Para
aqueles que me perguntam como nascem meus livros, minhas estórias, é assim: uma
imagem, um diálogo, que vem do nada e se constitui em alguma coisa, e depois um
mundo inteiro se forma. Nova aventura dos rapazes de “Noite Escura”? Vamos
ver...
“A vingança da Deusa”
Preâmbulo
“Caralho,
Victorinus!!” gritei “Põe força nesses remos homem! O barco vai bater nas
rochas!!” O mar rugia bravio nos carregando, ondas e mais ondas imensas substituindo
umas às outras, nosso barco frágil como uma casa de noz, o fim parecia próximo.
“Pára
de falar Sertórius e rema!” – mandou Macárius, pedindo pra eu economizar o
folego. Impacientava-me com meu amigo mais velho, pois precisávamos de toda
força possível. É difícil não poder contar com o melhor dele, pois está
fatigado e não rende mais como antes. Então, em alguns momentos perco a
paciência. É injusto eu sei. Mas é o medo. Não dava para não ficar em pânico.
As ondas jogavam o barco por entre as pedras, era uma questão de tempo até
espatifar-nos. O imenso paredão rochoso
se descortinava á frente, não havia nenhuma nesga de terra para alcançarmos.
Seria o fim se perdêssemos o barco. Quem de nós conseguiria nadar
indefinidamente até encontrar terra? Ainda mais com as ondas jogando ferozmente
contra as rochas...
“O
melhor que fazemos agora é rezar!” Comentou Pompílius, e logo o Galinho sugeriu
jocoso, “Reza para quem quiseres menos para Ártemis!” lembrando-se da nossa
aventura na Panônia meses antes.
“Ainda
bem que o mar é de Netuno!” comentou Lúcius, com um ar de alívio. “Sertórius,
tu te dás bem com Netuno?!” Provocou-me Victorinus com ar de caçoada, talvez vingança
da bronca. Eram os amigos de sempre, diante do perigo inevitável, iam buscando
coragem no bom humor. “Não sei a que deuses desagrado, amigos! Só sei que
nenhum deles irá remar por nós!!” Respondi de má vontade. Pus toda força
possível nos remos enquanto Pompílius, que era o único a ter força para manter
o leme nessa situação, tinha uma das mãos sangrando. Nossos três pares de remo
dependiam apenas de mim, Macárius e Victorinus, o Galinho e Lúcius estavam na
proa para equilibrar o peso. Que situação! Como vamos sair desta?!
Maldita
hora que nos pareceu uma honra a missão que nos deu Cômodus, filho do Imperador
Marcus Aurélius. Não podíamos ter simplesmente gozado da nossa licença em algum
lugar hospitaleiro da Panônia?! Não, tínhamos de estar no alojamento bem quando
o co-regente visitou o pai. Chamou-nos à barraca imperial para nos felicitar
pela campanha contra os gêmeos e foi logo nos enchendo de elogios e informando
de como precisava de homens valorosos como nós. Eu conhecia aquelas palavras
melífluas que sempre acompanham um pedido de mais trabalho e esforço. Afinal, o
que havia de errado em ficar lutando contra os Quados?! Era só rotina.
Já
ia dando um jeito de me esgueirar para longe quando Victorinus, apoiado por
Pompílius foi logo enchendo o peito e afirmando: “Muito nos honra servir ao
imperador vosso pai! E ainda mais nos honra servir ao grande Cesar!” Pronto, a
merda estava feita. Senti minhas mãos esfriarem quando Cômodus disse: “É bom
ouvir vossas palavras, pois sinto que necessitarei da ajuda de homens fortes e
confiáveis como vós.” Fez uma pequena pausa para observar o efeito das palavras
e fitou-me um pouco mais demoradamente, provavelmente notando meu olhar de
contrariedade. Voltou-se para o Montanha, que parecia uma criança feliz pronta
para ouvir seu instrutor:
“Não
é segredo que a saúde do meu pobre pai está muito abalada...” A essa
informação, nova para nós, se seguiu os comentários típicos que ele interrompeu
com a ordem: “preciso que um grupo corajoso vá até o Egito encontrar um homem e
trazê-lo, ou o remédio que ele possui para curar o Imperador!” Todos ficamos
estarrecidos com o tamanho da responsabilidade. Eu só consegui balbuciar
espantado: “Egito?!” Todos me olharam como se eu tivesse usado a entonação
errada, mas sem me dar conta fui logo abrindo a boca esquecendo de quem era o
meu interlocutor: “Tu não tens homens mais adequados para essa tarefa? Somos
meros soldados, Senhor! Além do mais, por que não enviam pelo correio?!”
