A morte e a morte. Diante dos fenômenos cotidianos de como se morre é
difícil buscar uma forma adequada de emoção diante do morrer.
O doente está numa UTI, resguardado pelas inúmeras máquinas e técnicas
hospitalares, no entanto, a tecnologia isso não arranca nossa angustia e
desesperação diante dos entes queridos que partem. Aceitamos a civilização
moderna, e as suas regras esdrúxulas que limitam a visitação ao doente...
Todavia, ficamos angustiados e desejando participar, e estar cotidianamente ao
seu lado. Nos informam que não podemos, e isso causa ainda mais angústia.
Depois nos
informam que morreu.
Mas a morte, que primeiro nos habita o imaginário, nada tem de
imaginação, é real. O corpo do morto pesa, nós o tocamos e constatamos a
ausência de vida. O Olhar não contém mais nada da pessoa que conhecemos. As
várias possibilidades musculares que antes o ajudavam a demonstrar que se tratava
de uma individualidade, desaparecem. E ao olharmos o corpo ele é apenas isso,
corpo; corpo morto.
Um corpo morto que tem peso. E
acho que o peso do corpo morto é do que mais nos lembramos nestas
circunstancias, pois ele nos pesa duplamente, ao carrega-lo e ao saber que
antes ele mesmo o fazia. Agora temos consciência do seu peso.
É uma sensação e emoção
trágicas, pois ao vislumbrar o corpo morto não reconhecemos mais quem ele foi
em vida. O rosto está lá. No entanto, sem nenhuma das expressões que antes reconhecíamos.
A pessoa, seja lá quem for, não é mais. Carregámo-la até o túmulo sem acreditar
que ela seja realmente ela. Pois tudo o que dela conhecemos não era esta face
gélida e sem expressão. Não encontramos em sua face nem o amor, nem o ódio, nem
nenhuma expressão por nós conhecida no cotidiano, pois até mesmo dormindo o defunto
se expressava de outra maneira.
No mistério da morte está
embutido o mistério da vida. O morto não é mais quem parecia ser em vida. Por
isso o enterramos de certa forma tranquilos, pois aquilo que ali está, nunca
esteve conosco antes. Reconhecemos pelos traços físicos que se trata da pessoa
antes amada e querida. No entanto, Aquilo que a animava desapareceu. E logo percebemos
que era apenas isto que nos interessava. Aquilo que a animava. A sua história,
os seus sentimentos e emoções. No entanto, eles se desvaneceram como se nunca
ali antes tivessem estado. Choramos e sofremos diante de um corpo morto que
nunca significou nada para nós, é diante dele que a perda se torna óbvia.
Sabemos que é o corpo de quem amamos, mas quem amamos já não está mais lá.
Mas jamais conhecemos algo
diferente daquele corpo. Ele era a pessoa que conhecíamos, mas ele não se
identifica com ela exceto pelos traços físicos. Talvez seja por isso que seja tão
difícil crer na morte dos que amamos. Eles vivem em nossa imaginação cotidiana,
e quando morrem fisicamente, nela permanecem vivos. Por isso não os
reconhecemos.
Então é seguro pensar que todos
os que morrem continuam vivos em nossa imaginação?! Talvez seja.
Não sei para onde essa
personalidade vai, ou se simplesmente desaparece com as funções vitais, só sei
que tocando, sentindo o corpo morto, tudo o que eu aprendi a amar já não está
mais lá; e aquele corpo é estranho para mim por mais que eu o reconheça.
É no cotidiano, através da
ausência daquela personalidade que constatamos a sua morte. Se ela tivesse dez corpos
e os dez enterrássemos, ainda assim seria apenas pela sua ausência que teríamos
de nos conformar com a sua morte.
E como nos comportarmos diante
de algo tão natural que alcança o sobrenatural? Infelizmente, apenas repetindo
o que fizeram aqueles que vieram antes de nós, mantendo-nos vivos, seguindo o
caminho que antes ora seguíamos. Sei que não é consolo o bastante e nem
suficiente. No entanto, diante da morte sempre me perguntei: “Como é que fulano
– que partiu – reagiu a outras partidas?” E a resposta sempre foi a mesma,
seguiu, viveu e aceitou a ausência.
Por que a morte não é um corpo e
nem a falta de vida, é a ausência da personalidade que antes participava do
nosso cotidiano, de nossa vida. É isso que devemos aceitar, até que nós mesmos sejamos
parte desta ausência.
Há vários anos um conhecido
morreu sem me avisar. Hábito bastante comum. No entanto, eu mal o via no dia a
dia, e sempre o encontrava “por aí” nessa imensa metrópole, então, como não
podia conceber a sua morte, concebi o desencontro. Ao invés de encontra-lo “por
aí” eu apenas aceitaria o fato de que nos “desencontraríamos” até que pudéssemos
novamente nos encontrar. Parco recurso, iníquo consolo, no entanto, melhor do
que o nada.
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