Há muito tempo atrás inspirado por
um rompante romântico num poema escrevi:
“Como é que se diz para a Luz que
ela ilumina?
Ela não sabe que ilumina,
exatamente por ser luz...
Como se diz que a sua simples
presença
desvela toda a beleza?
Como se diz que sem ela as cores
não podem ser vistas?
que os nuances não existiriam....
Que tudo o que se faz....sem sua
presença jamais existiria?
Como se diz para a Luz
que ela ilumina...se por ser luz
ela desconhece as trevas...”
A
poesia tem essa capacidade de desvelar e revelar algumas verdades eternas e
cuja reflexão nos toma pelas mãos e instaura possibilidades e realidades.
Algumas frases são metáforas, são sugestivas muito mais que afirmativas, não
querem ser tomadas por verdades, querem apenas sugeri-las.
Hoje,
enquanto eu atravessava uma catraca do Metrô este poema, décadas depois, voltou-me
a mente.
Entre
instalar o bilhete na leitora e cruzá-la, meu olhar se deparou com um lindo
garoto. Este tempo ínfimo se estendeu até ao infinito, pois tudo o que fiz
antes e depois passou muito mais rapidamente do que o simples instante que se
gasta para cruzar distraidamente uma catraca de metrô. Era um jovem cuja idade
aparente poderia variar entre 18 e 22 anos. Não o descreverei, pois quando o
belo se instaura e se faz presente ele é absolutamente encantador e arranca de
nós as palavras e nos surpreende colocando-nos estáticos perante o sublime. Mas
o meu Belo, não é o seu belo e o que provoca em mim a sensação do sublime não
provoca em você, principalmente no que diz respeito às estases cotidianas.
Então apelo para a sua imaginação, faça vir diante de si a pura imagem da
beleza que lhe toca, e pronto.
Após
essa aparição terna, confortadora e sobrenatural, que seus olhos acompanhem o corpo
do jovem. Ele está parado, numa atitude frágil e tímida, você o olha todo,
acompanha-o pela mão e então, percebe uma haste metálica de alumínio... E
reconhece, a bengala dos cegos.
A única coisa que pude pensar
naquele instante, foi “Meu Deus, ele é tão lindo, mas não pode se ver...”
A nossa mente costuma trabalhar de
pressa, agora imaginem se o tempo estendeu-se como foi o meu caso.
Imediatamente, diante da minha própria perplexidade, fui logo me corrigindo: “Que
coisa feia... Você agora o colocou à parte por que é cego...” mas em seguida,
antes que este pensamento triste parecesse verdade, já me vi me apaixonando
pelo garoto e lhe dizendo o quanto ele era belo e que a primeira coisa que eu
vira nele era a beleza ( Isto para não citar Sócrates, no Banquete, de Platão).
Mas foi aí, exatamente aí que a minha perplexidade se tornou madura. Como é
para alguém nesta condição, belo e deficiente visual, ouvir que o que nele me
atraiu foi aquilo que ele desconhece e não pode ver?
Foi então que meu antigo poema
voltou-me à mente, pois parecia se casar completamente com a situação. No
entanto, vivendo neste tempo expandido, onde ainda me mantenho cruzando aquela
catraca de metrô, sem retirar dos olhos a imagem do paradoxo narcisístico,
percebo que a imagem da luz que ilumina, mas que desconhece o fato de ser luz e
que ilumina, é verdadeira mas limitada. Necessito encontrar outras imagens para
fazer brotar estes nuances de verdade que ora me escapam.
Vamos destruir a metáfora. A Luz
desconhece que ilumina exatamente por ser luz. Então não há nada há se dizer
para ela, pois ela também desconhece geografia, física, matemática, música e como
fazer ovo frito de gema mole (o que é uma arte masculina). Continua verdadeira
enquanto metáfora, continua poética e continua possibilitando reflexões. No
entanto, aquele garoto lá, deve ouvir várias vezes o quanto ele é belo. E muitas
pessoas devem se aproximar dele por este motivo. E se aliarmos a sua condição
de beleza com a deficiência visual, ele ainda parece muito mais digno de nossa
atenção do que qualquer outro deficiente visual. E não, não me achem horrível,
só estou dizendo o que as pessoas sentem mas não falam. O fato é que a beleza –
a que imaginamos e vemos – nos toca. E diferentemente da luz, ele é capaz de
instaurar uma reflexão sobre si.
Na vida todos tivemos relações nas
quais algumas pessoas se envolviam ou se apaixonavam por aspectos nossos as
vezes até desconhecidos, ignorados ou menosprezados por nós mesmos. Então, este
rapazinho chamou minha atenção. Não apenas por todos os significados
filosófico-sociais e existenciais que ele carregará consigo até deixar de ser
belo, mas por que eu me coloquei no lugar dele e fiquei imaginando: como é
aceitar o amor de alguém que ama aquilo de você, que você não reconhece por que
desconhece? E, mais: não virá a conhecer, pois te falta uma faculdade orgânica sem
a qual a sua alma não será informada daquilo que é uma evidente verdade, você é
Belo.
Na vida somos cercados por muitas
insatisfações, e com certeza – contemporaneamente – a beleza é a mais
corriqueira. Podemos nos sentir ou não nos sentirmos belos. Mas há alguns
padrões sociais e culturais de mais belo e menos belo. E, por ser alguém que possui
espelhos por toda a casa - entendam como quiserem - tive muita compaixão por
aquele jovem, que não saberá o que significa atrair as pessoas por sua
aparência – pois atrairá -, mesmo que o digam ele não poderá avaliar o que é;
saber-se amado por algo que não se sabe o que é. Poder ter a maior segurança da
contemporaneidade, olhar-se no espelho e sentir-se bem dizendo a si mesmo: “Aí,
garoto, vai lá! Arrasa!” Nem adianta me dizerem que isto é uma bengala
psicológica, por que é. Mas o que me emocionou no garoto que não é imagem, apesar
de eu assim tê-lo traduzido, foi a dor deste simples fato. Diante da sua
condição, ele não terá nem a gratuidade de Narciso para contemplar em si o que
há de Belo.
Claro que alguns logo começarão a
querer me corrigir. Dizendo que há outras formas de beleza, outras formas de
gratificação, blá blá blá. Porém, estou falando desta.
Agora, voltando à reflexão inicial.
O garoto é a luz que ilumina (beleza), para a qual podemos dizer da sua função
e utilidade, que não obstante não poderá ter consciência completa do que isso
significa, e por conseguinte, nem a satisfação de ser o que se é. Pois cada vez
que disserem: Como você é Belo, ele poderá sempre responder: Não sei, eu não
posso ver. E aquilo que nele nos encanta, pode ser aquilo que mais o machuca e
o lembra e relembra da sua condição. A dor dessa luz é conhecer as trevas. Ufa,
demorei, mas cheguei ao que me doeu. Agora já posso deixá-lo onde encontrei, e
tornar-me um pouco diferente por tê-lo encontrado. Obrigado belo garoto por me
instruir mais na condição humana.
(Tenho certeza de que este meu
objeto de reflexão possui amigos, prazeres e outras formas de gratificação, e
que por ser humano, mesmo desconhecendo a natureza da sua aparência ele também
dela se beneficia).
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