Mais uma vez ele estava esperando...aguardando..não saberia dizer quantas vezes ele faria isso ainda. Mas sim. Isto não era a melhor coisa do mundo. Olhar para as paredes e imaginá-las como se fossem longas muralhas de pedra de cidades antigas não o acalmavam. Mesmo assim era o que fazia. Por dentro das suas muralhas ele sentia-se oprimido. Enclausurado. Feito prisioneiro de si mesmo. Não saberia escalar aqueles altíssimos muros. Apenas olhava-os debaixo para cima sentindo-se completamente anulado por aquela fortaleza imensa construída por sua vontade. Do lado de fora multidões como se fossem uma vaga do mar, ameaçando fazer soçobrar aquelas pedras tão bem alinhadas. Mas tudo era inútil contra aquela inquebrantável barreira. Enfim, considerou que estava perdido em si mesmo, pois ninguém conseguia entrar e ele também não conseguia sair.
A sala, arrumada de forma simétrica mergulhava numa luz penumbrosa. Ele dizia ser sensível á luz, por certo o era. Talvez preferisse as trevas...talvez a luz não o cegasse afinal, talvez, apenas talvez lhe mostrasse coisas que ele não gostaria de ver e, continuamente a luz faz isso. Folhear um jornal sob a luz do abajour, ajeitar os óculos sobre o nariz e fazer ar de pensador para si mesmo, já não o agradava mais. Isso não incomoda um monte de gente, mas o incomodava. Envolvido pelos móveis escuros e marrons, sempre carregados da tétrica atmosfera dos anos sessenta. Desbotados de um luxo há muito perdido. Ele ignorava-se, ignorava-se...até perceber aos poucos toda a multidão, que antes batia para entrar, começar a penetrar por sobre o alto das muralhas...e imenso pavor passa a invadi-lo. Não fumava mais...então não teria a companhia das cinzas para enfrentar as dificuldades daquele momento.
Não poderia ver o bailado da fumaça diante de si...não poderia ver as formas de odaliscas viris que ela tomava...não poderia vê-la esvair-se e desta forma com a fumaça comparar toda a existência, não poderia, não poderia.
Mas sabia que a existência era essa fumaça, apenas não a aceitava. A luz amarela, cobrindo tudo...o surdo silêncio que ele cultivava agora, muito mais do que fizera no passado com a música que tanto o encantara...descia sobre todas as coisas como se fosse o pó daquela imensa cidade que cercava o seu apartamento. O andar alto já não o convidava mais para espiar pela janela. Evitava chegar até ela. Dizia da beleza da paisagem para todos que o visitavam, mas ele mesmo continuamente recusava-se a se aproximar. Tinha medo de que não resistisse à tentação do abismo, travestida na tentação da sua própria alma, e se atirasse enfim, sem medo de descobrir que não possuía asas em meio ao caminho do chão e sem a certeza de que iria alcançá-lo por mais que todos os prognósticos dissessem que isto era uma certeza. Ele lutava contra as certezas mais certas com uma tenacidade digna de elogio, porque o fazia ninguém sabia. Talvez ele tivesse depositado sua felicidade, todas as suas esperanças em impossíveis então seria bom acreditar no impossível, cultivá-lo, dourá-lo, fornecer-lhe cores novas a cada instante.
Eu o vejo calvo, e de meia idade, mas ele nem era calvo e nem tinha meia idade. Eu o vejo, a partir do ângulo da lâmpada do abajour, sua cabeça brilha, ele brilha, mas todo ele mergulhado em trevas, melancólicas como tudo o que devesse vir das mais obscuros profundezas infernais. Eu o vejo a partir da ponta do seu sapato, e ele todo é marrom e disforme, como um corpo oblongo, parado, estatelado diante da imensidão de sua própria grandeza. Como se dissesse: “Meu Deus! Fizeste-me tão imenso que não posso me mover. Mas como sou feliz pela imensidão que possuo e me possui.” Diante desta alto complacência nada pode ser dito.
