Pular para o conteúdo principal

Cidade Viva

Homenagem a Campinas

Um raio de sol desceu sobre mim...iluminou o meu quarto e, transato, percorri minha pele com os dedos tocando-o, como se a luz pudesse concretizar-se em meu corpo, em meu desejo. E nesse dia eu sai pelas ruas da cidade. A mesma cidade que sempre pareceu-me cheia de equívocos e cuja forma surgia-me no mais das vezes como um filme noir , de onde o preto e o branco se fazem colorido, pintou-se de outras cores.
Vi os sorrisos das pessoas, os guardas cumprimentando-se...enquanto furtivos olhares devoravam seus cacetetes...As lobas, mais peruas do que nunca, uivavam pelas avenidas e, pela primeira vez, as luzes dos semáforos não significavam: pare, perigo, ande, eram como uma festa de cores que faziam questão de piscarem felizes somente para meus olhos.
Aquelas vozes de motoristas gritando, longe de parecerem os xingamentos que deviam ser soavam Pavarotti e Plácido Domingo e as moças menos avisadas transformavam-se todas em Maria Callas transvestidas de um olhar trágico acompanhado de uma formosa dignidade.
O Palácio dos Azulejos reverberava de luminosidade, mesmo estando sombreado pelos escombros do prédio dos Correios, e seus azulejos, cantando, davam-me Bons Dias! Nunca havia percebido suas florezinhas azuis ou o seu branco secular. E aquelas estátuas de adobe a encimar sua fachada jamais pareceram tão graciosas, sorriam-me e eu, sem embargo, deliciava-me com os cumprimentos subjetivos da cidade. Esqueci das estórias dos negros escravos ali acorrentados e que sofriam em dias de labuta, lembrei-me somente de seu canto alegre nas noites em que lhes permitiam divertimento. Surpreendi na fachada o rosto de uma donzela, jovem e possivelmente virgem, sorrindo-me com um vestido de outrora...E na porta do Palácio não havia uma inscrição da SANASA. Deixou de ser um monumento histórico, estava vivo, vivo como tudo o que quizesse ser.
Nas ruas não havia lixo... apenas papéis e latas multicoloridos dançando prá lá e prá cá... quem pode recriminar os passantes por ajudarem cotidianamente neste espetáculo? Os mendigos e as crianças estavam excepcionalmente bem humorados e chegavam até mesmo a rirem de sua suposta fome...Afinal, desconheço mendigos magros e as nossas crianças de rua em nada assemelham-se às da Nigéria.
Às vezes meu olhar perdia-se na altura dos edifícios e nenhum deles parecia-me construção humana, tudo era obra de Deus e a estranha disputa que havia entre eles, para saber qual chegava mais alto, não era ambição humana: apenas encarnação de um puro desejo de estarem mais próximos do criador. O sol, que não é raro nesta cidade, refletia-se por todas as vidraças e diialogava intimamente com os painéis eletrônicos e, sinceramente, nem sei quem fazia mais bela propaganda.
Não tive desejos de matar os pombos do Largo do Rosário, queria, antes disso, roubar-lhes as asas, para poder assitir todo esse espetáculo lá do alto. E se minha loucura tivesse se realizado veria a todos de cima: o Palácio da Justiça, com seu telhado antigo e alquebrado, as àrvores nunca percebidas... os engraxates perdidos em seu ofício, lá embaixo... Veria as avenidas da cidade como veias, artérias de um grande corpo e todo o seu fluxo de carros como glóbulos vermelhos trafegando pelas vias de um destino maior.
E, assim, de asas roubadas eu desceria diante da deslocada estátua de Carlos Gomes e ficaria lá dialogando com ele: “Quem sabe...” E em meio ao seu bigode sorriso chegariamos finalmente à conclusão histórica “ fui bom ou mediocre” e diante dele com certeza eu não poderia mentir: bom... muito bom...E toda a sinfônica de Campinas, abrigada no prédio do Jockey Club salmodiaria este lindo dia com a Abertura da Páscoa Russa de um Tal Rimsky Korsakov.
Tudo isso por que um raio de sol insidiu oblíquo e perfeito sobre a minha pele, e nem sei se era manhã, e nem sei...Toda essa mágica fez-se deste simples fato eu não sabia, eu não pensava... apenas a vida expressava-se diante dos meus olhos e toda ela borbulhava tal qual uma fonte bregamente luminosa.
Continuei caminhando, palmilhando os paralelepípedos, como se não fossem escolhos afinal, como se não escorregássemos neles em dias de chuva e como se tivesse eu uma carruagem antiga e passeasse pela Barão de Jaguara com a Marquesa de Campinas...E como se ela não fosse uma mulher ríspida e malvada , nesse dia , sentamo-nos no Jardim, da antiga feira Hippie e ouvimos da Rádio Morena, o mulato jazz de Sarah Vaughan, Billy Holliday e Dinah Washington. E aqueles rapazes que passavam olhando-nos de forma estranha não eram viados, não eram excluídos da sociedade, não procuravam sexo, apenas deleitavam-se em nossa plácida tranqüilidade.
Eu e a Marquesa de Campinas, amante e imaginação, saíriamos dali, para que lhe apresentasse no começo da Glicério o Redondo, tal qual falo erguido no anseio magistral daquela avenida. Talvez o pânico desta comparação seja o fato de que não criaram ainda camisinha para tão grande disseminador de idéias...Deixaria a Marquesa ali no Pátio dos Leôes da Pucc e ela sem medo de ser devorada, pois não era mais virgem afinal, acariciaria as suas imensas jubas, deitando olhares lascívos e pródigos de desejo para os estudantes...
Tudo por que um raio de sol insidiu oblíquo em minha pele e me avisou que estou vivo. E tudo o que está vivo, mesmo sofrendo de morte aparente, vive comigo fluindo pelas ruas da cidade. Sei que o sol, desde Akhenaton, brilha para todos...mas, quem como eu pode vangloriar-se de ter tido a pele tocada por seu dedo? Sei que agora possuo a cumplicidade de todos aqueles que um dia acordaram de si mesmos assim... tocados...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os homens, afetos e desejo - A história não contada. Contexto e lugar de partida - I

