Estou na fase de muitos incômodos.
Deve ser falta de ter o que fazer. Mas já se perguntaram por que Leonardo da
Vinci é citado tantas e tantas vezes? É difícil passar uma semana sem que seja
lembrado de alguma forma em algum lugar. Outro que nem pediu tanto, foi
Einstein. Como falam do coitado. Faz uns quinze anos que a bola da vez virou o
Tesla, antes ninguém tinha ouvido falar dele (ou se ouviu não prestou atenção).
Hannah Arendt era apenas conhecida no reduto sagrado, agora é a própria “banalidade
do mal”. Ás vezes eu gostaria de saber quem é que escolhe as pessoas que irão
virar “popstar”, ou como adoram vomitar por aí: ícones da cultura*.
O
mais interessante é que quem escreve os artigos parece nunca se perguntar o porquê
de os estar escrevendo afinal. Quando querem mudar de assunto desenterram algum
artista importante que eles mesmos ignoravam. Tudo muito reducionista. Qualquer
macaco hoje, antes de comer uma banana, aponta um quadro de VanGogh. Só Van
Gogh! Afinal, é um macaco treinado. Acham que uma vida de merda deve elevar o
cara à condição de ídolo imediatamente. Bem, se este for o caso peguem o Amedeo
Modigliani. Ali tem uma vida bem desgraçada. Mas desgraça e contribuição
artística não estão exatamente atreladas, graças a Deus. Se não, o que mais
teríamos no Brasil seriam artistas.
A
primeira vez que ouvi falar de Leonardo da Vinci eu era bem jovenzinho, estava
na sexta série. Tinha doze anos e havia ido matar aula na biblioteca pública,
lá em Três lagoas, no finado ano de 1979. Nos livros de arte em que eu mergulhava
avidamente, havia vários grandes artistas (é por isso que eles estavam no livro)!
Entre eles estava Leonardo. Entretanto, naquela época ele não vinha com o
epiteto de “o grande gênio do Renascimento”, nem se associava ao mesmo a
palavra “visionário” com tanta frequência. As suas obras pareciam igualmente
famosas, tenho minhas prediletas até hoje, como “Leda e o Cisne”, “A Dama com o
Arminho” (genial, completamente genial), A virgem das Rochas (I e II), “A
Anunciação”, “Santana com João Batista”, e lá estava entre elas, destacada já,
mas não tanto assim, “La Gioconda”, ou simplesmente “Mona Lisa”.
Entre meus primeiros rabiscos púberes está uma cópia dessa obra. Afinal, nos mesmos livros de arte aprendi o que era um “dibujo”, esboço ou desenho em bom português. E “ensaios”. Eu queria desenhar para me tornar pintor, e Tolouse-Lautrec era um dos meus prediletos. Fiz muitos dibujos. Até mesmo pintei uns quadros. Mas, não é de mim que desejo falar. Tentei, como todo mundo, entender o que tanto achavam na Mona Lisa, pois com o passar dos anos na minha vida, ela se tornou ainda mais famosa (culpa dos japoneses dos anos 80). Sorriso misterioso, “para onde ela está olhando”, melhor exemplo de sfumato, blá blá blá. Cheguei a descobrir fatos interessantíssimos sobre a retratada.
O mais
interessante é que no segundo casamento a Lisa contraiu núpcias com o
compositor Carlo Gesualdo - riquíssimo e poderosíssimo -, ela o traiu e ele
mandou mata-la juntamente do amante. E, não contente, esticou uma corda sobre o
pátio do seu castelo e nela pendurou o bebê do casal, seu filho, por um dos
pés. E enquanto a criança morria devagarinho ele compunha uma das suas obras
mais importantes e conhecidas. Apesar da história dramática, não consegui
entender como aquela pintura feia chamava tanto atenção. Sim, a Mona Lisa é
feia. É por isso que todo mundo acha um mistério.
Este quadro em especial ficou com Leonardo da Vinci por alguns anos, e de vez em quando o retocava um pouco. Resisto a acreditar que seja a sua maior obra. Como era bem perfeccionista deve ter morrido dizendo: “Queimem o quadro...” gemeu e finou-se. Olho e olho para esta obra e fico com a impressão de que ele não estava satisfeito. Apesar de tanto esforço técnico o quadro era feio, é feio. E de uma maneira bem óbvia, é insignificante. Se vocês colocarem lado a lado com A Dama com o Arminho verão do que estou falando. “A Dama” é muito superior, além da beleza da pintura e das proporções o arminho, de uma naturalidade incrível, praticamente se funde com a dama. Ela e o animal são uma coisa só. É como se o bicho brotasse do seu corpo, da sua alma. Existe tamanha intimidade entre eles que até mesmo a mão da mulher tem algo de elegantemente animal. Há um jogo de linhas e formas com o qual se tem a impressão de que eles se bastam, são um mundo fechado em si. Uma bela e interessante obra.
