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Governando com justiça!


Bem distante das cidades, em meio a belas colinas e campos sem fim, um rebanho de ovelhas fartava-se de pastagem e outras guloseimas. Vez por outra vinha o cão pastor ladrando e tocando uma ovelha desgarrada de volta para o rebanho. O pastor, por sua vez, um bom homem, deixava a natureza seguir seu curso e pouco aparecia para ver o que ocorria.

O cão era gentil com as fofinhas, mas muito feroz com os outros animais que poderiam colocá-las em risco. Era tão vigilante e bravio que aquelas pequenas ovelhas inocentes jamais viram o perigo de perto. Quando ele farejava o perigo à distância, deixava o rebanho e corria até ele eliminando a ameaça. Tanta eficiência fizera com que elas o odiassem. Odiassem?! Sim, odiassem. Pois, desconheciam o perigo verdadeiro e achavam que ele era excessivamente zeloso. Era um verdadeiro tirano que não as deixava passear o quanto desejavam e nem serem realmente livres. 

Assim, corria a vida tranquila neste lugar tranquilo quase idílico, não fosse um campo. Quando reclamavam do exagero de cuidado, logo o cão avisava: Vocês têm de tomar cuidado com o lobo! Ele devora ovelhinhas tolas! Elas se riam do aviso e replicavam: Ora, essa, lobos não existem! Nunca vimos nenhum! Isso é estória para ninar carneirinhos!

Mas eis que um dia, após ouvirem a briga ferocíssima do cão com algum animal escondido em meio à mata, as ovelhas notaram a sua demora em voltar para junto delas. Não sabiam muito bem como voltar para o abrigo, pois ele sempre as guiava. Escureceu, e nada do velho cão aparecer. Ouviram estranhos uivos a noite. Não ficaram amedrontadas, pois desconheciam o medo, apenas receosas e aborrecidas com a demora do vigia.

No dia seguinte, logo cedo, eis que um cão saiu da mata em direção ao rebanho. Vinha lento e tranquilo, um pouco cabisbaixo. As ovelhas estranharam, pois ele não era em nada parecido com o cão pastor, mas era evidentemente um cão. Maria Olinda, uma ovelhinha sapeca, foi logo perguntando: Você veio da mata, viu por lá o nosso cão pastor?

O outro fez um ar ainda mais triste, se bem que meio debochado: Vi sim! - Fez uma pausa e acrescentou: Infelizmente tenho de informá~las que ele morreu!

Houve um grande "Oh!" coletivo, murmúrios entristecidos e uma ou outra ingrata dizendo: benfeito.
     - Mas o que ocorreu com ele? - perguntou Maria Olinda.
     - Morreu na luta contra um grupo de lobos! - informou.   
     - Que absurdo! gargalhavam as ovelhinhas. Ele fugiu e abandonou o emprego! Todas sabem que lobos não existem!
      - Lobos não existem? -  perguntou o cão estupefacto.
      - Claro que não - responderam - como poderia existir alguém que come ovelhas, galinhas e outros bichos?! Isso é um absurdo. Tal coisa não existe!
      - Hummmm - fez o cão - Verdade, como vocês são espertas! Como nunca pensei nisso! Lobos cruéis, sanguinários, ferozes e que comem ovelhas não existem. É tudo folclore!
      Maria Ofélia, amiga de Maria Olinda, já veio logo colocando a questão do dia: Bem, se o cão está morto, precisamos de um outro para nos levar de volta para o abrigo.

Um burburinho se estabeleceu em meio ao rebanho. E, logo algumas diziam que o cão que aparecera deveria ser o seu novo pastor, enquanto outras não tinham certeza se ele era confiável. O cão, diante de tamanha honra, fingiu modéstia e lhes garantiu que era boa gente. Mas, que iria chamar mais um cão para que elas pudessem escolher justamente, assim não pareceria que estava se aproveitando da situação. Todas aceitaram a idéia imediatamente.

