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Relações autoritárias - Parte I

Há muitos anos atrás, quando eu era um estudante de História, ouvi dizer que o Brasil era um país autoritário, que o brasileiro era um povo muito autoritário, e que isso se devia à nossa triste tradição escravocrata. Naquela época, fui contra, pois para todos os lados que eu olhava não via nada disso. O “brasileiro” - este conceito estranho que envolve milhões de pessoas num país de dimensões continentais, parece-me mais do que um atributo de identidade nacional um artifício de linguagem para dizer “nós”-, parecia-me tudo, menos autoritário.

Fui criado com as idéias de que “nós” somos cordiais, afáveis, gentis, alegres, festivos, sorridentes, persistentes, fortes e batalhadores. Alguma coisa disso devemos ser... Então, onde é que estava o tal do autoritarismo? Provavelmente nos primeiros quatrocentos anos de História do Brasil. Porém, quatrocentos anos são quatrocentos anos. Uma pequena população aprendeu a ser donos e donas de escravos. Escravos aprenderam a serem escravos (e também desaprenderam). Escravos libertos, assim que puderam adquiriram escravos para aumentarem sua renda e para adquirirem um outro status social.

As relações, simplificando um pouco, começavam assim: Dono de Engenho (ou Fazenda), os parentes pobres à volta, os agregados (mais pobres ainda), poucos empregados, e os escravos. Claro, autoridade também era o Padre. Essa escala social era bastante clara. E todos eram mandados, e todos mandavam no escravo. O que significava então ascender socialmente? Bem, a ascensão social não era apenas dinheiro (em geral terras), ela significava ter alguém sob comando, era o status de “Senhor”. Após muitas experiências, necessito concordar com meus antigos professores, essas relações de autoridade – e o sentimento de que se é “alguém” apenas quando se tem a submissão de outras pessoas – passaram efetivamente para a nossa cultura.

A contradição se estabelece: cordiais, amistosos, gentis, festivos, mas loucos por ter qualquer poder, qualquer autoridade. Claro está que a autoridade exercida no período colonial e pós-colonial, pouco tinha à ver com competências. Você tinha autoridade por que nasceu filho do fazendeiro, por que se tornou um padre e veio de uma família abastada, por que conseguiu comprar um escravo. E o escravo? Bem, ele era o escravo, e nem sempre tinha competência para fazer os trabalhos que era obrigado a fazer. Podemos até especular que durante quatrocentos anos, autoridade e competência não andaram juntas. Numa cultura secular, essas relações foram contaminando diversos níveis de nossa sociedade e de nossas relações. Então, quando olho à volta, vejo uma sede imensa de poder, poder para ter autoridade, autoridade sobre outras pessoas. Sem haver necessariamente competência...

Não sei exatamente quando meus olhos começaram enfim a ver essas relações de “autoridade” entre “nós”, talvez a melhor palavra seja mesmo autoritarismo, pois é uma autoridade infundada, é uma distorção do verdadeiro significado dessa palavra.

Essas relações “estranhas” se dão em diversos níveis, até chegam mesmo a assustar. Quando chegamos ao mercado de trabalho, onde deveriam contratar nossa competência e nosso tempo, normalmente nos vemos questionados sobre uma infinidade de quesitos que não são da alçada do empregador: como vivemos? Bebemos ou não? Como nos divertimos no final de semana? Com quem costumamos sair? Quem são nossos amigos? Nós os temos? Como nos vestimos? Por que não trabalhamos mais do que aquilo para o que fomos contratados? Isto é um pouco doido, por que de certa forma verificam as nossas condições para sermos bons escravos. Não desejam pontualidade, desejam que se chegue antes e se saia depois. Não desejam horas de trabalho pagas, desejam horas não pagas cedidas de boa vontade nos finais de semana. Se perceberem bem, verão que nada dessas coisas têm a ver com competência de qualquer espécie, exceto àquela, a de ser escravo.