Foi
como se um raio tivesse caído em Cômodus. Ele empalideceu, seus olhos
encheram-se de pura fúria, respirou fundo, mas antes que dissesse qualquer
palavra meus amigos voltaram-se contra mim: “Enlouqueceste, Sertórius?!”
perguntou-me Victorinus, “É, tu deves estar com um daqueles delírios de sempre,
não é assim?!” sugeriu Marcus, “Devias manter-te como eu!” afirmou Macárius,
lembrando que em boca fechada não entra mosca. “Ora, que que há, Sertórius!”
afirmou em meio a um rosto feliz o Galinho “Uma nova missão!” e sem esperar que
alguém dissesse mais nada, ele mesmo, o mais jovem e inexperiente de nós
afirmou: “Pode contar conosco, Senhor! Com todos nós!”
Eu
devia realmente estar enlouquecendo para deixar que Severianus tomasse a
decisão. Cômodus abriu um sorriso, que para mim pareceu suspeito, olhou-me de
soslaio e sei que a partir desse momento eu contaria com a sua desconfiança. E
como se as minhas suspeitas pudessem ser confirmadas, ele comentou como quem
não se importasse de verdade: “Ah, tem um tal... Como é mesmo o seu nome?!”
fingiu puxar pela memória, “Salustianus!” “Sim!” confirmou Victorinus
“Salustianus, nosso centurião!”. Cômodus
elogiou-o com um ar cínico: “Ouvi falar muito bem dele, levai-o convosco!” E
depois nos informou que seu secretário nos daria os detalhes da missão. Então,
aquele homenzarrão nos deu as costas, não sem antes recomendar “Nenhuma palavra
sobre isso com ninguém!” e saiu da barraca, ao invés de nós o fazermos.
Cômodus
era um homem grande e forte, lembrava muito pouco Marcus Aurélius e se dizia a
boca miúda que era filho da Imperatriz Faustina com um amante, provavelmente um
gladiador, o mesmo a quem Cômodus era muito ligado. No entanto, isso não era da
minha conta. Os cornos do Imperador ele que cuide. O desagradável nisso tudo é
que o futuro governante não parecia ter herdado o bom caráter do Imperador,
muito pelo contrário. E, honestamente, Marcus Aurélius parecia em muito boa
forma para mim. Não conseguia imaginar que doença era aquela da qual acabávamos
de ser informados. Mas ele merecia todos os nossos esforços para salvá-lo se
fosse o caso. Apenas me incomodava o fato de que ele não tenha desejado
simplesmente usar o correio imperial para trazer o homem ou a cura.
“Enlouquecestes,
Sertórius?!” o Montanha me tirou das minhas reflexões me dando um safanão. Pego
de surpresa não reagi. “Deves realmente estar com algum problema” cogitou
Victorinus “Onde tu estavas com a cabeça em falar desta forma ao filho do
Imperador?!” e como se eu não soubesse, arrematou: “Queres que todos nós
sejamos açoitados?!” “Ou ainda pior, atirados de um lugar alto!” lembrou
Macárius, petrificando-me com seus olhos imensos, justamente cheios de fúria. Nem
pude responder, quando Victorinus elogiou Severianus: “Galinho, fizestes bem!
Agistes de forma rápida e acertada!” este reagiu como um garotinho quando o pai
passa-lhe a mão na cabeça, sorriu satisfeito e se podia ver seus olhos
brilharem. Aí foi a minha vez de aborrecer-me:
“Estais
loucos?! Como vamos aceitar uma missão destas?! Com que finalidade?! É
impossível que não perceberam que há algo errado!!” Foi o melhor que pude dizer
em minha defesa. O Montanha prontamente afirmou nervoso: “Tu é que estás com
algo errado!” Macárius, melhorando um pouco as suas feições, ponderou: “Amigo,
mesmo que haja algo esquisito, mesmo que tudo nos pareça estranho...” pausou
como quem refletisse e concluiu: “Somos soldados, não somos?! O que nos restava
dizer?!” E quando pensei que nada mais me restava ouvir, o belo Lúcius me saiu
com esta: “Nem pareces um homem...” E disse-o com certo ar de desprezo.
