presença de
Deus, sendo trazida pelas doces recordações da infância. Olhava para o brilho
amarelo da vela com uma estranha vontade de chorar. Não acendera nenhuma outra
luz, pois o lugar era pequeno e uma vela dava bem conta dali. Achou triste ser
tão sozinho, mas não achou que houvesse outra solução. Desde o HIV as coisas
pareciam ter perdido o sentido.
Esse
fora o fim do grande apartamento do Bom Retiro, um namorado muito mais jovem, o
contaminou. Um dia, enquanto se amavam, num gesto extremamente rápido tirou a
camisinha e gozou dentro dele. Thiago ficou ali, sentado no pau do outro,
olhando aturdido para o seu rosto que se contorcia feliz. Levantou-se, sem
brigar, só perguntou, “o que você fez?!” E ele respondeu, a contragosto com
pouco caso “nada, só estava gostoso!” Depois, ao acaso de Deus, descobriu que
estavam contaminados. Qualquer um o expulsaria ou brigaria, mas Thiago não.
Achou que depois de trinta anos sendo gay, desviando da AIDS, até que demorou
para se contaminar.
A
contaminação era quase certa desde sempre. Não importava que não fosse promíscuo,
o mundo era. Não importava que usasse camisinha, arrancaram ela e o
contaminaram. Aceitou o fato, chorando apenas um pouco. Na manhã em que foi
informado, não pôde nem ficar chocado, pois deveria levar a mãe na rodoviária
em instantes. Que vontade de gritar, “Mãe, me fizeram mal, mãe! Me fizeram
mal!” E chorar como uma criança em desespero. Entretanto, não o fez, não o
faria. Assumiu a culpa mesmo não tendo. Afinal, como um rapazote de vinte e
dois anos conseguiria lidar com a situação? Então, fingiu que estava tudo certo
e amparou o outro. Tudo vinha à mente naquele momento, observando a vela diante
do peru. Toda luz é assim... meio bruxuleante diante da escuridão.
Manteve-se
aparentemente forte, mas a verdade é que depois disso surtou. Desmontou de
qualquer jeito o grande apartamento, teve fobia social, vendeu o lugar o mais
rápido que pôde. Mudou-se novamente para Moema para pagar aluguel. Depois
comprou outro apartamento no Bom Retiro, depois vendeu, depois mudou de cidade,
depois mudou novamente, e por fim estava agora novamente no Bom Retiro. Era
como se não pudesse sair dali. Não mais num grande apartamento, mas numa
quitinete. Os colegas de trabalho, jamais foram amigos de fato, coisas de São
Paulo. Os amigos tinha poucos, mas jamais acreditaram nele, mesmo quando estava
bem. E ao invés de ajudarem, conversando ou incentivando, quem sabe até um bom
conselho?! Apenas o ignoravam ou faziam comentários azedos; era como se nas
mesmas circunstâncias eles fizessem melhor, entretanto, sabia que não fariam. O
namorado depois de dois anos foi embora, ainda eram amigos, cúmplices de um
passado funesto.
Em
matéria de autoengano Thiago era muito esperto. Ele não perdeu as coisas, ele
tomou decisões antes de perdê-las; e ainda que significasse perda, parecia que
estava no controle e que fazia escolhas boas. Entretanto, o grande apartamento
era todo seu patrimônio, e virara uma quitinete. Compraria uma casa no interior
com aquele valor, mas para viver em lugar algum viveria ali mesmo. Ainda haverá
quem diga, “uma quitinete, é um bom patrimônio, um bom lugar para morar!” Mas
isso é coisa de quem não conhece o Bom Retiro. Prédios velhos, água enferrujada
saindo das torneiras, vizinhos bolivianos, chineses, gregos, e os piores,
evangélicos brasileiros. Naquele lugar tudo vira cheiro ruim e barulho
constante. Assim que a pessoa chega ela procria, e o bairro deve ser o que tem
a maior quantidade de novos brasileirinhos por metro quadrado. Eles correm na
sua cabeça, choram, gritam, fazem birra o dia inteiro; e de madrugada andam de
skate fazendo algazarra. Sim, Thiago havia feito escolhas, ele não havia
perdido nada. E as escolhas eram boas do ponto de vista de um migrante malaio.
