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Leiam "Bartleby, o Escrivão"!

          Há pouco tempo desabafei numa crônica que tinha “sede de ler um bom livro”, em minhas buscas semanais por algo interessante, chamou-me a atenção um livro pequeno, verde, costurado dos dois lados, logo, impossível de ser folheado. As letras da capa, que anunciavam o título do livro e o autor, bem como a tradução e o autor do posfácio, estavam impressas e escritas à maneira do século XIX. O inusitado projeto gráfico encheu-me os olhos imediatamente. Afinal, o que mais queria eu, ávido leitor, do que dar uma passeada no século XIX? Longe dos computadores, das páginas virtuais, dos e-books, e das novas tentativas da informatização de açambarcar o objeto livro?!

         O autor sempre me atraiu, mas confesso que ainda não havia lido essa obra. Herman Melville, muito conhecido entre nós por “Moby Dick” é um dos maiores escritores americanos. E este “uns dos maiores” não é um elogio que apenas li, eu o considero assim também. Sua reflexão humana antes e durante à caçada da baleia, são um monumento ao que há de melhor no tormento existencial. A escrita de Melville é um deleite, não consigo explicar exatamente o que atrai tanto, apenas a qualidade de sua escrita deve bastar.

         Aqui se juntaram duas condições poderosas e saborosas. Um grande escritor, com algo que nunca li e um projeto gráfico ousado que me remeteu ao século XIX. Após comprá-lo e esquecê-lo desavisadamente numa loja da Cavalera – sempre a Cavalera, meus prazeres interferem-se e são ciumentos uns dos outros – assim que o recuperei, aguardei um bom momento para lê-lo.

          Lutei contra as costuras na capa, mas não queria danificar o livro, então, pacientemente, com a ponta de uma faca, puxei ponto por ponto da linha que o fechava. Demorei fazendo isso, fui quase impaciente, mas este exercício – de pura ansiedade – preparou-me para o ato de leitura. Dentro do livro uma régua plástica, uma espécie de estilete, por quê? Porque todas as páginas foram impressas de forma que ficassem com o conteúdo encerrado ao olhar; um pouco aquilo que se fazia antigamente, a impressão em oitavo; assim, para ler tinha de pegar o estilete e separar página por página. O estilete plástico não era muito eficiente e prontamente peguei uma faca de refeição; claro, devorei o livro com faca e tudo, nem precisei de garfo.

          Não o devorei prontamente, apenas em duas sentadas, é um livro curto, o que é ótimo, pois se não eu morreria de ansiedade. A leitura é cativante e fulminante. Eu já havia passado anteriormente esta experiência física com um livro. Há muitos anos na adolescência fui tremendamente influenciado por um livro, “Eu, Cláudius, Imperador”, de Robert Graves. Amei tanto o livro que passei doze anos buscando a continuação, quem acabou por encontrá-la para mim foi um dono de um sebo, que a trouxe do Rio de Janeiro. Imaginem a expectativa... Doze anos. A edição era de 1953, mas, ó delícia, ela havia sido impressa em oitavo, e ainda não fora lida. Era como se aquele livro, antes mesmo de eu ter nascido, tivesse sido a mim destinado, e que naquele momento eu tomava o que era meu de direito. Cortando-o página por página, gastei quase um ano para lê-lo, pois desvirginá-lo era um prazer e um crime.

            A CosacNaify me deu este prazer novamente. Num mundo onde tudo é acessível, onde todas as pessoas que vão a uma livraria lêem de graça os livros, sentadas em confortáveis sofás; amassam revistas, dobram suas páginas, destroem os livros, e quando vamos comprar a obra ela já está um lixo, como não ficar deliciado com o egoísta prazer de pegar um livro que seria só meu?! Então o li assim, como uma criança que descobriu um doce, que parecia feito só para ela e não o dividi com ninguém... agora quem quiser ler eu empresto hehehhe, mas as páginas já foram cortadas uma a uma por mim.

           Nunca olhei na última página, ou na primeira para ver de quem era o projeto gráfico. No máximo verifiquei os créditos da ilustração quando esta me atraía. Mas, desta vez, tive a necessidade de saber quem teve tamanha audácia, e lá estava o nominho: Elaine Ramos. Obrigado, Elaine! O projeto teve a virtude de inverter toda a lógica pós-moderna. Num momento em que todos pensam nas facilidades da obtenção da informação, e quando todos têm acesso a ela de forma sem graça e rápida, Elaine nos obrigou a descosturar o livro, cortar as páginas, e a esperarmos ansiosos pelas palavras de Melville. E, este com sua narrativa saborosa, me obrigava a cortar cada vez mais avidamente cada uma das páginas. Em vão tentei poupar as páginas fechadas para um outro momento de prazer, em vão. Não resisti, li tudo.

           Não sei qual será o futuro do objeto livro, mas achei fantástico que alguém tenha conseguido recolocá-lo em seu lugar. Essa experiência conjunta do objeto livro, da forma como foi elaborado, aliado ao prazer de ler um grande escritor, me devolveu o prazer do ritual de ler um livro. Tive de sentar-me a uma mesa; deixá-lo repousado sobre ela, cortar as páginas, pensar como faria para fumar meu cigarro antes de repetir aqueles gestos. O projeto gráfico me obrigou a ter tempo para ler este livro, e dar tempo para que ele se realizasse plenamente enquanto leitura. Prazeroso processo ritualístico.

           Parabéns a Elaine Ramos, à CosacNaify por ter acreditado na idéia. Ah!!! Parabéns também pela tradução de Irene Hirsch, se pude ler tão bem Melville foi graças ao seu delicado trabalho. Sem mais delongas: Leiam “Bartleby, o Escrivão”!

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