“Sertórius,
tu envelheces rápido, onde está teu espírito de aventura?!” Por fim deu-me o
golpe de misericórdia o velho soldado, agora o velho era eu. Fiquei perplexo
por um tempo, enquanto eles estavam todos à minha volta, e como demorava em
dizer algo, Victorinus questionou: “Tu vens?” aquelas mesmas palavras ditas
outrora... A sua pergunta não era retórica, pois ele sabia que eu não podia
recusar uma ordem, desejava a minha anuência de amigo.
Seria
fácil responder-lhe um sim, agradando-o e a meus camaradas. Mas e o que eu
sentia? Não valia nada?! Sempre estaria entregue à sorte de obedecer ordens e a
estar submisso à aprovação dos amigos? Da ultima vez que eu disse um sim, minha
vida esteve por um fio durante meses, até chegarmos ao desfecho com os gêmeos.
E vez por outra eles ainda me visitam os pesadelos. Por isso o Montanha disse
que eu delirava. Eles eram testemunhas das minhas noites mal dormidas. Ainda se
aborreciam, afirmando o tempo todo que aquele caso havia sido resolvido e que
eu deveria dormir em paz.
Mas
não tenho essa escolha. Isso eles não compreendem. Ninguém domina seus sonhos.
O pior deles era reincidente. Apenas via brotando entre as trevas uma jovem
encapuzada. Aproximava-se de mim aos poucos sem jamais revelar sua face, às
vezes afirmava de longe, às vezes sussurrava-me numa voz cheia de rancor:
“Chamaste-me de vagabunda!” e sempre que isso acontecia eu acordava gritando
desesperado. Era Ártemis, eu sei que era Ártemis. E por mais que eu alertasse
os outros, que não me ouviam, eu sei que ela queria vingança. Matamos os
Gêmeos, seus seguidores prediletos, desarticulamos o seu culto naquela região,
encarceraram Brígida, sua fiel servidora. E depois soubemos que seu templo foi
reconsagrado a Juno, a deusa da família. Era com essa espécie de maldição que
eu acordava todos os dias desde então. Às vezes eu podia jurar que via Lépidus
e Licínius passeando pelo acampamento em meio à noite escura. Feito lêmures sem
descanso. Pois deixei seus corpos insepultos no alto daquele estranho monte.
Assombrando nossas vidas, buscando arrancar a minha sanidade. Era diante de
sentimentos assim que eu tinha de dizer um sim.
Não
conseguiria arrancar do meu espírito uma anuência para tudo isso. Não era
simplesmente assentir a uma missão dada por Cômodus. Afinal, o que importava
para nós?! Éramos soldados, fosse qual fosse o resultado disso tudo teríamos
sempre a desculpa de termos cumprido ordens. Meus companheiros o fariam de
muito boa mente. Mas eu, com todos estes pesadelos a me torturarem, como é que
eu alegaria inocência?! Que liberdade de escolha eu tenho? Que liberdade de
escolha nós realmente temos? Não estão loucos, deuses e homens, ao
apontarem-nos o destino? E não estamos nós, na mesma medida dementados, ao
escolhermos um rumo que nos levará à fatal destruição? Sou um soldado, mas
antes disso um homem. Se me induzem ao erro, se me apontam um destino que não é
o meu, mas fazem-no dizendo que não tenho escolha, não sou menos responsável
por isso. Eu tenho escolha! Eu tenho de ter escolha! É difícil, eu sei. Pois, ainda
se eu fosse como os outros... Se pusesse a cabeça no apoio da cama e dormisse,
vá lá. Mas não. Não é assim. Será que eu não possuo nenhum Deus que me queira
bem o suficiente para me instruir?! Será que me resta apenas seguir o rumo que
me apontam para ser castigado por ter feito a coisa correta meses atrás?!
Não.