O inferno angustiante do desejo Hoje quero refletir sobre um assunto do qual eu deveria saber muito, mas confesso que quanto mais aprendo, menos sei e muito menos acredito. E infelizmente não estou sendo modesto e nem socrático. Quero abordar o tema a partir do ponto de vista de alguém que viveu em outra época e que nela tinha medos, necessidades e expectativas e principalmente, tinha um futuro pela frente com o qual sonhava, mas não sabia o que seria deste tempo. Assim que eu disser a palavra, as pessoas irão abandonar a leitura, imaginando que “lá vem mais um falar do mesmo...” Confie em mim e apenas continue lendo, hoje irei falar sobre as necessidades, emoções, expectativas, vitorias e frustrações dos homens que gostam de homens.   Se não usei o termo socialmente aceito é porque de alguma forma ele está carregado de ideias e informações nem sempre corretas ou interessantes. Pode ser que eu o use mais tarde, mas por ora não.             Acredito que neste texto falo, sobretudo,

Deus - I O Devorador

  Deus me seduzindo            Esse não é um texto para relembrar o passado, mas uma tentativa de descrever o que não pode ser descrito.  Vou meter-me a falar do que não sei. Talvez seja exatamente assim, conhecemos muito e desconhecemos muito mais aquilo que realmente é importante. É como mãe, amamos muito mas às vezes nos damos conta do quão pouco a conhecemos. Entretanto, Deus, como o conheço, foi definido magistralmente pelo poeta indiano Rabindranath Tagore: “Sou um poeta e meu Deus só pode ser um Deus de poetas”. Então, só quem vive profundamente o ser poeta consegue traduzir em si o que isto significa.             Por aproximação tentarei dizer um pouco sobre isso. Uma definição destas não aparece em nosso coração na infância ou na puberdade, surge apenas quando ocorre um amadurecimento íntimo, que não tem idade para ocorrer. Podemos ter uma epifania em algum momento, mas ela só se consolida ao longo do tempo através de outros momentos assim. É como um “dejavu” não tem importâ

Deus III - A sustentação essencial. O que é real? O que é realidade?

  Não dá para ilustrar este texto de forma adequada                 Há muito tempo atrás se alguém discutisse a realidade concreta das coisas e do cotidiano eu mandaria a pessoa “catar coquinhos”. Entretanto as experiências existenciais nos ensinam se permitimos. O tempo passou e tive vários aprendizados que considero importantes. Eles ajudaram a definir minha relação com o mundo e as pessoas. Nestas experiências, e vivências, passei a lidar com um real que é tênue. Perigosamente tênue. O risco de lidar com uma compreensão expandida do real e da realidade é perder o vínculo que torna as coisas entre nós inteligíveis e aceitáveis. Entretanto, não há nenhum caminho, místico ou não, que não passe pela discussão daquilo que nos parece óbvio, e obviamente verdadeiro, irretocável e irrevogável. Então, hoje vou refletir sobre a realidade física e social, vamos desmaterializá-la para só então, falarmos de imaginação. Mas usaremos a imaginação o tempo todo como método para essa discussão.  

Deus II - A dança: Som e fúria

O sagrado pode se manifestar no cotidiano              De todas as coisas sensórias que me envolveram desde sempre o som é uma das mais fascinantes. Trago grudado ao espírito o canto da pomba “fogo apagou” envolto pelo silêncio da fazenda, ambientando a solitude do jovenzinho que sentava-se na improvisada jardineira da avó e olhava longamente para o campo. De um lado o pasto a perder de vista e de outro o cafezal assentado no morro. De um pouco mais distante vinha o som do vento assoprando forte nos eucaliptos, só quem ouviu esta melodia que rasteja pelos ouvidos e dá profunda paz sabe como é a música e o perfume que juntos vem e quando junto deles estamos ainda toma nossa pele a sombra fresca do “calipial”.             Trago no espírito meu pai assoviando. Era um tempo onde os homens assoviavam, e fazer disso uma arte também era parte do seu quinhão. Só com o tempo eu saberia que o som nos afeta fisicamente antes de nos afetar o espírito. O som toca o nosso ouvido, toca fisicament

Os homens, a história não contada. A pornografia e as transformações sociais da AIDS - II

  (Continuo aqui o texto anterior. Passaremos incialmente pelos anos setenta, a televisão e suas influências e chegaremos aos poucos até os anos 90 e as profundas transformações sociais e sexuais que ocorreram na sociedade). Começavam os anos 70 e éramos apenas amigos! Uma das coisas que me passavam pela cabeça quando era menino (05/07 anos) é que eu deveria ter nascido mulher. Mas isso ocorria não porque eu desejasse os homens, mas porque eu era, desde aquela época, bastante caseiro e não queria sair de casa e nem ver pessoas. Depois aprendi a ler e tudo o que eu queria era mais silêncio e menos pessoas. Depois veio a música e aí eu queria ainda mais silêncio e nenhuma pessoa. Mas para um homem essas coisas não eram possíveis. Homens deveriam ficar o dia todo fora de casa trabalhando e fazendo coisas que não gostavam, pois era necessário para sustentar a casa. Então, o Luizinho queria ter nascido mulher para ser “sustentado” e ficar em casa. E eu não achava a vida doméstica tão terrív