Não demorou muito tempo e ele voltava da mata trazendo um segundo cão ainda maior e com um jeito muito mais feroz do que o dele. Foi apresentado como o candidato mais feroz, mais forte e bravio e o outro como o moderado, porém veloz. Lupino, o primeiro cão e Lupércio o segundo, estes eram os nomes dos candidatos.

As ovelhas muito discutiram entre si, pois ouviram atentamente o discurso realizado pelos dois candidatos. Ah, sim, eles discursaram, e como discursaram. Começaram educadamente se elogiando e terminaram cada um acusando o outro de ser um "lobo". Claro, sabemos que lobos não existem. Como elas pensavam que precisavam de muita proteção, acabaram por eleger Lupércio, o maior, o mais forte e mais feroz. Só de olhar para ele dava medo. Assim estariam garantidas contra todos os perigos. Ele mal acreditou que havia ganho a eleição, e foi logo mostrando verdadeira camaradagem, convidou Lupino para ser seu o seu vice. O rebanho ficou exultante. Haviam se livrado de um velho cão chato e rabugento e encontrado um cãozarrão, que além de tudo era afável e diplomático.

Logo, elas foram guiadas de volta para o abrigo. Estranhamente, ambos sabiam onde ele ficava, e até mesmo como se abria e fechava a porteira. Os dias se passavam, com os dois cães guiando o rebanho, tudo parecia bem e tranquilo no lugar. Agora, havia uma inovação. Qualquer ovelha podia se aventurar pela mata o quanto quisesse. Ela também poderia dormir fora se assim o desejasse. Uma, duas, três ou mais ovelhas se aventuraram na nova modalidade de pastagem. A primeira voltou satisfeita, a segunda também. No entanto, nem a terceira, nem a quarta, e quem dirá a quinta voltaram. Não importara o quanto Lupino buscou por elas em todos os lugares, nada encontrou. Chegava desanimado, e meio desiludido dizia: Ingratas, nos abandonaram! Não sabem aproveitar a liberdade. Quando menos esperarmos voltarão arrependidas!

O rebanho achava tudo muito natural, e ainda criticava as desaparecidas. Com o passar do tempo e outras tantas ovelhas desaparecendo misteriosamente, Lupércio e Lupino, decidiram que para a segurança do rebanho ninguém mais sairia do abrigo, exceto com autorização especial e escolta. A ordem foi prontamente aceita, pois temiam pelo o que podia acontecer por causa dos perigos do mundo e pelo excesso de liberdade.

Dias e noites sem fim se passaram. Um tédio mortal abatia as ovelhinhas do rebanho. Inutilmente pediam para sair,os cães não deixavam mais. E quando menos esperavam, foram surpreendidas por uma novidade triste. Lupino foi quem explicou: Faz muito tempo que não comemos! Vocês ovelhas comem grama folhas e frutos, mas nós cães, comemos carne. O fazendeiro não aparece para nos alimentar e nós não podemos deixá-las por que senão correm perigo. Sendo assim, pedimos que sejam generosas e que uma de vocês se sacrifique para que possamos nos alimentar. E como pode demorar para que alguém apareça, precisaremos de uma por dia.

As ovelhas todas reunidas. Ficaram furiosas, chocadas. E diziam sobre o absurdo que era isso. Que elas deveriam mandar os dois embora. Que deveriam sair e serem livres. E tanto conversaram e discutiram que Maria Olinda e Maria Ofélia acabaram por sugerir o impensável: Sejamos honestas. Se sairmos não voltaremos. Melhor perdermos algumas do que todo o rebanho!   Muito protesto, muita zueira de ovelha assustada e ofendida, até que uma delas perguntou: Mas, quem de nós se sacrificaria? 

Maria Ofélia, não se fez de rogada e foi logo explicando: O Bem de muitos prevalece sobre o bem de poucos. Logo, a maioria das ovelhas são brancas, as minorias devem ser sacrificadas pelo bem de todas. Afinal somos todas ovelhas e irmãs, mas aproveitemos essa hora difícil para fazer uma reforma necessária no rebanho.

