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Manhã de Sol, a condição da mulher

 

            Em acolhimento ao Dia da Mulher publico um pequeno, trecho do livro Manhã de Sol. É de coração que escrevo este livro já há oito anos.

       

            “- O que irias tanto dizer à Alcmene? Murmurou, Eunice, demonstrando interesse pela outra, que à sua maneira também vivia em estado de servidão.

            Atirando um pequeno graveto ao fogo, Atíficlis, respondeu desarmada, tímida e triste, como se buscasse apaziguar a dor dentro de si:

            - Ora, eu iria contar como o mundo nos trata. Iria mostrar para ela o que não sabe, o que é ser mulher. E depois disso, se ainda desejasse, ensinaria a domesticar os homens...

            - Pelos homens não me interesso, - afirmou Eunice -, diga-me então o que não sei sobre ser mulher?! Faltam-me jóias e maquiagens?! Diga-me, para que essas coisas servem?

            - Todas as coisas servem aos homens, mesmo aos homens que não sabem que delas se servem.

            Deixou a frase mergulhar no silêncio e parecendo falar a si mesma, levou a mão ao grande colar que usava: “As joias... Até mesmo elas lhes servem. Quando pequenas não notamos que foi nossa mãe quem as usou primeiro ou nos chamou atenção para sua beleza. Parecem fazer parte da nossa natureza... Nossos olhos brilham diante do ouro, das pedras, da bela ourivesaria, e nos encantam até mesmo os colares de conchas de pouco valor. Elas são belas, e fomos ensinadas a roubar um pouco da sua beleza quando as usamos. Aprendemos a gostar, a reconhecer seu valor e até mesmo a exibi-las e exigi-las. E esquecemos que aprendemos a gostar. A gostar de algo que primeiramente servia para enfeitar aquilo que é dado para o homem. Diziam: “use essa, ficarás ainda mais bela!” “Usa aquela, te cai muito bem!”. O mesmo faziam com as roupas. Quando começávamos a nos distinguir dos meninos, logo vinham os cuidados. Limpas, arrumadas. Brincando aprendemos a fazer maquiagem, até a produzi-la se não tivéssemos dinheiro para compra-las. Lembro-me das primeiras sombras sobre os olhos, foram feitas de pó de carvão. E a cor das faces primeiro me as deu a beterraba, passava-a levemente no rosto para ficar corada. Vestia-me, maquiava-me, penteava-me, perfumava-me... E os homens, apenas banhavam-se. Minha mãe e as outras mulheres mais velhas, me corrigiam o desleixo, pois tinha de ser apresentável. Parecia um prato sempre pronto para ser servido e devorado. Com o tempo a gente acostuma a se parecer com um delicioso pudim, e se não nos parecemos nos sentimos mal, menos belas, menos interessantes. Pois no banquete somos o prato que é deixado de lado. Belas e interessantes para quem, para o que?! Nós mesmas, mal vemos nossa imagem turva no espelho. Todos nos olham. Os homens nos olham para si, e as mulheres nos tratam como concorrentes. E ainda há aquelas que nos julgam para eles, se somos dignas de fulano ou cicrano. Não temos fuga. Ás vezes uma amiga compreende quanto o céu nos pesa.”

            - Quanta miséria por trás de uma jóia... – Concorda Eunice, cheia de compreensão. Mas tudo isso fazem por outro motivo, os filhos!

            - Ah, Eunice! Antes dos filhos vem a satisfação, vem o desejo. Quando somos muito jovens também os temos. E se temos o azar de muito sermos usadas, até ele se nos torna pesado e indesejável. O que o corpo faz da nossa alma?! Ainda que eu não quisesse me entregar a nenhum homem, infelizmente, parece que deles meu corpo necessita. Queria que fossem outros e melhores homens, mas homens são homens. E se gozo, me sinto culpada pelo prazer que tive com quem me invade, domina e oprime.

            - Não sejas tão dura com os homens! – aconselhou Eunice: Eles nem sabem como são. Geralmente tímidos e assustados por causa dos outros, e quando se tornam excessivamente seguros, o são conosco. Aí descontam a dor que vivem sem o dizerem. E ficamos nós, cheias de chagas e eles repletos de silêncios.

            - Prefiro os silêncios às chagas! – riu-se gostosamente Atíficlis.

            - Se tivéssemos escolha, nem silêncios nem chagas, apenas canções de amor. – comentou conformada.

            - Ah, disseste outra coisa que nos perturba.

            - As escolhas?!

            - Não, o amor!

            - Ora, mas até o amor te parece opressivo?!

            - Algumas mulheres pensam que somos controladas com dinheiro, com falta de liberdade ou com violência. Mas a verdade é que nos controlam pelo amor. É o desejo por sermos amadas que nos mantém submissas. Arrastamo-nos por um pouco de afeto. E sem ele parece que secamos em vida. A maior ofensa que se faz a uma mulher é dizer-lhe o quanto é amarga. E todas sabemos de onde a amargura vem. É do desamor. E os que reprocham nossa amargura ainda nos responsabilizam por esta. Como se não fomos suficientes para fazer nascer o sorriso em meio a tanta miséria.

            - Moça, tu estás muito sofrida! – apartou-a Eunice, atônita com o rumo da conversa.