Enfim,
não foi para disputar a qualidade da Mona Lisa que comecei este texto. Começo a
viajar perigosamente. Leonardo e Gioconda nada têm a ver com o que digo aqui,
exceto pelo fato de que são usados e utilizados pelas mídias com uma
vulgaridade ignorante que é cansativa. Ainda que a modéstia não fizesse muito
parte da personalidade desse pintor, tenho certeza de que ele iria instar para
que falassem de outros colegas do seu tempo e que foram tão ou mais importantes
que ele. É bom lembrar que apesar das inúmeras anotações, e esboços, as suas
contribuições para a sociedade na qual viveu não foram tão importantes quanto o
reconhecimento póstumo. Ainda que tenha sido um polímata, muitos o foram
naquele período. Ele não inventou a arte de roubar cadáveres nos cemitérios
para estudar a anatomia, já se fazia isso, p.ex.. E, nem ele disse que isso era
uma grande vantagem.
O
artista mais importante daquele período (pouco anterior) é um arquiteto, Philippo Brunelleschi.
É ele quem vai desenvolver a técnica da perspectiva espacial, e que revolucionará a forma como se faz plantas baixas e se desenhará o projeto de edifícios
inteiros. É a perspectiva espacial que irá ser absorvida por pintores
inovadores e talentosos daquele momento. Em sua maior parte se localizavam na
Toscana, na famosa cidade de Florença. Agora, alguém vai dizer: “ele era
arquiteto, não vale!” Então, Leonardo também era. Inclusive em seu currículo de
apresentação, ele falava uma série de coisas que fazia, como engenharia,
mecânica, bélica, construção civil, engenharia hidráulica, etc. E completava ao
fim dizendo que “também” pintava.
Era
ali, bem no fim de todas as suas qualificações, que a arte da pintura se localizava.
Muitos dizem que pintou pouco, e pintou. Afinal teve uma longa vida e existem
apena duzentos e cinco obras ditas de Leonardo, e a maior parte são dibujos. Também diziam que ele era um
grande procrastinador, um perfeccionista que abandonava suas obras. Fato, ele
era. Entretanto, alguém já foi conferir quais foram as obras que ele ergueu com
seus outros talentos?! Se foi, não publicaram ainda. Ele era um homem ocupado e
trabalhador.
Leonardo
da Vinci era bastante bem aquinhoado de cérebro e talentos. Colocou a serviço
dos nobres da época aqueles talentos que davam mais dinheiro e que mais
interessavam: construção de fortes, pontes, armas, desvios de rios, etc. Teve
amizade com gente belicosa de todo tipo. Não me lembro de nenhum outro pintor
tão associado ao poder quanto Leonardo. Ele foi famoso em vida e muito admirado
por seus contemporâneos. Entretanto, o que não se diz é que entre estes “famosos
em vida e contemporâneos” vários outros pintores eram valorizados, amados, respeitados
e considerados tão interessantes quanto ele próprio. Antes dele Giotto, tão
respeitado e famoso que parecia ter descido do céu. Masaccio, também pouco
lembrado, Fra. Angélico, Paolo Ucello, entre outros.
Além
dos artistas famosos no período cujos nomes hoje apenas os livros lembram,
Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo (ligeiramente mais jovem que ele),
Sandro Botticelli e Raphael Sanzio. Cada um deles com obras tão relevantes
quantos as de Leonardo. E também não se pode esquecer que estes mesmos se
originaram da oficina de Andrea del Verrochio. Nascia ali um laço de respeito e
reconhecimento entre eles, ou de rivalidade em alguns casos. Ora, é preciso reconhecer
que se as mídias desejassem, poderiam facilmente desencavar outros gênios dali
mesmo.
O
que desejo deixar claro é que o “gênio” não se faz sozinho. Leonardo é ótimo,
mas não é nem mais e nem menos importante do que seus contemporâneos artistas.
Inclusive, como é fato reconhecido, produziu muito menos. O que não é problema,
afinal, só no meio acadêmico é mais importante publicar do que produzir
conhecimento. Apenas depois dos anos 90 a relevância de Leonardo da Vinci foi
aumentada e aumentada, extrapolada até o limite da honra.
