Não
falarei da Morte, mas do seu resultado: a ausência de quem morreu. O termo
ausência não o descreve bem, pois sempre está chamando o seu contrário, a
presença. É como dizer, partiu. Entretanto não haverá retorno, não pode voltar.
Ficamos inutilmente tentando minimizar o assombro aterrador desse abismo.
Abismo também não é uma boa palavra, pois tem um lado de cá e um lado de lá.
Para os vivos não existe lado nenhum só há o “cá”.
Ao
longo das décadas que convivemos com a pessoa fazemos coisas juntos, amamos,
brigamos, sofremos, sorrimos, damos beijos, abraços, sentimos cheiros. Vivemos
momentos únicos e transformadores. Nós não somos uma pessoa inteira estando
sós. O que somos está também preservado nos sentimentos e memórias dos outros.
Nosso melhor sorriso não fomos nós que vimos, mas alguém o levou para si.
Nossos gestos de dor, conquistas e vitórias, aquela luz que recaiu sobre nós
num pequeno instante, nós os sentimos, mas não nos pertenceram. Pois foram e são
levados pelos que nos assistem. Da mesma forma somos espectadores ativos do
espetáculo da vida de alguém, de algumas pessoas ou ate mesmo de uma comunidade.
Quando a pessoa convive conosco nós temos muito mais imagens, cheiros, idéias e
risadas para nos formar. E o que temos dela, jamais foi dela, apenas foi
produzido por ela, pertence a quem assiste, é de quem está junto. Somos
contaminados pela sua presença e seguimos com a marca desse contágio a vida
toda.
Eu não sou apenas eu. Sou também o
conjunto de respostas e ações que desenvolvi para todos os outros, e as
respostas que dei para as respostas que vieram. Há tanta gente no mosaico de
mim que no fundo sou a manifestação da sua forma e expressão. E é o meu eu que
mantém os contornos de tantas junções que me foram feitas e que busquei. Quando
vemos o corpo morto da pessoa amada, olhamos e não o reconhecemos de verdade. Sabemos
que esteve vivo, mas o que o animava não está lá. Olhamos e não vemos a pessoa,
vemos uma ruptura. Uma assustadora ruptura. O elo que mantinha o seu mosaico se
rompeu. Ficaram seus diversos pedaços espalhados e não conseguimos
reconstituí-lo, pois não temos mais aquilo que organizava e dava sentido ao
todo.
Na sua ausência, vemos suas coisas,
suas imagens prediletas, seus perfumes guardados, seu local favorito para
sentar-se. Ouvimos sua voz ecoando pela casa, suas bravatas, suas risadas, e
seu peculiar modo de nos pedir um favor. No mercado seus produtos prediletos parecem
jogar-se diante de nossos olhos. E pedem para serem levados para casa, pois
alguém ficaria feliz. Passamos anos aprendendo essa pessoa e sendo por ela
apreendidos. E depois que obtemos um razoável sucesso, somos informados que
estes afetos e gestos não terão mais aplicação, exceto uma: saudade.
A melhor imagem que posso dar do que
sinto em relação à perda é essa. Nosso corpo é habitado por uma energia
fisicamente muito maior, e ela se espalha, se divide, se multiplica, se fragmenta
sem nunca perder o seu cerne. Cai pedacinhos dela por todo lado; inclusive são
absorvidos pelos espectadores do seu maravilhoso espetáculo. Somos como um
redemoinho, repleto de coisas, ora mais forte, ora mais fraco, cujo vento que o
originou se dissipa e dele não adianta mais procurar vestígios. Sobraram os
escombros.
Quando alguém amado morre é como se
um minúsculo buraco negro se formasse em algum lugar, e ele começasse a atrair
com sua imensa força gravitacional tudo o que ficou para trás. Seus pedacinhos
recolhidos dentro de nós são chamados a partir. E parecem, violentamente,
querer romper-nos o peito para seguirem adiante. Aí, temendo perder tudo o que
resta os seguramos, apertamos os braços em torno de nós mesmos, pegamos os
fragmentos que sobraram pelo chão, sentimos, choramos, e eles se mantém. E aos poucos
parecem se acalmar. Mas basta serem atraídos por qualquer razão e eles nos
devastam ainda mais. Com o tempo novos fragmentos de outras pessoas se somarão
e eles acabarão por se depositar no recôndito de nós.
Os mortos se foram, mas somos nós
que guardamos as suas manifestações cotidianas e estas continuam vivas. A
versão de si que nos apresentavam ficou gravada e nos pertence. Sempre foi
nossa, sempre foi para nós. Entretanto, a morte arrancou-nos um dos nossos
espectadores, um que dava sentido à nossa atuação e ficamos um tanto quanto
perdidos. Antes eu era filho, agora não sou mais, antes marido, agora viúvo.
Antes irmão, agora filho único. A morte não dissipou apenas o nosso ente amado.
Ela obrigou-nos a nos tornarmos diferentes. As muitas partes do morto que nos
habitam desejam partir e nos fazem chorar. Seus fragmentos espalhados e
colocados por todos os lados fazem com que continuamente os reconstituamos sem
jamais vencer a tarefa.
Não seremos mais quem éramos, pois
uma parte substancial de nós foi levada embora, a parte de mim que existia só
para ele. Então, não é apenas a dor da perda, é também a dor de
reconstituir-se. Reconstituir a parte de nós levada embora. Eu sempre precisei de
reconhecimento – sou tímido e inseguro-, minha mãe me o dava. Não precisava do
reconhecimento de mais ninguém, isso era segurança e sucesso o bastante. Mas na
ausência dela fiquei no palco tentando fazer a cena, tentando fazer sorrir e
chorar, mas na plateia não havia ninguém assistindo. É esse o resultado da
morte: a ruptura de um mosaico único que não pode ser reconstituído, e o tempo
passará e ele se recobrirá de pó e esquecimento. E restarão muitos fragmentos
seus que nos compuseram e compõe. Eu era a parte da minha mãe que precisava de
alguém de quem orgulhar-se.
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