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Deus - I O Devorador

 

Deus me seduzindo

           Esse não é um texto para relembrar o passado, mas uma tentativa de descrever o que não pode ser descrito. Vou meter-me a falar do que não sei. Talvez seja exatamente assim, conhecemos muito e desconhecemos muito mais aquilo que realmente é importante. É como mãe, amamos muito mas às vezes nos damos conta do quão pouco a conhecemos. Entretanto, Deus, como o conheço, foi definido magistralmente pelo poeta indiano Rabindranath Tagore: “Sou um poeta e meu Deus só pode ser um Deus de poetas”. Então, só quem vive profundamente o ser poeta consegue traduzir em si o que isto significa.

            Por aproximação tentarei dizer um pouco sobre isso. Uma definição destas não aparece em nosso coração na infância ou na puberdade, surge apenas quando ocorre um amadurecimento íntimo, que não tem idade para ocorrer. Podemos ter uma epifania em algum momento, mas ela só se consolida ao longo do tempo através de outros momentos assim. É como um “dejavu” não tem importância se acontecer uma vez ou outra, mas se acontecer todos os dias irá nos deixar bastante preocupados.

            Acredito que o Deus dos poetas deva obedecer o básico da poesia, as sensações. Somos atirados ao mundo no momento do nascimento e imediatamente começamos a lidar com as sensações. Os sons, a luz, os cheiros, os toques, os gostos. E estas nos causam prazer ou desprazer, grandes ou pequenos. Causam maravilhamento. Meus pais são Católicos, e fruto de uma vivência de um país rural, e desde sempre fui cercado por pequenos rituais, rezas, terços, velas e igrejas. Sou do tempo em que as coisas não tinham explicação, elas eram assim, ponto.

Então não procurávamos saber muito sobre Deus ou questioná-lo ou à sua Igreja. Em realidade nós o vivíamos. Eu sempre achava as missas muito chatas, demoradas, e não me interessava nada que o padre dizia. Talvez por que nada me interessasse muito nas pessoas, as pinturas no teto da igreja me fascinavam. Imagens e mais imagens lindas e que eu não entendia o que significavam e nem que estória contavam, se é que contavam alguma coisa. Detalhe, eu também não me interessava por estória nenhuma. Eu era estésico.

Em grego sensações é aesthesis, em português estesia, quem vive pelas sensações, estésico. E aquele que faz das sensações algo ainda maior, chega à beleza suprema a Estética, e a beleza leva à transcendência de todo mundo e de toda matéria até ficarmos estáticos diante do sublime. Sim, o sublime é o objetivo. Foi assim, ignorante de tudo que aos dois anos e meio de idade - sim, muito cedo -, caminhando no fim da madrugada com minha irmã pelo entorno da casa no sítio, deparei-me com uma teia de aranha orvalhada, reluzindo a luz da manhã. Esticava-se firme e grossa na cerca de arame farpado. Lembro-me da madeira carcomida, do arame escurecido pelo tempo, e da luz refletindo mil sois num tecido que nem parecia de seda, tão grossa que se se assemelhava ao algodão. A umidade do chão e do mato, molhavam as pontas dos meus sapatinhos ortopédicos deixando meus dedinhos frios e gelados. Sim, lembro-me do detalhe. Nada mais eu vi, fiquei embevecido e encantado. Eu não sabia que era Deus, e isso nem me interessava naquele instante. Mais de trinta nos depois eu soube, por que meu íntimo me disse, que naquele momento Deus me penetrou e passou a habitar em mim. Devo ser um lugar meio desconfortável para ele, mas já deve ter se acostumado.

Eu queria entender tudo o que era mistério. Anos depois minha mãe me disse - sem que eu lhe perguntasse - que naquela época passei a acordá-la de madrugada para que pudéssemos procurar teias de aranha orvalhadas. Não sei quem era mais fofo, eu ou a minha mãe. Imaginem alguém que vivia na roça e que acordava de madrugada todos os dias, se dar ao trabalho de sair procurando teia de aranha com o filho de dois anos. Minha mãe.

Ainda nessa mesma época - disso já não me recordo, entretanto seria uma constante em minha vida -, minha mãe era assombrada todas as noites por um espírito de um homem que a cercava na cama e tentava agarrá-la. A pobre ficava em tão grande pânico que meu pai as vezes precisava dormir sobre ela para a proteger. E eu, que não sabia de nada do que acontecia, vinha pro quarto deles chorando por que havia um homem atrás de mim. Sim eu via o mesmo espirito que perseguia a minha mãe. Desde pequeno o mundo era mágico. Ou como dizia o filme “I see dead people”...

Quando mudamos para a cidade, eu já contava uns quatro anos, íamos à Igreja com mais frequência - ou passei a perceber isso -, e em meio à minha má vontade infantil com os demorados e intermináveis rituais, enquanto ficava correndo de um lado para o outro da Igreja - sim, eu fui um capeta  e cheguei a escalar o altar mor pela parte detrás - no momento da consagração Eucarística, minha mãe ensinou que devíamos ficar ajoelhados, de mãozinhas postas, de cabeça baixa e de olhos fechados. Enquanto tocasse o sininho não poderíamos olhar para o padre, pois naquele momento Deus descia dos céus e entrava na hóstia. Era o momento que eu mais gostava da missa, eu punha as mãozinhas sobre os olhos e entreabria os dedinhos, espiando, tentando surpreender Deus no momento em que ele aparecesse. Jamais consegui surpreende-lo, mas nem por isso duvidei. Talvez ele fosse muito mais rápido do que eu. Sim, eu também não sou do tempo das dúvidas e incertezas. Deus era Deus e assim eram as coisas e assim elas eram feitas. E tudo era mágico e bom. Tudo era misterioso e sedutor. Deus é um sedutor, ele nos encanta antes de nos devorar.

E por hoje paro minha reflexão por aqui. Note que não são apenas minhas memórias, mas um esforço de mostrar o que é uma jornada mística.

Como é seu Deus? Ele se manifesta de alguma forma? Como você lida com ele? Diz aí.

Comentários

Mauricio Sita disse…
Você humildemente diz "Vou meter-me a falar do que não sei"
Eu pergunto: Será que alguém sabe?
Seu texto é profundo, leve, instigante e provocativo. É para refletir muito!!!

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