Mas, isto não é uma acusação, é um lamento. Todos, de alguma maneira, já viveram situações onde pessoas, no trabalho ou na vida pública, foram escolhidos para uma função ou para um cargo. Imediatamente a nossa competência não é questionada, é a nossa capacidade de bem servir sem reclamar, sem dialogar, não importando as exigências. Estar predisposto a subserviência. Claro, se você está predisposto à subserviência, não é por que você queira, mas é porque lhe pagam um salário. Como o autoritarismo é praticamente norma, não reagimos, pois buscar outro patrão seria simplesmente mudar de “Senhor”. E aí, reagimos como aqueles escravos, que adentraram a sociedade colonial, assim que “libertos” – quando recebemos poder sobre algo - ganhamos nosso quinhão de autoridade, e passamos a nos sentir alguém...

Não farei nenhuma discriminação social, no entanto, não deixarei de fazer registros do que vejo. Porteiros de prédios. Sua função? Várias, mas fiquemos na básica, abrir e fechar o portão de entrada. Vigiar para que entre quem pode e saia quem deve. Mas vivemos, vez por outra, com porteiros carrancudos, que especulam sobre nossa vida, que julgam nossos passos, que sorriem de forma maliciosa, ou que são gentis e amigos, desde que não retruquemos a sua autoridade. Se retrucamos de qualquer forma, até mesmo nossas correspondências começam a desaparecer misteriosamente...

Porteiros-seguranças, então, são um caso à parte. Vestidos de terno, para ampliar a seriedade da sua atuação. Terno é coisa importante, executivos usam terno, profissionais gabaritados usam terno, alguns garçons também, e seguranças usam ternos. Quando olhamos, a diferença é que o corpo dos seguranças costuma ficar mais atraente de terno do que os dos executivos. Mas, terno para mim é pano, de uma bela forma, mas pano. Lembro-me de vários incidentes com porteiros e seguranças, mas um é delicioso. Uma colega de trabalho saiu do prédio da Universidade para fumar (por causa das relações sociais autoritárias), eu a acompanhei, no entanto, ela havia esquecido no interior do prédio o seu crachá funcional (coisa que algumas pessoas usam no pescoço – símbolo de praticidade e submissão).

Ela que havia pedido para sair para um dos seguranças, quando desejou voltar não pôde, pois havia outro segurança lá, cujo terno e conformação física eram realmente dignos de nota. Ele lhe perguntou: “Onde está o seu crachá?” (com tom de voz de autoridade policial). Minha colega explicou rapidamente o que houve, e ele lhe respondeu de forma grosseira “infelizmente, eu não poderei deixa-la entrar, o lugar do chachá não é na bolsa, é no pescoço!”. Bem, minha colega, às vezes dá uns pitis, e ela deu. Mas, o que impressionou foi o fato de que aquela colega é uma mulher visivelmente marcada pela distinção social, praticamente uma lady, cujos traços característicos de refinamento se percebem facilmente. Claro, além dos óculos que asseguram uma outra autoridade: “fiquei cega de tanto ler”. Depois de muito bate-boca, eu assegurei ao funcionário, que ela era minha colega de trabalho - claro, mostrando meu crachá, sacado da carteira, pois jamais coloco nada no pescoço; isto não bastou, ele perguntou: “O Senhor se responsabiliza por ela?” Respondi afirmativamente, e ainda tirei uma com a cara dela: “olha, se não fosse eu você não entrava: comporte-se!”

Os protestos dela não eram ridículos, mas de alguma forma também resquícios de autoritarismo: “Eu, professora, doutora, funcionária, desta instituição! Barrada como uma qualquer sem eira nem beira... Quem ele pensa que é?” “Bem – respondi para ela-, o detentor de uma pequena autoridade”. Apenas tento narrar isto de forma imparcial.

Aqui não questiono a necessidade de haver um porteiro-segurança, mas a postura física, o tom ameaçador de voz, utilizado com uma mulher, magra, de tipo pequeno, frágil, e ainda mais madura que ele. Em outras palavras, uma óbvia ausência de ameaça. Enfim, a sua função lhe deu autoridade para manifestar todo o seu autoritarismo.