No entanto, do meu privilegiado ângulo de visão, posso observar da ponta do pé para o teto das muralhas que enfim, ele precisava mover-se, pois as águas lentamente penetravam o recinto sagrado da sua sala. Essas águas renitentes não se importavam com as suas estantes fechadas por portas de vidro para que o pó não se acumulasse sobre os livros, não se incomodava com o tapete poeirento mas sem nenhuma mácula, pois migalhas jamais nele repousavam por tempo demais. Não, não se importavam com nada disso. Nem preocupavam-se com toda a luta que ele tivera para construir este local fortificado onde ninguém entrava ou saía. Não...elas teimavam em invadir seu pequeno mundo. Ele gostaria apenas de entender, por que as coisas do mundo lá fora teimavam em tentar destruir a sua vida. Mas essa compreensão era completamente alheia à sua existência.
Como esse enclausuramento ocorreu é que não se sabe. Difícil saber onde foi colocado o primeiro tijolo, onde foi retirada a primeira ponte, quais foram os primeiros caminhos adotados como desvios...difícil dizer por que em determinado momento ele começou a destruir os vestígios de sua caminhada para que ninguém mais o seguisse. Enfim, ele seguiu sozinho por onde nenhum dos seus antepassados tinham ousado chegar até então e teve de enfrentar a suprema angustia de saber que deveria sozinho descobrir o que fazer com aquelas coisas que tentavam destruir tudo o que ele sonhara.
A diferença entre as muralhas que ele construíra e as coisas que as submergiam é que “as coisas” eram de verdade, muito mais verdadeiras do que a lâmpada do abajour que iluminava a leitura do jornal. Uma coisa era certa: ele queimara os navios...agora não havia mais volta. Cada passo que desse na direção oposta à praia significava vida ou morte, cada passo que não desse significava o mesmo. Seria melhor então caminhar, pois o caminhar faria dele mais homem, mais humano, talvez menos bom, talvez menos generoso, talvez menos piedoso, mas ainda assim faria dele mais homem do que foram seus ancestrais.
Doía-lhe essa estranha solidão, a de olhar para os lados e ver as pessoas, mas saber que nenhuma delas estava apta ou sentia-se apta para lhe dar conselhos. Via as suas muralhas e conformava-se com elas, ora elas pareciam defesa, ora prisão, ora desespero, enfim...não sabia bem como sair de dentro delas, mas sabia que deveria superar essa condição para poder tornar-se aquilo que viria a ser.
A sala, arrumada de forma simétrica mergulhava numa luz penumbrosa. Ele dizia ser sensível á luz, por certo o era. Talvez preferisse as trevas...talvez a luz não o cegasse afinal, talvez, apenas talvez lhe mostrasse coisas que ele não gostaria de ver e, continuamente a luz faz isso. Folhear um jornal sob a luz do abajour, ajeitar os óculos sobre o nariz e fazer ar de pensador para si mesmo, já não o agradava mais. Isso não incomoda um monte de gente, mas o incomodava. Envolvido pelos móveis escuros e marrons, sempre carregados da tétrica atmosfera dos anos sessenta. Desbotados de um luxo há muito perdido. Ele ignorava-se, ignorava-se...até perceber aos poucos toda a multidão, que antes batia para entrar, começar a penetrar por sobre o alto das muralhas...e imenso pavor passa a invadi-lo. Não fumava mais...então não teria a companhia das cinzas para enfrentar as dificuldades daquele momento.
Não poderia ver o bailado da fumaça diante de si...não poderia ver as formas de odaliscas viris que ela tomava...não poderia vê-la esvair-se e desta forma com a fumaça comparar toda a existência, não poderia, não poderia.
