Morreu
Elizabeth II, uma grande perda. Fico triste, mais uma das minhas referências
culturais do século XX apagou-se da existência. É como ficar um pouco mais só.
O que me
incomodou não foi tanto sua morte, pois era esperada, mas as manifestações
grosseiras e vulgares nas redes sociais. Muitas delas de pessoas bem formadas,
e informadas. Expressões de ódio contra a Inglaterra, Império Britânico ou seja
lá qual for o nome que você deseja dar. Uma potência que quase faliu, mas que
sob a égide da Rainha alcançou dias melhores.
É
lamentável que as pessoas confundam a humanidade de Elizabeth com o passado
britânico inteiro. Sim, ela era o chefe de Estado. Sim, ela representava o
Reino Unido. E não, isso não fez dela uma pessoa deplorável. O que se louva à
Elizabeth é o seu senso de dever; que cumpriu com graça e misericórdia.
Suportou a mesma carga das mulheres que muito sofrem em todos os países. Teve
sua vida pessoal, seus sonhos, sua intimidade, esmagada por uma pesada carga.
Jamais apareceu em público reclamando. Louvo Elizabeth, pois em sua vida
pública foi de um estoicismo admirável e exemplar.
As
pessoas que tratam sua morte, neste momento, com extrema leviandade não são
levianos apenas neste momento. Até três dias atrás a soberana britânica
aparecia na TV em suas funções, ninguém se lembrou de achincalhá-la. Virou
inclusive uma série de memes divertidos (não encomendados por ela). Até outro
dia, uma governante séria, acabou se tornando um “ícone da cultura Pop”, até
outro dia... Então pergunto-me onde estavam todos os detratores e jogadores de
bosta na virtude alheia que não se manifestavam?! Teriam medo da dita rainha?!
Não, claro que não. É que com sua morte tudo na mídia se voltou para este fato.
E essa multidão de levianos encontrou um palco. E passaram a ser coadjuvantes
do enterro da rainha, pois nem nesta hora possuem brilho próprio. E não se
enganem, não foi ela quem lhes roubou o brilho, a riqueza, a sobriedade, o bom
senso e o respeito, isso nunca tiveram. Mas ainda dá tempo de mudar isso.
Não,
eu não louvo o Reino Unido – ainda que respeite sua autodeterminação e
conquistas como povo -, louvo a Rainha cidadã, a mulher recheada de civismo e
civilidade. Ela teve uma atuação efetiva no cenário político mundial e no do
Reino Unido. Imaginem, ela poderia dizer com o pouco caso típico dos tolos: “Eu
não vou fazer nada, não adianta, sou apenas uma figura decorativa. Uma mulher
que ninguém dá crédito e ninguém ouve. Sou apenas mais uma parasita do erário
público...” Ainda bem que essa pessoa não escutou o discurso fácil de quem
debocha das suas qualidades atualmente.
Alguém
irá levantar os argumentos muito comuns atualmente: “ela vivia no luxo, nunca
passou fome, a nobreza é podre, e bla bla bla”. Cada coisa a seu tempo. Ninguém
é ruim automaticamente porque nasceu numa situação que nos parece privilegiada.
Se algum dos que reclamam tivessem sido chefes de departamento, chefe da creche
ou tido autoridade de qualquer tipo sobre
pessoas – e sido honestos -, teriam boas chances de estarem tristes diante
desta perda. Ocupar posições públicas de autoridade, sejam de grande monta ou
não, não é uma tarefa fácil. Todos os dias você é chamado a tomar decisões e
todos os dias essas decisões têm consequências. Não irá conseguir agradar a
todos. Mas imagine o que é ir pra cama todos os dias com problemas muito sérios
para solucionar e cujo sucesso depende da sua escolha acertada?! Fazer isso por
alguns meses, dois ou três anos, é bem difícil, agora imagine fazê-lo por 70
anos?!
O
que, muitas vezes está acobertado por um discurso de ódio e que alguns ainda
não ousaram dizer de forma clara, é que “ela era rica, era branca e
heteronormativa”. Então eu tenho que dizer que não ser rico, nem branco e nem
heteronormativo não traz virtude a ninguém. Ser vítima de injustiça não torna
ninguém virtuoso, ser pobre não torna ninguém virtuoso. Falamos daqui de algo
que é para além das classes sociais e rixas políticas. Mesmo não sendo Cristão
e vivo numa sociedade que assim se diz. Então evocarei um momento muito
ilustrativo do Evangelho de João, quando antes de entrar em Jerusalém, Jesus
fica hospedado na casa do seu amigo Lázaro. Uma mulher, ali adentrando, quebra
o gargalo de um caríssimo perfume de Nardo, e com ele unge Jesus. Derrama sobre
sua cabeça o conteúdo do frasco. E com suas lágrimas, lava seus pés e os enxuga
com seus cabelos. Judas ficou indignado com aquilo. E em meio da sua indignação
chegou a afirmar que a venda daquele perfume daria comida a muitos pobres, e
Jesus, bastante sereno, disse uma verdade incomoda: “os pobres sempre os tereis”.
E depois argumentou que ela o preparava para a sua morte.
Todos
sabemos o fim desta história. O que é importante nesta passagem é que Jesus
informa o que muitos não desejam perceber agora: “não é o momento para isso”.
Sim, há o momento para louvar os grandes homens e mulheres em nossa sociedade,
e não é “injustiça social” gastar com eles um perfume caro, é respeito, é
devoção, é gratidão. Também há o momento de se sublevar, lutar contra as
injustiças, a ignorância , a miséria. Mas, calma, esta é uma guerra que nunca
terminará. Então, apreciemos a trégua, olha as virtudes do seu adversário se
você não consegue ver a pessoa, ele as tem. A Rainha Elizabeth fez o melhor que
pôde pelo seu povo. Não sei se posso lamentar o fato de não ser britânico, acho
que não, gosto de ser brasileiro. E nem acho que se a Rainha me conhecesse iria
aprovar meu texto. Diria algo como, “Deixa, estou acostumada...”
Eu
não me acostumo. Sei que quem se expressa de forma grosseira nas redes sociais
não o faz por ser mau caráter, mas por ser leviano. A leviandade é um defeito
que acomete todas as classes, entre cultos e incultos. É o ato de menosprezar o
outro, e falar sem pensar nas consequências. Você não acredita que 70 anos de
legado de Elizabeth irá se abalar com palavras levianas ditas num país que anda
deixando a desejar, né?! Também não acredito que o meu respeito por ela irá
fazer diferença pra ela e nem pra Monarquia Britânica. O meu respeito faz com
que eu reflita sobre a condição humana. Sobre a sua condição, sobre a minha,
sobre a nossa. Sobre a nossa real capacidade de ver o outro. É importante,
nesse momento, perceber quantos milhões de pessoas conseguem ver as virtudes da
rainha através de todos os seus defeitos, através de todas as necessidades
sociais. Ela simboliza disciplina, seriedade, compostura, perseverança,
fortaleza, maternidade, bom senso e até misericórdia. Então, peço para que haja
com compostura, pois a leviandade não faz diferença para a Inglaterra, faz
diferença para as pessoas com quem você convive. E é por refletir, que digo: “Descanse
em paz, Elizabeth, você merece!”
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