Lembro-me de um dos meus primeiros empregos, numa prefeitura municipal, onde cargos e funções têm pouco a ver com competência. Meu chefe, apesar de um bom homem, não tinha a menor vocação para a chefia ou para o trabalho que ele necessitava fazer. No entanto, ao ser nomeado, ele precisava fazer valer sua autoridade, e parecer fraco, necessitar de ajuda, parecia colocar o seu cargo em perigo. No entanto, nem sempre ocupamos cargos para os quais tenhamos a competência necessária. O pobre ficava perdido entre um monte de trabalho parado sobre a sua mesa, e como nosso trabalho dependia do dele, às vezes recebíamos ordens esquisitas. Quando pedíamos mais documentos, ele ordenava: “Sente-se na sua mesa e finja que está trabalhando”. Na primeira vez a voz foi serena e calma, depois, em todas as outras éramos tratados como uma estranha espécie de animais que tinham mania de serviço. Bem... Tudo seria fácil se ele simplesmente pedisse ajuda e dialogasse. Foi exonerado, mas até isso acontecer, anos se passaram. Muito trabalho deixou de ser feito, muitas competências foram questionadas, muita gente foi humilhada. E ele era um bom homem, apenas estava mergulhado numa cultura autoritária.

Essas relações não acontecem apenas nestas situações. Vemo-las nas relações amorosas. Maridos exercem autoritarismo sobre suas esposas, a ponto de espancá-las. Mulheres fazem o mesmo, a ponto de espancá-los (acreditem, até existe uma associação de maridos que apanham da mulher). Namorados, proíbem a namorada disso ou aquilo... Namoradas, fazem o mesmo. Pais, fazem sentir o peso de seu autoritarismo sobre filhos, sem ao menos explicarem o porquê. Crianças autoritárias humilham pais em público, mostrando ao mundo que eles não têm competência para a maternidade ou paternidade... E, depois de ver tanto autoritarismo e sermos vítimas e às vezes vitimadores, quando chegamos em casa, damos um chute no cachorro que vem nos abanando a cauda...

E pensar, que se simplesmente ouvíssemos calmamente o que o outro tem a dizer, ou disséssemos calmamente nossas necessidades, todas essas relações se dissolveriam em soluções... Não quero o cargo de ninguém e nem mesmo a função de ninguém... Não desejo nada que por natureza não seja meu e não venha a mim por mérito, mas estou sempre disposto a emprestar minha competência para ampliar a competência alheia, em todos os níveis. Um chefe melhor me faz um funcionário melhor. Um trabalho bem feito possibilita o sucesso de toda uma equipe, de toda uma instituição. Mas, não. Os que exercem cargos e funções são pressionados por outros e por outros e por outros, cada um exercendo o autoritarismo que lhe cabe. Eles apenas gritam: Faça! Ou te demito! E o grito vai descendo de cima para baixo até chegar no porteiro-segurança, que enfim, é o que corre menos perigo.

Não é apenas a cultura autoritária que nos faz assim, é o medo. O medo de falar, o medo de dialogar. Dialogar significa expor em bom tom de voz as suas idéias e necessidades e ouvir o que o outro tem a dizer sobre isso, e não gritar as suas frustrações. Por que o medo? Porque sabemos que estamos numa sociedade autoritária, e há bem poucas chances de sermos ouvidos.

Tudo seria um pouco mais agradável, se todos soubéssemos efetivamente de nossas competências, se não tivéssemos medo de admitir falhas e ignorâncias, se não tivéssemos medo de nos aliarmos ao outro para crescermos. Ninguém cresce sozinho e ninguém cai sozinho. Mas é muito mais fácil crescer fazendo todos crescerem juntos, trocando idéias, ventilando relações, sendo cordiais sem subserviência.

Não sei exatamente onde tudo isso começou, mas se conseguimos nos livrarmos da escravidão oficial, será que não conseguiríamos nos livrar da extra-oficial? Seria bom, não é? Sermos livres e beneficiarmos as pessoas com nossa liberdade.

Comentários

R. disse…
O tema desta discussão lembrou-me Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala sob o aspecto da cultura organizacional brasileira.

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