Retratos Mortuários. Confeccionados em Fayum, Egito, sécs. II e VI D.C. |
Uma das perguntas mais recorrentes
que ouço é, “por que você fala tanto de morte?”. E sempre o fazem com um tom
misto de curiosidade e reprovação. Diria que é uma curiosidade retórica que só
deseja dizer: “Este assunto é desagradável e mórbido, fale de outra coisa”.
Minhas psicólogas, psicanalistas e até mesmo um psiquiatra - que gostava de
colecionar Dom Quixotes de enfeite-, tinham e têm a tendência de dizer que sou
mais ou menos habitado pela Pulsão de Morte, conceito de Freud pouco explorado
pelo mesmo. Talvez eu não tenha nem a pulsão de vida e nem a de morte, talvez
tenha uma pulsão meia vida, moribunda, uma pulsão desfalecida, ou quem sabe -
ao final - uma pulsão zumbi. A brincadeira vem do fato que no meu caso, ninguém
sabe quem veio primeiro o ovo ou a galinha. Mas, eu sei que primeiro veio o
ovo, uma vez que os répteis são anteriores às galinhas e elas deles descendem.
Sem enrolar, o fato é que lido com a morte desde muito pequeno, antes mesmo de
poder compreender minimamente do que se tratava. E talvez esta seja a chave.
Eu tinha dois anos e meio quando
minha avó materna veio a falecer. Morreu
muito jovem com 59 anos. Ela era muito querida e amada por todos. Eu também
gostava dela, mas era muito novinho para poder dizer que amava alguém. E ainda
que ela fosse muito querida, não me lembro do seu rosto. E a razão é simples,
eu era muito pequeno - relativamente a tamanho físico. Lembro-me da perna dela,
dos pés e dos joelhos, pois me punha sentado no seu pé e me balançava para
brincar de cavalinho. Lembro-me de coisas do seu cotidiano como o grande almoço
de família, a água suja da bacia de lavar louça sendo jogada no quintal, o
tratar das galinhas para as quais jogávamos milho. Sempre atarefada, com alguém
a seguindo falando pelos cotovelos e ela ouvindo. Chamava-me de Luizinho e
ainda reconheço sua voz no grito à distância. Eis que essa mulher, matriarca, pilar
de uma família de oito filhos e muitos netos, após comer codeguim, um petisco
que adorava e do qual estava com muita vontade, passou mal. Foi internada, e
seu fígado esfarelou.
Nós
a visitamos duas vezes no hospital antes de falecer. E eu me lembro das
visitas, dos lençóis que a cobriam, do soro que lhe foi posto na perna, do vasilhame
de vidro do soro - na época era reutilizável -, do deposito de vasilhames no
fundo do hospital. Lembro-me da voz dela conversando com minha mãe, mas
estranhamente não me lembro da conversa. E, não, não me lembro do rosto dela. É
como me dei conta, era pequeno demais para olhar para os rostos dos adultos
tempo o bastante para fixá-los. E se você se lembra de rostos com clareza, de
quando era muito criança, temo que tenha reelaborado essa memória.
Tivemos
a felicidade, e honra, de assistirmos o passamento da minha avó. A família toda
foi chamada de madrugada e nos reunimos no seu entorno. Ela deu todas as
instruções finais, pediu para os irmãos cuidarem do mais novo, o Lalo, que
nasceu com Down. Fez várias recomendações, e uma para minha mãe: “Cuide muito
do Luizinho, pois ele vai precisar da sua ajuda”. Eu mal podia ver a cena, pois
meu tio Paulo comigo no colo, buscava segurar minha cabeça para trás para que não
olhasse. Eu teimava em olhar mesmo assim. Em seguida nos informou bem
aventurada: “A Virgem Maria veio me buscar!” Suspirou e morreu. E já não estava
mais ali.
Lembro-me
do caixão de madeira, castanha, bem envernizada. Lembro-me do tecido roxo
beliscão com o qual era forrado. Lembro-me da mortalha sobre o seu rosto, do
cheiro das velas queimando, da arenga do rosário sendo puxada pelas mulheres.
Lembro-me do café, do bolinho de chuva, da divisão entre homens e mulheres,
quase nunca nos mesmos grupos. E de que
a tudo isso eu e meus primos preferimos ficar do lado de fora fazendo umas
casinhas de terra.