Por
que Leonardo?! Sim, poderia ter sido qualquer outro. É disso que falo. Na
indústria Cultural, agora apenas mídias, simplificam conteúdos. Simplificam
tanto que fizeram de Leonardo da Vinci (sem sua licença) representante do
Renascimento Italiano. E todos sabem que teve no mínimo três séculos de duração
e dezenas e dezenas de artistas. Ora, pegar este artista para transformar em
representante máximo de uma época é aviltante. Não deveria haver representante
máximo de porra nenhuma! É pura distorção histórica e artística. A pobre Mona
Lisa é famosa por outros motivos que não os seus misteriosos atributos
atualmente populares (talvez inventados por que ninguém quis dizer a verdade).
Ela ficou famosa mundialmente porque foi roubada no Louvre no início do século
XX, e sua imagem estampada nos jornais e revistas do mundo inteiro. É por isso,
não por outro motivo; e volto a dizer, a Mona Lisa é feia.
O
que quero com tudo isso. Primeiro, sempre fui simpático a esse pintor, segundo,
não idolatrem nada, nem ninguém. A idolatria cega para todo o resto. Cega para
o contexto social, cega para seus contemporâneos, cega para as suas qualidades.
Pense, com exceção da Última Ceia e da Mona Lisa, quantas pinturas você conhece
dele? Além disso, a idolatria impede que novos talentos surjam, pois que
colocaram uma régua muito alta. Para esse tipo de cultura, não importa o que
você faça, mesmo que você seja, nunca será melhor que Leonardo da Vinci. Não
importa quantos físicos maravilhosos já surgiram ou foram contemporâneos dele,
nenhum é maior que Einstein. Não importa quantas mulheres intelectuais
existiram, agora é Hannah Arendt, não importa quantos pintores revolucionários
e sofridos existiram no final do século XIX, Van Gogh tem o monopólio da dor e
da incompreensão.
Enquanto
focam sua atenção em uns poucos não deixam que você descubra toda a variedade e
força da cultura humana. E a coisa mais estúpida, gostam de “pintar” artistas e
intelectuais como “derrotados”, “sofridos”, mal amados e inglórios. E isto é
mentira. Leonardo viveu muito bem, Shakespeare foi praticamente milionário,
Michelangelo viveu otimamente bem, Raphael morreu jogando dinheiro fora,
Hildegard viveu muito bem no convento. Van Gogh tinha um irmão dono de uma
galeria de arte, o que não é pouco naquela época, etc. Quisera eu ter um irmão
rico como aquele que me sustentasse pintando.
Sim,
é só marketing cultural. Marketing burro e mal feito. Apenas marketing. Pobre
Leonardo, mais famoso por seus cadernos secretos do que por aquilo que ele
realmente fez. É importante lembrar que num período bem anterior, séc. XI,
Hildegarde Von Bingen, fez na música e nas ciências coisas tão relevantes quantos
as de Leonardo. E dela não se fala tanto. Não que não tenham desejado fazer
marketing cultural da mesma. Entretanto, ela não pintou nada e música erudita
não é popular (ops, rolou uma ironia). A última coisa que ninguém costuma falar,
e se fala não dá a importância devida, é que Leonardo viveu com um rapazinho por 25 anos que se tornou seu herdeiro, Salaí é o nome dele. E era tão jovem quando
foi adotado que seria indecente eu dizer a idade. Foram companheiros uma vida
toda, mesmo quando surgiu o super fofo enobrecido Melzi, muito amado pelo pintor, ele ainda continuava por lá***. Não é lindo?! Fofoca rs.
*
Vide o seminal artigo: Adorno, T. E Horkheimer, M., A indústria Cultural: o
iluminismo como mistificação de massas.
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/208/o/ADORNO.pdf?134956850
**
Para todos os nomes aqui citados o Google é uma boa fonte, “Vai na fé!”
***Para conhecer a vida amorosa de Leonardo, sugiro:
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-50412915
P.S.: ao afirmar a "mona Lisa é feia", refiro-me ao quadro e não à retratada.
Comentários
Quanto à nossa superficialidade também é sintoma da velocidade e imposição das nossas relações sociais.
Ignoramos pra sobreviver.
Dito isso, ainda acho que essas referências que sobrevivem aos séculos também refletem e mantém nossa possibilidade de nos manter humanos. A precisão não é mesmo nossa característica. Mas a necessidade de nos referirmos e identificarmos (ainda) é.