Elias no seu mister |
Hoje eu gostaria de escrever algo muito bonito. Hoje eu gostaria de
escrever algo que desse a dimensão da perda. Hoje eu sei que as emoções limitam
a escrita. Tenho poucos amigos íntimos, muito poucos e hoje perdi um
deles. Recebi a notícia da morte do
Elias. O “Elias do Piano”. Foi meu afinador durante 17 anos. Para muita gente
seria só mais um prestador de serviço, mas em se tratando do meu piano - meu
bem mais precioso -, ele tinha de ser alguém especial também.
Em 2007, um ano após minha
chegada a São Paulo, chamei um afinador sobre o qual desconhecia tudo. Entrou na
minha casa educado e simpático - sem exagero -, na metade do serviço, depois de
papear tomando café, virou-se para mim: “Você sabe o que tem aqui?” (referindo-se
ao piano). “Um Bechstein!” “Um dos melhores pianos do mundo, concorrente do Steinway!
Ele piano deve ter uns cem anos! Verifica o numero de série e você irá
descobria a história dele. Hoje na internet tem tudo!”
E assim começou uma amizade que
significava duas visitas ao ano, para fazer a afinação. Lembro-me quando estourei
uma corda do piano, após tocar muito forte, e telefonei pra ele em pânico,
quase chorando: “Estourou a corda?! Você tá ficando bom! Isso não é nada não,
amanhã passo aí!” E o trabalho que poderia durar uma hora, hora e meia, durava três
ou quatro, pois ficávamos conversando sobre tudo. Elias foi o único homem - heterossexual
adulto - com quem eu me comuniquei. Falava comigo como se eu fosse um filho.
Disse “heterossexual” pois é comum que ao assumirmos a homossexualidade sejamos
colocados, ou nos pomos, a um canto da humanidade. E nesse canto os “homens”
não falam de verdade conosco. Por isso disse “me comuniquei”, pois havia
afinidade e comunicação verdadeira entre nós. O primeiro assunto era o piano,
sempre o piano. E entre o pipilar das teclas enquanto afinava, a sensibilidade
das cordas ia subindo ainda mais o nível da conversa.
O que sei do Elias? Sei que era
casado uma primeira e uma segunda vez. Sei que tem uma filha que adora ler e
que já ganhou todos os meus livros, um filho que afina pianos e parece desejar
seguir os passos do pai, e um menino ainda novo. Sei que sua oficina fica ali
perto do Metro Marechal. Sei que foi afinador de vários artistas conhecidos,
afinador do Teatro Municipal e da Sala São Paulo e de muitos shows importantes.
Sei que era afinador de pianistas famosos. E dele ouvi muitas estórias do tempo
que viajava pelo interior de São Paulo como técnico de pianos. Receber Elias na
minha casa era uma manhã ou uma tarde de boa conversa. E a afinação do piano
era sempre perfeita para mim. Sim, ele sabia como é que eu gostava do som.
Sou muito sensível a sons agudos
e aos excessivamente graves, então ele fazia a “entonação” do piano, para ele
soar mais suave e aveludado. Foi na busca por esse serviço raro que ele fazia
tão bem que eu fui notificado da sua perda. Eu quero dizer alguma coisa, mas
não consigo. Quero escrever algo belo como as horas que passamos juntos, não
consigo. Ele - apesar da pouca diferença de idade - foi um segundo Pai para
mim. Aconselhava, incentivava, ria das minhas besteiras e passou anos sem me
ouvir tocar, pois sou muito tímido. Depois de afinar pedia para eu
experimentar, e eu dizia que experimentava depois. Ele achava esquisito um
pianista que não toca. Mas nunca disse uma só palavra. Com os anos passei a me
arriscar um pouquinho diante dele, e nos últimos tempos eu mandava alguma música
minha gravada.
Dói muito perder o nosso “café com bobagem” enquanto ele calmamente,
rigorosamente, afinava meu Bechstein, depois o Essenfelder, o Bechstein de
novo, o Yamaha velho, o Yamaha novo... E assim vai, troquei de piano, mas o
afinador sempre era o Elias. O que sei do Elias? Muito pouco como viram. Na
verdade não sei o nome dos filhos e nem da esposa, como ele também não sabe dos
meus entes queridos, em realidade não sei o sobrenome do Elias; mas era meu
amigo, um dos poucos amigos que tive.
Sua companheira me informou que ele morreu de câncer. Em 08 de dezembro
estava em Campinas, afinando meu piano, em 18 de janeiro já havia nos deixado,
e eu fiquei sabendo apenas neste momento. Praticamente não teve sintomas do
câncer, quando descobriu já era tarde demais e faleceu em duas semanas. Fico feliz
por Deus tê-lo poupado de sofrimentos maiores, era um homem bom; mas preferia
tê-lo aqui para a nossa velha conversa de sempre. Acho que na casa dele deve
ter um quadro com o qual o presenteei e à esposa, espero que sim. Uma linda
seda indiana pintada a mão com Krishna e suas esposas. Gosto de imaginar que na
vida dele, e dos seus, tenha um pequeno pedacinho meu, um pedacinho de quem
recebeu tanto.
Descanse em paz, meu querido amigo. Que Deus o tenha em muito bom lugar.
E sinto muito por não te conseguido dizer algo bonito, mas eu queria, só não
pude. Você sabe que quando estoura a corda do meu piano eu fico assim...
http://afinadordepiano.com.br/elias-do-piano.html
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