No
dia seguinte fomos em cortejo até o cemitério. Minha mãe, coitada, deve ter me
carregado no colo a maior parte do tempo, pois eu já manifestava as dores do
reumatismo no sangue que carregaria pelos nove anos seguintes. Ao chegarmos ao
local onde seria o túmulo, os coveiros estavam acabando de cavá-lo. Uma terra
vermelha, mais vermelha que o sangue se amontoava a pasadas. Depois, dois
homens pularam para o lado de dentro do buraco e ajudaram o caixão a baixar
ali. Alguém deve ter rezado, chorado com certeza, muita gente, posso até me lembrar
dos gemidos doridos e dos lenços brancos secando o choro. E neste momento
fizeram um gesto estranho, e minha mãe também me o ensinou. Do monte vermelho
sangue, minha mãozinha pegou um minúsculo punhado de terra, e quando o atirei mal
caíram alguns ciscos sobre o caixão. Meu primeiro punhado de terra sobre um
caixão. Mirava, sem entender, a mão suja.
Enfim
fomos aos poucos indo embora. Não antes que eu observasse a maravilha que era o
cemitério. Era muito bem arborizado, a capela que servia como velório municipal
era toda envidraçada, como se fosse de cristal. Os caminhos eram todos contornados
por um espinheiro que dá pequenas florzinhas rosas; e que agora, somente agora
enquanto escrevo, lembro-me que me disseram naquele dia “coroa de Cristo”. Fui saltitando
para fora, não sem antes observar que os túmulos possuíam rostos neles
colocados. Rostos?! Sim, rostos, eu jamais havia visto antes uma fotografia.
As
primeiras fotografias que vi eram as de mortos no cemitério. Não eram apenas “fotografias”
como aprenderia depois. Elas eram “evidência” elas eram a pessoa que estava
ali, e que, por estarem enterradas, eu não podia ver de verdade. Então, naquele
dia e não em outro, adquiri o hábito de fixar-me profundamente numa imagem e
tentar passar através dela e ver o que havia no fundo (no túmulo). É muito
doido dizer isso, mas eu entendi que a imagem era “representação”. Abatido por
uma profunda curiosidade vi também imagens de crianças, e soube imediatamente que
estavam na mesma condição da minha avó. E lembro-me de ter pensado de que forma
elas brincariam lá dentro, enquanto ao mesmo tempo compreendia a contradição
deste pensamento. Não havia céu, inferno, umbral, promessas e que tais, lá era
o cemitério onde os mortos ficavam. E eles habitavam lá. E para vê-los ou encontra-los
- sem encontrá-los e nem vê-los - era para lá que deveríamos voltar. Foi com
essa compreensão, que pouco tempo depois eu já pedia para minha mãe: “Vamos ver
a vó!” Sim, ela estava lá. Ela ainda está lá.
Não
direi que toda criança é atéia, muito pelo contrário. Mas na mente de uma
criança não havia nada de estranho ou errado nessa concepção de que os mortos
moram ali e é só. E não são mais alcançáveis, exceto pela presença ali, olhando
para uma fotografia. Depois notei que olhar para o tumulo sem nenhuma imagem também
causava o mesmo efeito. A imagem era boa, mas também desnecessária. Ao
encontrar túmulos sem fotos, sobrava-me a imaginação.
Desde
então, imagino os mortos. Quando eu tinha quatro anos e meio, nos mudamos para
uma casa de parede e meia, cerca de um quilometro e pouco do cemitério em linha
reta. Já haviam feito um túmulo para minha vó, e pouco tempo depois, meu avô
mandou construir uma minúscula igrejinha. E nos sábados de manhã, para
desespero da minha mãe, lá ia eu: “Vamos ver a vó!” Minha mãe e minha irmã,
pegavam vassoura, balde e panos de chão, e íamos caminhando devagarinho até
chegarmos ao cemitério. E enquanto elas lavavam o túmulo, num ritual de cuidado
tão antigo quanto as pirâmides do Egito, eu ficava me esgueirando entre os
túmulos, auscultando os mortos através das suas fotografias.
Existiam
túmulos muito antigos em que crianças sepultadas, e não me passava despercebido
a contradição. A fotografia de uma criança, o tumulo de uma criança, mas, tudo
velho, muito velho, como podia uma criança não estar velha como o túmulo?! Por
alguns segundos, passou-me pela cabeça o estranho fato de que as crianças não
cresciam mais depois de mortas. As coisas envelheciam, mas elas não. Sim, é
isso, que você está pensando, eu havia chegado à idéia de eternidade.
Eternidade, “sempre assim”.
