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A educação é a solução (?)


            Vamos morrer fazendo essa afirmação. E para cada vez que ela sair de nossos lábios a emendaremos com diversos problemas aflitivos. A educação seria a solução para um monte de coisas. Provavelmente nenhuma das coisas para as quais a evocamos. Educar alguém não significa que este alguém terá qualquer apreço pela cultura ou respeito pela civilidade e as pessoas. A educação é muito importante, entretanto, não faz mágica. Existem aspectos da mesma “educação” que são relativas aos pais e à família, ainda assim, mesmo que estes sejam eficientes, não há nenhuma garantia de que seus esforços serão bem sucedidos.

            Então, falemos da educação instrucional, sobre este quesito podemos entender melhor o que ocorre e por que ocorre. A primeira escola pública e gratuita, até onde sei, foi criada por Napoleão Bonaparte no inicio do século XIX na França, elas originariam as escolas politécnicas mais tarde. A intenção era preparar a mão de obra para a indústria que desenvolvia-se rapidamente no período. A França possuía ao menos umas quatro cidades importantes, grandes para a época. Então, gosto de imaginar que essa escola pública se destinava em primeiro lugar para os citadinos. Os que viviam no campo não necessitavam de instrução escolar.  Pois no campo os saberes exigidos eram outros e passados de geração em geração. Mesmo assim, “ensinar” para um jovem naquele período significava que ele não era uma página em branco. Dentro dele a tradição e as transformações sociais recentes conflitavam.

            Aos poucos a idéia napoleônica se espalhou pela Europa e devagar pelo resto do mundo. E a indústria foi se tornando cada vez mais complexa e exigindo por um lado operários reduzidos à sua mais simples expressão de força de trabalho e outros tantos “operadores” que tivessem um nível instrucional mais adequado. A necessidade de ter “operadores” em diversos níveis da industria, administração, e comércio citadinos levou a uma especialização cada vez maior no ensino. As faculdades e universidades começaram a despontar como os locais de excelência para essa formação. Para os citadinos pobres a educação começa a parecer a possibilidade de ascensão social, e de enriquecimento.

            Então, neste período da História e nos dois séculos seguintes o ensino se tornou uma ferramenta para preparar operários, operadores e pessoal especializado para a administração governamental e econômica. Aos poucos, na sociedade, se fez uma clara diferenciação entre os que possuíam letramento e os que não possuíam. Entretanto, isso ainda não significava que o iletrado fosse um “ignorante”, ele tinha outros saberes ligados ao campo e às tradições artesanais. Quanto mais a sociedade se industrializava, mais e mais pessoas se mudavam do campo para as cidades e gerações passaram a nascer paulatinamente expropriadas de todo e qualquer saber. E assim o ensino público passou a ser a principal fonte de informação e ilustração dos indivíduos, surgindo dessa forma a nossa forma de ver o mundo na sociedade moderna.

            Acreditamos que todos devem ser educados, pois a educação soluciona todos os problemas. Entretanto esquecemos que as contradições entre formação humana do indivíduo e formação instrucional se devem ao fato de que o ensino público e generalista do ocidente surgiu para servir às indústrias e a todos os desdobramentos do Capitalismo.  Ao mesmo tempo, neste longo processo de desenvolvimento também surgiram as lutas operárias para melhorarem as condições de vida da classe trabalhadora. É importante notar que nos mais de 150 anos a contar da escola napoleônica, o Capitalismo ainda que poderoso estava a mercê do “capital humano”, dependia do operariado, dos operadores, dos governos e seus administradores e de toda uma cultura gerada para manter e sustentar a sociedade capitalista, a sua ideologia. E neste último quesito localizamos os expoentes culturais de todos os tipos e níveis.