            - É disso que falo! Não se pode acusar alguém por seu sofrimento. Pois, quem podendo, desde sempre, não buscará ser feliz?! Quantas vezes tu escutas dizer que fulana é amarga, cheia de amarguras e tristezas?! Entretanto, quando se referem a um homem, dizem: ele é sério, compenetrado e de poucos amigos. Mas nós, nós somos amargas, mal amadas, más amantes, mães desventuradas. Toda nossa dor nos é tributada como um fracasso completamente nosso. Além de todas as desgraças que sofremos ainda querem em nossos lábios a graça de um sorriso eterno. Agora, me diga, como posso amar se já fui rejeitada no nascimento?

            - Fostes exposta? – Estranhou.

            - Não, não fui exposta. Fui criada por minha família!

            - Então, como sabes que não foi amada? – Interpelou-a com incredulidade.

            - Nenhuma de nós foi! Nem pelos pais, nem pelas mães. Quem fica feliz com o nascimento de uma menina?! Já vistes o pai sair com os amigos para comemorar o nascimento de uma filha? E quantas filhas uma mulher é obrigada a parir até que lhe nasça um varão? E, em não nascendo, isso lhe será jogado em rosto até o fim dos seus dias. E se lhe dirá que ela foi uma inútil que só aumentou as despesas da casa. Quando bebê tu estendes os braços em busca de carinho, mas estes braços que te acolhem, quando o fazem, já o fazem de forma frouxa. Com o tempo afrouxarão até não te apertarem mais. Pensas que o problema é contigo, te esforças, brincas com as bonecas que te dão. Nem disputas o cavalinho dos meninos. Aceitas ficar à casa, acolhes a fiação como única tarefa nobre. Limpa e esfrega o chão! Sempre pronta a dizer, “Sim, senhor meu pai” “Sim, senhora minha mãe” e “claro, meus irmãos”. Todo o gasto vai para os meninos, toda atenção da mãe e do pai vai para eles. Este por achar que o filho é sua continuação, e a mãe por estar feliz por ter agradado o pai dando-lhe seu rebento querido. Mesmo nos amando, a mãe sempre nos olha com piedade e um pouco de desdém, pois sabe que fomos recebidas como um estorvo. E por mais que se esforcem, jamais conseguirão esconder a diferença no afeto, pois nos mínimos gestos, farpas, palavras, olhares e abraços, beijos não dados, esta escapará. E tu, que ingenuamente acredita que é igual a teus irmãos, se pergunta o tempo todo, o que fiz de errado?! Por que sinto que não sou amada, por que parece que preciso implorar pelo afeto dos meus? Por que tenho de realizar todas as tarefas, obedecer todas as ordens, levar todas as reprimendas para ter um afago na cabeça, como fariam a um cão?! E quando menos esperas te casam. Pois apenas para isso tua mãe te preparou. Livram-se de um estorvo. Até festejam! E aí passas a tentar conseguir o afeto de teu marido de todas as formas. Não conseguindo tenta conseguir o dos servos, não conseguindo – pois estes também são homens-, passa a extorqui-lo dos filhos e das filhas. Passa a noite acordada, ou os meses de guerra e de viagens, esperando o marido voltar. A boa mulher é Penélope, aquela do tal Ulisses!

            - Nem me fale! Aquela era tão tonta que até o filho Telêmaco a controlava! – concordou Eunice, acrescentando: O marido conheceu outros lugares, pessoas, lutou guerras, navegou por distantes mares e se deitou com muitas outras mulheres. Que fez Penélope?! Ficou em casa tecendo e fiando, e por falta de ter o que fazer desfazia o trabalho a noite para recomeça-lo de dia!

            - Não seja injusta, ela desfazia-o por causa da pressão exercida pelos homens que desejavam ocupar em sua casa o lugar de Ulisses.

            - E ela só não se deitou com todos eles por causa daquele bosta do Telêmaco! – afirmou Eunice de forma vigorosa e divertida.

            - Era o que eu dizia! Fazemos qualquer coisa por afeto! Ainda que Penélope pudesse estar ressentida com Ulisses, ela buscava o amor do filho. Telêmaco nunca perguntou se desejava alguma coisa, até mesmo uma presilha para seus cabelos. Bem, e agora, até eu já barganho jóias por afeto. É disso que falo. Desde pequenas nos negam a confiança do amor. O que os meninos têm no momento do nascimento, a nós nos resta conquista-lo. Mas como alcançar o amor se negá-lo a nós é o que mantém toda a sociedade?!

            - Atíficlis, concordo em quase tudo contigo. Mas, se continuares nesta linha de pensamento, logo me dirás que não é Atlas que sustenta o mundo nas costas, mas Atléia!

            - Se nós tivéssemos contado os mitos e as estórias e quiçá escrito, se soubéssemos escrever, com certeza seria Atléia quem sustentaria o mundo. E Zélia dominaria o Olimpo e não Zeus! E Possidônia, dominaria os mares...

            - E Hadésia o mundo subterrâneo! – riu Eunice: Se tu continuares a fazer pouco dos deuses inventando-lhes nomes, nossa causa estará perdida. Pensa que tudo poderia ser muito pior se Zeus preferisse os rapazes!

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