Durante
três anos, pulando alguns sábados essa foi nossa rotina, para desespero da
minha mãe. Poderia ser bem pior, eu poderia ter querido brinquedos, doces,
cinema, festas, passeios, mas eu só gostava do cemitério. Aí mudamos da pequena
Itápolis para Andradina e se iniciou meu nomadismo, terminando com meu tempo de
infância.
Não
há aqui, neste texto, e nem em mim nenhuma mancha ou marca de tristeza ou
morbidez. Então, acho que Freud tinha lá suas razões para a tal pulsão de morte
- que tem muitas definições e desenvolvimentos interessantes -, mas no meu caso
a morte é um lugar confortável no qual os meus queridos repousam ou brincam, no
qual ocorrem vidas e mistérios que só posso entender olhando para a
representação e só posso tocá-los através desta estranha janela da fotografia.
Para alguns, a fotografia é evocação, para mim era janela, através da qual eu
espiava, mas não podia de forma alguma ultrapassar por causa do vidro das fotos.
Nelas eu entrava com a mente e não com a imaginação. Nos túmulos onde a
fotografia faltava às vezes eu tentava espiar pelas suas pequenas frestas, grades
e entradas, ou invadir suas capelas. A morte nunca me deteve.
Há pouco tempo um amigo me falou, sem tom de crítica e nem de admiração: “nunca vi alguém que fale da morte com maior naturalidade do que você!” Eu apenas achei estranho que dissesse isso, pois eu não tenho outra definição do que seja essa emoção que os constrange tanto. Entretanto, também não se deixem enganar. Um ano depois do falecimento da minha avó, minha Tia Maria - irmã da minha Mãe, quase uma cópia dela - e também minha madrinha muito amada, e de quem eu me lembro do rosto, do abraço e das sopas, morreu de parto. Dessa morte, na qual eu tinha três anos e meio, não tenho nenhuma lembrança. Apenas algumas imagens do sepultamento. Contaram-me quando já era jovem que o choque foi tão grande que comecei a destruir tudo na casa, recoberto de revolta. A dor foi tamanha que tudo se apagou, até mesmo a dor. E a pobreza era tanta, que no tumulo dela nunca houve fotografia. As perdas doem e causam sofrimento, mas a forma como eu lidei com a morte inicialmente e deixaram-me lidar (pois a forma como a família atuou foi muito importante) fez toda a diferença na minha vida. Ninguém inventou de explicar nada, apenas nos deixaram estar e a morte estava ali, e era só. Não fomos informados sobre o que pensar e nem como agir, éramos crianças e a morte estava ali. A morte, só com a magia que ela tem.
Por
isso os mortos me visitam e eu os vejo com alguma frequência. Desde sempre nos
espiamos pelas janelas, eu do lado de cá e eles do lado de lá. Eu os invado com
meu olhar e interesse e eles vêm e me buscam e olham e sorriem e vão embora.
Você que me lê agora, o que fará com sua selfie?! É por isso que falo tanto de
morte. Falo como quem fala de arroz, feijão, chocolate, sorvete, amor, fumaça,
cigarro, uísque. Falo como quem a viu acontecer no seu cotidiano. Depois da
mudança de cidade, continuamos nos mudando, e quanto mais me mudei, mais
conheci pessoas, e mais pessoas morreram em meu entorno, muito mais do que no
entorno de alguém que jamais saiu de uma cidade. Acumulo mortes e perdas, ainda
bem que não são tão mortes e nem tão perdas.
É
evidente que com este texto os preparo para o de Memória que cedo ou tarde
virá. É por isso que alguns estranham os retratos mortuários de Fayum, que se
demoram como pano de fundo do meu Facebook, agora entenderam. Ao olhá-los vo
u
ao encontro dos que foram como eu. Atravesso-os com meu olhar e os interrogo,
às vezes de forma doce, as vezes de forma agressiva e violenta. E se não me
respondem, continuo na busca pela compreensão. Aceito o mistério, sento-me
diante dele e o contemplo.
Augure!
E não se esqueça de olhar embaixo da cama antes de dormir... Afinal, meus
mortos habitam o cemitério e os caminhos de ida e volta, mas e os seus?!
In
memoria de Alba Gaviolli Buzon e Maria Buzon Villa
Comentários
Legal a relação das imagens que ficam das pessoas que vão.
E os retratos que não envelhecem, nem os mortos.
Já pensei nisso.
O não ser mais.
O tempo do morto para e o dos vivos não.
fiz alguma coisa errada e não apareceu meu nome.