            Não se afirma aqui que as pessoas se dobraram facilmente e que críticas não existiram. A resistência, a crítica, e as contradições diversas fizeram parte importante do desenvolvimento de nossa sociedade. Entretanto, mesmo que com laivos de alta cultura, o que durou apenas umas oito décadas no século XX, tudo se fez devido às necessidades do Capitalismo.  Como diria Noam Chomsky quando surgiu o Capitalismo ele criou uma classe. Sempre pensamos que foi a burguesia, entretanto, o operariado e seus desdobramentos são a classe criada pelo Capitalismo. Atualmente, tendo em vista a alta tecnológica, a automação, robotização da indústria, do campo, medicina, e ensino, o Capitalismo demanda cada vez menos mão de obra bem formada, e até especializada. Demanda atualmente muito poucos seres humanos e todos muito  especializados.  Ainda segundo Noam Chomsky, o Capitalismo está prescindindo desta mesma classe que ele gerou e fez com que se multiplicasse até à exaustão do planeta.

            Então, a educação não é a solução de tudo. As universidades, o ensino público e o privado, todos podem ser bastante abandonados pelos governos hoje, pois eles já não possuem sua finalidade última que era atender ao Capitalismo. Como não mais o atendem, o ensino pode também ser transformado num simples produto de consumo. Entretanto um produto de consumo massificado cuja qualidade é ser acessível, mas sem conteúdo efetivo e finalidade social clara. As boas universidades e as piores sempre tentam dizer para os alunos: “aqui os melhores profissionais do mercado dão aula”. “Aqui nos te preparamos para o mercado”. Resta saber que mercado é este, uma vez que o grande, o médio, o pequeno capital e o capital financeiro não empregam mais. O mercado já não é mais um mercado, não passa de uma feira sem vergonha na qual você se oferece como a xepa do dia quando deixar de ser comprador.

            Sim, se você começou a se desesperar é por que entendeu tudo o que foi explicado até aqui. Pode gastar suas parcas economias numa infinidade de cursos, graduação, pós, especializações, etc, e isso pode não lhe garantir absolutamente nada, mas garante a quem vende cursos. Por isso é preciso pensar de verdade na frase a “educação é a solução”. Que educação e solução para o que? Daqui por diante serão verdadeiros letrados aqueles que tiverem real vocação para isso e não aqueles que poderiam ter seu interesse despertado para a cultura mais complexa da sociedade. Ao menos aqueles que nunca gostaram de “maçãs” podem deixar agora de compra-las e de comerem-nas à força, dizendo que são deliciosas.

            Não se engane afirmando que o Capitalismo tem interesse em dar empregos e dinheiro para as pessoas consumirem. De acordo com as regras do Capitalismo super bem praticado, ter dinheiro para consumir é problema do consumidor. Então, ele ainda continuará gerando necessidades de consumo, entretanto, não lhe dará condições para realizar seus sonhos de consumo por muito mais tempo. Para que você possa ter alguma renda o operariado abandonado a si mesmo precisará criar uma outra economia, subserviente da do capitalismo, na qual – por enquanto – a  produção, venda e entrega de brigadeiros se sobressai. É importante notar também que o seu endividamento com bancos, cartões de crédito e repartições públicas também é do interesse do Capitalismo, pois gera lucro a partir dos juros e correções da dívida. Ninguém irá te salvar.

            Mas, por que me dei ao trabalho de escrever tudo isso? Bem, para que você saiba que se educação é a solução para tudo, não é a educação que você imaginou. Estudar não garante mais nenhuma ascensão social. Ela pode até acontecer, mas não há nenhuma, absolutamente nenhuma garantia disso. Você pode finalmente gastar seu tempo com outras coisas. Não faça cursinhos a distância e nem com conteúdos frágeis – se bem que você nem saberá que são assim -, exceto se você tiver interesse real, se desejar ficar satisfeito consigo mesmo. Melhor seria ir pra uma biblioteca e ler um bom livro.

            Esta mesma explicação serve para praticamente tudo na sociedade contemporânea. Como p.ex., Existem mais escritores do que leitores no Brasil porque todo mundo acha que ser escritor dá um status qualquer diante da sociedade (isso já foi verdade), e então ser autor de um livro é um produto que passou a ser vendido, e tem de todos os preços, tudo depende da sua vaidade. Diminuiu o número de leitores, claro. Essa não é mais uma sociedade do letramento. Não sei se devemos ficar em pânico, provavelmente quem está nascendo agora não se importa.