Maria Olinda sugeriu a escala, primeiro as ovelhas negras seriam sacrificadas, pois eram muito poucas, depois as marrons, depois as malhadas, e enfim, quando todas as minorias tivessem se sacrificado, com certeza o dono da fazenda já teria voltado para alimentar os cães. As escolhas não aconteceram sem atritos. Entretanto, apareceu uma ovelhinha branca para explicar coisas sobre a vida depois da morte, sobre o grande pasto celestial, e que quem se sacrifica por seus irmãos será salvo do fogo do inferno onde há muitos lobos ferozes e canibais. Estabeleceu-se um verdadeiro culto do martírio, muito rapidamente havia até ovelhas brancas perguntando: Por que não eu?! Por que não eu?! Claro, era uma pergunta meio retórica.

Informaram então aos cães que aceitavam as condições, mas que os sacrifícios deveriam ser feitos de forma reservada, durante a noite, para que não houvessem traumas e sustos. Deveriam ser muito silenciosos e discretos. Os dois aceitaram as condições, pois afinal, numa coisa eram honestos, estavam com fome.

Os dias passavam tranquilos, continuavam dentro do abrigo com receio do mundo lá fora. E fingiam não ver as irmãzinhas que desapareciam toda noite. Achavam melhor não tocarem no assunto, afinal todas sabiam o que acontecia. Ficaram conformadas por um bom tempo, no entanto, começaram a se impacientar com a demora do fazendeiro. Criticavam-no. E diziam que sempre fora um relaxado, não bastava o cachorro velho que não tinha servido de nada, agora deixava os pobres cães passando fome. Assim, sumiram as pretinhas, as marronzinhas e por fim as pintadinhas. O céu das ovelhas estava começando a ficar congestionado. 

Aí, sem nenhum  aviso, desapareceu uma branquinha, e depois outra. Maria Olinda e Maria Ofélia ficaram com muito medo, afinal, isto não fora o combinado e agora qualquer uma delas poderia ser devorada. Assim, meio com medo, meio com coragem, foram até Lupércio e Lupino e reclamaram: O acordo não está sendo cumprido!

Eles responderam: Mas, continuamos com fome!
- O combinado era que comeriam apenas a minoria! protestaram.

Lupércio, babando de ferocidade, respondeu-lhes a mais pura verdade: Não combinamos nada. Vocês que ofereceram as outras para comermos em troca de que ficassem por último. Então, agora é a vez de vocês!

Maria Olinda e Maria Ofélia, convocaram todo o rebanho, que ficou em formação fechada diante dos dois cães, e Olinda ordenou: O mandato de vocês dois acabou! Podem ir embora agora! Daqui por diante nós cuidaremos de nós mesmas! 

E Ofélia completou: Fora daqui seus dois carniceiros!

Parecia uma verdadeira revolução! Os dois cães, diante daquela reação. Primeiro ficaram mudos, depois gargalharam. E Lupino fez a terrível observação: Olhem à sua volta, estão todas presas! Comeremos quem bem desejarmos!

Ouviu-se um "Oh!" coletivo. E uma pequena ovelhinha espantou-se: Comeremos? Mas, quem come ovelhas são lobos, vocês só precisavam de nossa carne por que o dono não chegava...

Lupércio, já salivando e não aguentando mais fingir, perguntou: Por que não acreditaram quando o cão falou que lobos existem?

Ofélia e Olinda responderam em uníssono: Ora, porque isso é algo horrível, impossível, absurdo, é lógico que tais criaturas não existem!

E diante da verdade que não queria ser aceita, mesmo com todas as evidências, Lupino, afirmou: Existem sim, e se parecem muito com cães pastores...

A alcatéia que estava fora do abrigo e há muito vinha se alimentando das suculentas ovelhas se atirou para dentro do aprisco, e ocorreu uma verdadeira carnificina. Todas foram devoradas, mas não sem antes Ofélia dizer para Olinda: É por não ter acreditado na existência de lobos que os escolhemos para nos governar.

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