Mas sabia que a existência era essa fumaça, apenas não a aceitava. A luz amarela, cobrindo tudo...o surdo silêncio que ele cultivava agora, muito mais do que fizera no passado com a música que tanto o encantara...descia sobre todas as coisas como se fosse o pó daquela imensa cidade que cercava o seu apartamento. O andar alto já não o convidava mais para espiar pela janela. Evitava chegar até ela. Dizia da beleza da paisagem para todos que o visitavam, mas ele mesmo continuamente recusava-se a se aproximar. Tinha medo de que não resistisse à tentação do abismo, travestida na tentação da sua própria alma, e se atirasse enfim, sem medo de descobrir que não possuía asas em meio ao caminho do chão e sem a certeza de que iria alcançá-lo por mais que todos os prognósticos dissessem que isto era uma certeza. Ele lutava contra as certezas mais certas com uma tenacidade digna de elogio, porque o fazia ninguém sabia. Talvez ele tivesse depositado sua felicidade, todas as suas esperanças em impossíveis então seria bom acreditar no impossível, cultivá-lo, dourá-lo, fornecer-lhe cores novas a cada instante.
Eu o vejo calvo, e de meia idade, mas ele nem era calvo e nem tinha meia idade. Eu o vejo, a partir do ângulo da lâmpada do abajour, sua cabeça brilha, ele brilha, mas todo ele mergulhado em trevas, melancólicas como tudo o que devesse vir das mais obscuros profundezas infernais. Eu o vejo a partir da ponta do seu sapato, e ele todo é marrom e disforme, como um corpo oblongo, parado, estatelado diante da imensidão de sua própria grandeza. Como se dissesse: “Meu Deus! Fizeste-me tão imenso que não posso me mover. Mas como sou feliz pela imensidão que possuo e me possui.” Diante desta alto complacência nada pode ser dito.
No entanto, do meu privilegiado ângulo de visão, posso observar da ponta do pé para o teto das muralhas que enfim, ele precisava mover-se, pois as águas lentamente penetravam o recinto sagrado da sua sala. Essas águas renitentes não se importavam com as suas estantes fechadas por portas de vidro para que o pó não se acumulasse sobre os livros, não se incomodava com o tapete poeirento mas sem nenhuma mácula, pois migalhas jamais nele repousavam por tempo demais. Não, não se importavam com nada disso. Nem preocupavam-se com toda a luta que ele tivera para construir este local fortificado onde ninguém entrava ou saía. Não...elas teimavam em invadir seu pequeno mundo. Ele gostaria apenas de entender, por que as coisas do mundo lá fora teimavam em tentar destruir a sua vida. Mas essa compreensão era completamente alheia à sua existência.
Como esse enclausuramento ocorreu é que não se sabe. Difícil saber onde foi colocado o primeiro tijolo, onde foi retirada a primeira ponte, quais foram os primeiros caminhos adotados como desvios...difícil dizer por que em determinado momento ele começou a destruir os vestígios de sua caminhada para que ninguém mais o seguisse. Enfim, ele seguiu sozinho por onde nenhum dos seus antepassados tinham ousado chegar até então e teve de enfrentar a suprema angustia de saber que deveria sozinho descobrir o que fazer com aquelas coisas que tentavam destruir tudo o que ele sonhara.
A diferença entre as muralhas que ele construíra e as coisas que as submergiam é que “as coisas” eram de verdade, muito mais verdadeiras do que a lâmpada do abajour que iluminava a leitura do jornal. Uma coisa era certa: ele queimara os navios...agora não havia mais volta. Cada passo que desse na direção oposta à praia significava vida ou morte, cada passo que não desse significava o mesmo. Seria melhor então caminhar, pois o caminhar faria dele mais homem, mais humano, talvez menos bom, talvez menos generoso, talvez menos piedoso, mas ainda assim faria dele mais homem do que foram seus ancestrais.
Doía-lhe essa estranha solidão, a de olhar para os lados e ver as pessoas, mas saber que nenhuma delas estava apta ou sentia-se apta para lhe dar conselhos. Via as suas muralhas e conformava-se com elas, ora elas pareciam defesa, ora prisão, ora desespero, enfim...não sabia bem como sair de dentro delas, mas sabia que deveria superar essa condição para poder tornar-se aquilo que viria a ser.
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