            Mas uma coisa é extremamente grave e não pode ser esquecida. Se o não letrado do começo deste texto possuía uma infinidade de conhecimentos uteis e sobrevivia muito bem sem o capitalismo e a indústria, os iletrados e analfabetos funcionais de agora são realmente ignorantes no pleno sentido da palavra.  Por melhor caráter que tenha a pessoa, a percepção de que está alijada do processo de consumo e de ascensão social de qualquer tipo, e a consciência de sua óbvia inferioridade dentro da sociedade - mesmo se tornando parte da maioria – gera necessariamente violência.

            A frustração gera violência que se alastra desde o convívio intimo até a praça pública, vai do pequeno vandalismo até chegar aos homicídios e feminicidios de todos os tipos. A ignorância violenta tende a se especializar e a atuar com requintes de crueldade. Quanto mais cruel e requintado o crime maiores são as chances de que seu perpetrador consiga alguma notoriedade social. A única coisa que resta ao pobre cidadão comum, viver como Sísifo ou entregar-se à barbárie. As duas opções são ruins, mas há quem diga que diante deste quadro a barbárie possa ser a solução dos problemas.

            Ahá! Então a educação não é a solução. Não, não é, se as condições gerais dadas permanecerem sendo as mesmas. E você me pergunta: do que eu iriei viver? E como vou sustentar a minha família? Então, como você irá viver eu não sei, mas também quero dizer que aquilo que você chama de família – do jeito que você conhece -, também foi criada pelo Capitalismo.  E tudo o que o Capitalismo quis foi que você fizesse filhos e pagasse do seu bolso a educação instrucional deles para que depois pudessem servi-lo. É melhor você ir fazer outra coisa da vida que não seja reproduzir e pagar cursos inúteis.

            Veja bem – ainda me dirá – se eu te levar a sério e se me entregar à barbárie será o fim da sociedade e de todo o sistema?! É isso que você deseja?! E então, resposta final: não, ninguém deseja violência, morte ou destruição e nem nada que cause dor aos indivíduos (também uma invenção capitalista), mas, com certeza, esta é a solução dos problemas que ora vivemos. Claro, um grande maremoto também seria. Descargas magnéticas do sol destruindo a tecnologia e as redes de informática, também seriam soluções. Infelizmente pode ser que precisemos do caos econômico e social para dar um novo sentido à existência e ter possibilidade de sobreviver com alguma dignidade. E eu digo tudo isso com muita tranquilidade, pois sei a quem me dirijo e sei que vocês não farão nada disso. Que pena!

            A educação é a solução! Sei que continuarei ouvindo este mantra. Mas com certeza a educação instrucional não é mais solução para nada. Agora, se falarmos de formação do indivíduo, de caráter, etc, isso é outra história. Todavia, essa começa em casa e os pais e mães já não se sentem mais tão animados em empreendê-la. Para cada ser humano bem formado corresponde alguns milhares de maus educados e violentos, na ponta do lápis, voltamos a barbárie. E não me diga que isso não é real, infelizmente, este é só um caso de botar óculos escuros para ver se as imagens melhoram e não nos ofuscam.

            O bom educador prepara o educando para ser humano, reflexivo e conter em si o que a civilização tem de melhor, entretanto, faz isso no mesmo palco onde ele se verga ao sistema.

 

Comentários

Renato Gimenes disse…
Concordo com praticamente tudo. Só o último parágrafo me causa uma hesitação.

Por mais que eu não seja um fã de Chomsky, sim, me parece que a grande utopia do capital, hoje, é dele se emancipar da força de trabalho humana. O futuro do capital não é humanista, é pós-humanista, se não pós-humano: ele necessita de máquinas, inteligências artificiais e melhores mentes humanas (poucas) para melhores inteligências artificiais e trabalho maquínico de todos os tipos.