Eu
o vejo assim, sozinho na Noite de Natal. E a missa do galo acontecendo, na
Igreja Nossa Senhora da Conceição há poucos metros dali. Cheia daquela fé chorosa
de quem precisa de tudo e se recusa a ver a realidade tal como é. Eu o vejo
ali, sozinho, mas verdadeiro, sozinho, mas cheio de honestidade para consigo
mesmo. Sozinho, ele e o frango defumado fazendo às vezes de Peru. É estranho
como podemos nos orgulhar do pouco a ponto de nos perdermos para o muito. A
cada hora que passava Thiago aproximava-se mais da miséria da humanidade.
As
razões para viver se esgotaram e parecia que apenas aquela pequena vela era a
garantia de vida. Prometera comer o frango e tomar o vinho, antes que ela se
apagasse de todo. Comprara o vinho no mercado do chinês, um senhor que mal
falava português, com o qual se entendia muito bem. Gostava de Gato Negro,
Cabernet Sauvignon, um vinho chileno de gosto e preço justos e o comprava com
muita frequência. Começou a puxar a pele tostada do frango, ia comendo,
lambuzando os dedos, sem saber até quando teria estes novos luxos.
Eu
o vi quando, com um pedaço de frango na boca, se cobrou cheio de dor e amargura,
caindo em si: “Meu Deus, sou professor e tenho fobia social...” chorou em
pânico ao ser invadido pelo fato que não desejava abandoná-lo. Estava com medo,
muito medo. Sobrevivera a tudo, mas parecia sucumbir a si mesmo. Não suportava
ruídos, o som flagrantemente agressivo de alunos falando e gritando ao mesmo
tempo o enlouqueciam; não conseguia mais ser questionado e oprimido por todos,
sem nenhuma razão. Suas mãos tremiam só em se aproximar do micro, suava bicas
se tinha de procurar emprego; na verdade não conseguira nem fazer o currículo. Como
sobreviver se não conseguia fazer o que bem fazia? Tudo desmoronando... E a Cracolândia
era logo ali, chamando-o para o abismo. Em sua cabeça todos faziam pouco e o
chamavam de “fracassado”, “derrotado”, sem nenhuma camaradagem ou piedade. Chorou
e chorou, com o pedaço de frango na boca, completamente desesperado e ridículo.
Eu o espiava das sombras e vi quando a vela apagou e o deixou imerso na
escuridão. Uma treva densa e pegajosa, destas que grudam e não soltam mais. Estava
pronto para a morte, mas não para a indigência dos pedintes do Bom Retiro.
Ainda
que estar cheirando a vinho o envergonhasse, desceu do prédio a toda brida, me
surpreendendo. Eu o segui. Imaginei que fosse se embrenhar em meio aos
drogados. Imaginei que morreria gozando de tanto fumar crack em meio à
imundície. Para mim, parecia que tudo valera a pena afinal, depois de tanto
tempo eu seria bem sucedido. Mas muito lestamente, cruzou os quarteirões,
enfrentou as trevas como quem a elas estivesse acostumado, entrou pela porta da
frente da Igreja, não muito lotada. Ajoelhou-se, e com tremenda dor, de cabeça
baixa e com os olhos sangrando em lágrimas, orou:
“Pai
nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso
Reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de
cada dia nos dai hoje, e perdoai nossas ofensas, assim como perdoamos quem tem
nos ofendido; e não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo mal...
Amém”.
E
repetia baixinho “não me deixe cair em tentação...” “livrai-me do mal...” E
repetia, e repetia, e repetia...
Eu
o vejo ainda encurvado na Igreja, rezando como nunca rezou, eu o vejo... E
apesar da minha vigilância na sua quitinete, me surpreendeu. E soube que ele
tinha uma certeza, não uma fé. Se Deus não pudesse salvá-lo, ele podia. Decidir
não estar só, não importando a companhia, naquele dia o manteria vivo. Se para
viver ele tivesse de imitar fé, então ele imitaria... Mas Thiago, Thiago era
muito bom com autoengano. Eu teria de aguardar o seu tempo novamente. Por isso,
enquanto esse tempo não chegava, me dirigi para o antigo apartamento grande. Nele
eu já havia conseguido que seu amigo, o atual morador, virasse acumulador de
lixo. E que trabalhando online, vivesse completamente isolado. Esse, eu tenho
certeza, não tem uma vela de Natal... Quanto mais confiante de si ele for mais
impossível será salvá-lo. Irá pedir comida dellivery
como faz toda noite... Mas hoje, hoje não tem entrega...
É
como acredita Thiago, no Bom Retiro existem maus espíritos... Entretanto, até
os cães fazem escolhas.
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