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Setembro Amarelo


            Acho a idéia de um mês dedicado à prevenção do suicídio um esforço louvável. Sobretudo chama à consciência os que não pretendem se matar. Entretanto é difícil despertar uma empatia real. Algumas pessoas até se esforçam para localizar alguém que pode virar vítima de si mesma. E ainda que o façam, se encontrarem alguém, não sabem o que fazer com isso. Faltam técnicas e palavras adequadas para ajudar a pessoa que pensa em suicídio. Neste sentido, o mês parece querer dizer: “nós nos importamos”; porém, como tudo na contemporaneidade, tem o complemento “desde que não dê muito trabalho”. A outra via é que os que compartilham os mêmes deste período são os mesmos que compartilham qualquer même. Dito de outra maneira, desejam parecer simpáticos socialmente e é só.

            Como disse antes, boa vontade pode ajudar, mas não é tudo neste caso. Ás vezes se pensa que suicidas são pessoas que agem em momento de desespero. Hoje se sabe que boa parte deles planeja cuidadosamente durante muito tempo, o que irá fazer e como irá fazer. Chega mesmo a deixar todos os negócios terrenos ajeitados: casa limpa, túmulo comprado, materiais pra limpeza (próximos do local onde seu corpo será encontrado).

            Suicidas morrem, pois não encontram sentido na vida. Morrem, pois não imaginam que valha a pena continuar vivendo. Morrem porque se cansaram de tudo e de todos e não veem mais futuro ou possibilidades no seu entorno. Suicidas morrem, pois a vida é insuportável. Ainda que eu pudesse separá-los em “tipos” e motivações, socialmente isso seria de gosto duvidoso. São inumeráveis as questões que levam alguém a atentar contra si. E neste quesito pensando que “alguém atenta contra si”, podemos estar enganados também. Ás vezes deixar a vida pode ser uma decisão muito consciente, muito ponderada. Ainda que determinada por causas equivocadas, ou situações e condições que podem ser passageiras, mas que assim não parecem naquele momento. O suicida não atenta contra si, ele busca de outra forma eliminar o sofrimento insuportável. É contra o sofrimento que ele age e não contra si mesmo, que é o que nos parece.

            Suicidas morrem, pois a morte parece ser o único alívio para o seu sofrimento psíquico, físico e moral. O sofrimento psíquico é algo difícil de ser descrito, pois não pode ser controlado, não é apenas uma questão de “mudar os pensamentos” ver um “vídeo de autoajuda” (no meu caso apressaria). O suicida lutou o tempo todo com seus pensamentos malsãos até que não conseguiu mais. Está exausto, não tem mais forças para combatê-los. Se os aceitar, fica mais tranquilo levar a vida até o limite que se impôs, pois a pressão interna assim se alivia. E os sentimentos pioram quando alguém cheio de boas intenções tenta ajudar: “deixa disso!” “você se preocupa demais” “Ah, você está encanando” “Amanhã será melhor” e “blá blá blá”. Tudo o que você disser para um suicida ele já se disse um milhão de vezes internamente, e soa apenas como um reforço do fracasso dele consigo mesmo. Na sua cabeça ele ouve apenas, “não funciona” “não funciona”. E o palavrório fica vazio.

Só há um jeito de romper este ciclo de tormentos, alguém, de cujo afeto ele é dependente, intervir. Aí as palavras que se disse lá atrás farão sentido. Não são as palavras, mas quem as diz. Entretanto, este é o caso de muito poucos, geralmente adolescentes. Os adultos já não querem ouvir mais nada e nem se importam mais com quem os tente impedir. Pior que o suicídio é a tentativa, pois o fracasso apenas demanda nova tentativa desgastante. Os que tentam e fracassam, pode se dizer que estavam em sofrimento e desespero, pois deixaram a possibilidade de serem salvos e impedidos - mesmo de forma subconsciente. Os suicidas bem sucedidos, estes não tinham a menor dúvida e pensaram em tudo para que não houvesse erro.

Para que serve então o Setembro Amarelo? Para você olhar para quem está próximo - e não no facebook e perceber se algo vai mal. E ao invés de tentar dissuadir a pessoa, você deve tentar adivinhar as motivações e se esforçar por alterá-las, não é o suicida que fará isso, pois se ele pudesse  já o teria feito. Ajudar um suicida demanda atitude, motivação e deliberação, não é perguntar se ele vai se matar ou enchê-lo de blá blá blá, é efetivamente agarrá-lo na beira do abismo e puxá-lo para trás. Se precisar amarrá-lo até as causas serem explicitadas e alteradas, amarre-o. Se quiser ajudar, lembre-se, aqui o livre arbítrio dele precisa ser desrespeitado. Nessas horas, quem ama, não deixa livre, quem ama socorre na marra.

O suicídio é a porta de fuga para um desgosto profundo com a realidade, com as pessoas e as vezes consigo mesmo. Um desequilíbrio químico no organismo pode ser a causa dos pensamentos malsãos, além da realidade ela mesma criminosa. E às vezes nem o psicólogo e nem o psiquiatra percebem a causa real. Ajude no que puder, a quem puder, mas dizer que você está disponível para ouvir, não adiantará de nada. Você não deve ser a pessoa com quem ele gostaria de falar. O Setembro Amarelo serve para que você saiba que as causas são complexas, que a cura é difícil, senão impossível. E também para que você mesmo comece a cortar as causas na sua vida que possam te levar a essa situação. O suicida está desejoso de se livrar de uma sociedade que o adoeceu, de pessoas que o adoeceram e de si mesmo que permitiu o estado doentio.

É muito improvável que você salve um suicida, mas comece por você. Você pode começar a se salvar de chegar nesta circunstância. Vamos lá, a vida não é bela, as pessoas não são boas, as coisas não são justas... E tudo isso frustra porque desde sempre foram ideias erradas que te incutiram. Viver é algo que acontece todos os dias, ideias equivocadas levam a becos sem saída, e aí, não tem volta. Não é a vida e as pessoas ou você mesmo que levam ao suicídio, são as suas crenças de como a vida deveria ser, de como as pessoas deveriam ser, de como você deveria ser e não é, e não são, que te levam ao suicídio. É a certeza de que tomou o caminho errado lá atrás e que não há como mudar muito a sua vida que te leva ao suicídio. A dor moral, a solidão, o sofrimento psíquico. Tudo começa com uma crença equivocada em como as coisas deveriam ser. Ao descobrir como elas são realmente, o suicida diz para si a sua grande verdade: elas são inaceitáveis como são.

Faça o que puder, dê afeto para os que estão no seu caminho. Antes de se sentir só faça companhia. Antes de ser um desafeto seja uma solução. Antes de falar ouça, antes de gritar, abrace. O suicídio não é um gesto que aparece do nada, e também do nada não pode ser impedido facilmente. Ele nasce de um longo cotidiano onde as frustrações e “nãos” são maiores do que os doces frutos da existência. Demorará para incutir no suicida o gosto por existir, ainda mais se existir na atualidade.

Imagino que este não seja o texto que muitos gostariam de ler sobre o assunto, mas damos do que podemos dar.

 

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