Eu não sou um covarde. Pois conheci um e sei que não sou como ele. Skauro dizia
“Amo e sou muito amado” e “É de medo que o amor é feito” jamais me esquecerei
dele, lamentável Skauro, digno Skauro. Como diziam os Gêmeos, “Tema o homem
comum...” Não tenho quem me ame e até onde me lembro não amo ninguém. Se
dependesse da opinião de Lépidus e Licínius isso faria de mim um herói. Mas um
herói é um homem bom, e sei que não sou esse homem. Um homem bom faria coisas
menos lamentáveis e provavelmente não teria pesadelos ao dormir. E nem os teria
acordado, como é o meu caso atual. A missão era estranha, os avisos vinham
sendo dados. E louco eu realmente estaria se achasse tudo muito simples.
Nascemos
num lugar e lar que não escolhemos. Vivemos numa cidade que nos acolhe,
alimenta e destrói. Crescemos elaborando uma história. Nos reconhecem nas ruas,
e nos saúdam à passagem. Mas quem somos nós de fato? O que podemos nessa vida?
O que é nosso? O que é dos deuses? O que é dos homens? Por que é tão difícil
dizer não àqueles que nos amam, ou dizem amar? “É de medo que o amor é
feito...” maldita frase. Temo, mas não sou um covarde, no entanto, não amo. Não,
eu não quero ir. Mas serei obrigado. Todo o meu ser se nega a sair desta
miserável rotina de batalhas. Quero os Quados! Não quero a missão de Cômodus!
Quero o sábio Marcus Aurélius!! Não quero o filho bastardo de Faustina!
E
Ártemis?! O que pode um homem contra os deuses? Será o meu destino
constantemente desafiá-los? Justamente eu que sou um homem pio?!
“Sertórius?!”
chamou-me Victorinus, e como parecesse que eu demorava a sair do meu transe,
ele me evocou novamente, agora com o nome que me deram: “Liso?! Ouves-me?!”
Ainda não sabia o que dizer. Sabia o que desejavam ouvir, mas não podia
dizê-lo. “Deixai-o, Victorinus!” pediu Macárius, bom e velho amigo, “Quando for
o tempo dele, ele dirá!”
Foi
com grande alívio que o ouvi. Mas qual será o meu tempo? Fermentarei essas
dúvidas, essas dores, esses medos até quando? Quem saberá dizê-lo? Eu não
saberia. Fiquei mudo. Aproveitei a intervenção de Macárius para ensimesmar-me
ainda mais. Os outros foram saindo da barraca imperial, e tinham no rosto
marcada a decepção. Existem situações às quais não podemos responder por
simples camaradagem. Eu iria, quanto a isso não restavam dúvidas. Mas de boa
fé, seria difícil dizê-lo. Tudo no mundo escapa por entre os nossos dedos.
Vemos o sol, ele se põe, vemos a lua inconstante, ela vai e volta, e as
pessoas, são como o sol e a lua, se repetem todos os dias... E nos brindam com
sua inconstância. Também eu repito-me em minhas dúvidas e medos. “Ei,
Sertórius!” cutucou-me Pompílius, “Que que há?! Somos nós!” Acho que foi essa
simples frase que me fez decidir. Ele me informava, sem o querer, que não se
tratava de mim, como eu gostaria, mas deles. O que eles me importavam? Tudo!
Saí imediatamente à cata de Victorinus, que seguia à frente dos outros, tomei-o
pelo braço e afirmei ainda carregado de dúvidas, enquanto se voltava para
mirar-me: “Sim, eu irei...” E vi brotar
em seus lábios um sorriso acolhedor.
Era
isso que me passava pela cabeça enquanto o mar ameaçava fazer ir a pique nosso
barco. Estávamos ali, todos juntos, com exceção de Salustianus, próximos da
morte, mas ainda vivos. E é isso que importa. Vivos!
Então...
É assim que começa, uma imagem, uma situação, um momento. Você quer saber onde
eles estão? Eu também. Quer saber o que estão fazendo num barco próximo a uma
falésia? Eu também. Quer saber que missão eles irão cumprir? Eu também.
Engraçado que ninguém acredita quando digo que é assim, pois é assim. Não sei
ao menos se surgirá um outro livro ou se essa cena fará parte dele. Mas, faz
umas semanas que estou num barco que ameaça soçobrar, agora que escrevi ele irá
embora.
Vem
comigo?
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