Sobrará, para quem puder, um estranho mundo feito de serviços de vários tipos, dos mais tradicionais aos mais "pós-modernos" (vídeos no YouTube, por exemplo), consumos de notícias, auto-exposição, narcisismo, etc, etc, etc. E vários tipos de Ubers, muitos Ubers.

Também penso que faltam diagnósticos sobre o presente, suas tendências, a maneira como se relaciona com sua memória, com seu patrimônio. com suas próprias transformações e tendências, com os tipos de sujeitos e processos de construção de sujeitos que existem hoje. Sem esse diagnóstico, não dá para pensar nada de novo, nada de interessante.

Por fim... "O bom educador prepara o educando para ser humano, reflexivo e conter em si o que a civilização tem de melhor, entretanto, faz isso no mesmo palco onde ele se verga ao sistema."

Sim, sim, e algumas dúvida:

Sim, faz no mesmo palco onde se verga ao sistema - afinal ele precisa de salário para pagar as contas.

Sim, educa para ser humano.

Não: prepara para conter em si o que a civilização tem de melhor.

Dúvidas: O que a civilização tem de melhor? eu mesmo me pergunto o que é isto, "a civilização"? Talvez por lidar com muita diversidade cultural, tendo a ser meio crítico disso que dividimos entre "civilização" e "barbárie". São para mim duas faces da mesma moeda em diferentes culturas. Prefiro pensar em "cultura" e violência, em controle da agressividade, em uma espécie de "arte de viver" a partir da História e das artes.

O que é educar para ser humano quando o capital indica que necessita de um futuro pós-humano?

Talvez precisássemos de uma educação que mostrasse possibilidades concretas de que se pode viver uma vida diferente desta que nos é oferecida, construída nos interstícios da que temos hoje.
Luiz Vadico disse…
Olá,Renato! Grato por comentar. Preciso concordar contigo em praticamente tudo. Apenas esclarecerei que o "melhor do humano" passa pela compreensão de que o "humano só se realiza no seu coletivo". Então o melhor do humano é necessariamente o que produz uma contribuição para a coletividade. Isso passa, pela arte e pela cultura. Eu não discordo da opção pelo termo cultura e não ignoro o que está imbricado na sua utilização em relaçao a civilização. Continuarei com o term civilização, não por que eu acredite realmente numa "civilização", mas este conceito deixa mais claro - ao menos para mim - quem foram os fundadores da coisa que vivemos hoje. A partir do assunto aqui tratado acho que o termo "cultura" pulverizaria o debate. Precisamos de foco. Ainda que o Capital irá se tornar - ou se tornou - pós-humano, devido às novas tecnologias, penso que devemos frear os "ditos" avanços das grandes corporações. Os avanços tecnológicos atuais beneficiam economicamente poucos gatos pingados e levam ao desemprego milhões de pessoas. Os países precisam de pessoas empregadas, respeitadas, com suas carreiras mantidas, para que alguém pague seus impostos - inclusive as empresas de tecnologia. Deveria haver, e se Deus quiser haverá, alguém que dê um basta nas inovações socialmente irresponsáveis destas empresas. Jà são mais poderosas que alguns países. Não é adequado aceitarmos que empresas coloquem populações inteiras na miséria e digamos que isso é devido à inovação tecnológica. Ora, essa inovação não veio do céu. Quando vem do céu, pelo menos mata mais rápido. Não desejo ser quixotesco, entretanto, preciso acreditar - e fazer por onde - que podemos parar - não a inovação - mas a sua aplicação irresponsável. Se as empresas tecnologicas querem causar desemprego e desespero na população e nos países, elas devem arcar com as responsabilidades. Não vejo com otimismo, e nem acredito nas projeções deterministas que nos levam a pensar que "não tem volta", pode ser que n]ao tenha volta, mas o rumo pode ser outro. Obrigado por trocar idéias! Sinta-se a vontade. Abração

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